Vinte centavos não são vinte centavos. Vinte centavos
tornaram-se ao mesmo tempo estopim e símbolo de um movimento tão grávido de
possibilidades que foi reprimido a balas de borracha, a bombas de gás
lacrimogêneo e também a golpes de caneta.
Por Eliane Brum
O que começou com o aumento da passagem do ônibus, se
alargou, se metamorfoseou e virou um grito coletivo que tomou a Avenida
Paulista e ecoou nas ruas do Brasil. O que há de tão ameaçador nestes 20 centavos,
a ponto de fazer com que governos da democracia protagonizem cenas da ditadura,
é talvez algo que se acreditava morto por aqui: utopia. A notícia perigosa
anunciada pelas ruas, a novidade que o Estado tentou esmagar com os cascos dos
cavalos da polícia paulista, é que, enfim, estamos vivos.
A multidão que tomou as ruas de São Paulo, ecoando o que já
vinha acontecendo em outras cidades do Brasil, está longe de ser homogênea. Há
grupos organizados – e alguns deles acreditam que a depredação é um ato
legítimo de defesa, diante da violência sistemática praticada pelo Estado e
pelo capital –, há partidos políticos de esquerda e há uma massa de pessoas, a
maioria jovens, que aderiram movidas por suas próprias aspirações. O que une
“os vários movimentos dentro de um” são os 20 centavos. Mas os 20 centavos
deixaram de ser 20 centavos para se tornar expressão de um descontentamento
difuso, mas nem por isso menos profundo. Uma decepção com a vida que se vive e
um anseio por sentido.
As manifestações de rua são talvez a melhor notícia da
democracia, a prova maior de sua vitalidade, mas elas expressam o sentimento de
que os políticos que aí estão, os partidos que aí estão, a concepção de mundo,
de país e de política que eles representam, já não representam um número
crescente de pessoas. Especialmente os jovens pós-internet, mas não só. Contra
aquilo que não se entende, mas que ameaça o poder estabelecido, joga-se a
polícia. O que se viu na quinta-feira (13/6) foram cenas que lembravam a
ditadura militar. Mas as semelhanças acabam aí. A demonstração de força era a
expressão de uma fragilidade com a marca deste tempo histórico, do hoje.
A prova mais eloquente, talvez, se revela nas frases
postadas pelo governador Geraldo Alckmin (PSDB) no Twitter. Para qualquer
pessoa que seguisse o governador e também pessoas que estavam na manifestação,
a narrativa simultânea do momento era extremamente reveladora. Reproduzo aqui a
sequência de frases de 140 caracteres de Alckmin e frases de diferentes
manifestantes ou jornalistas que cobriam a manifestação, postadas ao mesmo
tempo que as do governador. Todos estão identificadas com nome e sobrenome no
Twitter, mas, depois do que vi na quinta-feira, por precaução, eu prefiro
chamá-los aqui apenas de @manifestantes:
“@GeraldoAlckmin O direito à livre manifestação é um
princípio basilar da democracia. Assim como o direito de ir e vir e a
preservação do patrimônio público/@manifestante: Praça enchendo em paz...
bonito/ @GeraldoAlckmin Depredação, violência e obstrução de vias públicas não
são aceitáveis. O Governo de São Paulo não vai tolerar
vandalismo/@manifestante: Repressão brutal, pessoas desesperadas, moradores com
crianças correndo. Se o Haddad compactuar com isso é o fim definitivo do PT!!
/@GeraldoAlckmin Participei hoje, em Santos, da comemoração aos 250 anos do
nascimento de José Bonifácio Andrada e Silva, o patriarca da
independência/@manifestante: Ônibus pegando fogo na Augusta. Milhares correndo,
descendo a rua pedindo paz. PM segue com bombas. Motoristas encurralados por
gás/@GeraldoAlckmin Ainda em Santos inaugurei nova delegacia de polícia do
Porto de Santos, que ano passado recebeu 1.1 milhão de turistas /@manifestante:
Tentei sair. Eles atiraram na minha frente. Virei, atiraram atrás. Fiquei cega,
entrei num motel. Consegui me recompor/@GeraldoAlckmin No Guarujá inaugurei o
novo Hospital Emílio Ribas e anunciei a implantação do Restaurante Bom
Prato/@manifestante: Pra dispersar, faz sentido jogar uma bomba no começo, uma
no fim? Fiquei presa entre duas bombas de gás. Muita gente
machucada/@GeraldoAlckmin Para Cubatão liberamos R$ 21,5 milhões para construir
800 apartamentos e mais 1.448 apartamentos para Santos que receberá mais uma
Etec/@manifestante: Eu nunca vi nada parecido. Muita gente ‘refugiada’ no
hotel, sangrando/@GeraldoAlckmin Estive também em São Vicente p/ autorizar a
recuperação da belíssima Ponte Pênsil, a construção de 1.120 moradias e a
implantação da 2ª ETEC/ @manifestante: Augusta em chamas”.
O governador despediu-se no Twitter, na noite que já está
assinalada na história de São Paulo, a maior cidade do país, como uma das mais
violentas desde a volta da democracia, com a seguinte frase: “@GeraldoAlckmin
Parabéns a toda a população de Guaratinguetá pelos 383 anos da cidade. Boa
noite a todos!”.
A frase fala por si. A simultaneidade de realidades também.
Se alguém quiser documentar essa noite histórica num livro/e-book, a melhor
expressão me parece ser a reprodução das narrativas simultâneas do governador e
de alguns narradores que estavam na manifestação. O mesmo vale para quem
estiver sem tema para uma tese de doutorado. É um retrato do momento, que abre
uma rica paleta de possibilidades de análise e de interpretação.
O prefeito de São Paulo, Fernando Haddad (PT), não se
manifestou diretamente nas redes sociais na noite de quinta-feira. Mas sua
ausência, em vários sentidos, esteve bem presente. Tão logo ficou claro que a
violência policial era condenada até mesmo por aqueles que antes a haviam
pedido em letras garrafais, o prefeito passou a se esforçar para se descolar do
governador. Assim como o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, que, se
hoje critica a ação da polícia paulista, antes de os ventos mudarem tinha se
apressado a oferecer apoio “no que for necessário” ao governo de São Paulo.
Desta vez, PSDB e PT estiveram unidos pela incompreensão do momento histórico
que vivem, atarantados diante da força das ruas e de uma linguagem que não
dominam, nem sequer entendem.
Quando Alckmin só consegue enxergar “vândalos” e
“baderneiros”, é o que não enxerga que aparece. Quando Haddad tenta se amparar
no discurso de que o aumento do preço do transporte público foi abaixo da
inflação, é a sua dificuldade de compreender o discurso novo das ruas que se
torna explícita. Não é mesmo fácil ser político neste momento histórico em que
as ruas nas quais os movimentos se iniciam não têm mais chão. Desorientados
diante da novidade, alguns quadros e militantes do PT têm repetido que é
preciso resgatar bandeiras históricas do partido que se forjou nas ruas, mas
agora se descobre apartado delas. Se isso já se torna cada vez mais difícil,
dada as posições retrógradas do governo de Dilma Rousseff, é preciso perceber
que essas bandeiras perdidas são do século XX. Ainda que as reivindicações
estruturais, de fundo, permaneçam, algumas delas com suas raízes no Brasil
Colônia, elas foram acrescidas de novos desafios e nuances e de uma forma
inteiramente diferente de se relacionar com o mundo. O que está em jogo hoje
são bandeiras do século XXI, em que até o conceito de bandeira já não é mais o
mesmo.
A avassaladora velocidade das mudanças nos deixa a todos
perplexos. E também a imprensa, que vive um momento delicadíssimo. A cobertura
ao vivo das TVs era acompanhada por quem estava no Twitter, mas já com uma
leitura crítica. E com a comparação imediata do que era dito pelos
apresentadores com a narrativa polifônica, em primeira pessoa, feita pelos
manifestantes que estavam no centro dos acontecimentos. Em seguida, o relato de
quem testemunhava o protesto nas ruas era comentado e replicado pelos
manifestantes que não estavam nas ruas, mas também se manifestavam. E não só em
São Paulo, mas no Brasil e também fora do país.
Quem tanto ironiza os “ativistas de sofá” precisa começar a
entender que as fronteiras entre as ruas já não existem – ou pelo menos exigem
outro tipo de interpretação. Mesmo jornalistas que estavam cobrindo o protesto
para seus veículos, fizeram seu relato em tempo real no Twitter e no Facebook –
e alguns escreveram artigos independentes depois. Para compreender melhor esse
aspecto da manifestação de quinta-feira, sugiro a leitura da ótima análise de
Fabio Malini, professor da Universidade Federal do Espírito Santo e coordenador
do Laboratório de Estudos em Internet e Cultura (Labic).
Os 20 centavos se alargam, sua teia de significados ganha
dimensões cada vez maiores, superando qualquer fronteira física ou virtual. A
violência da polícia paulista motivou a reação de outras camadas da população e
de outras faixas etárias, levando novas adesões ao movimento. O que se vê nas
redes agora é a soma daqueles que dizem ser preciso lutar pela democracia e
pela liberdade de protestar. Esse sentimento é demonstrado nas quatro frases do
Twitter mais republicadas, segundo a análise do professor Fabio Malini:
“@LeoRossatto A tarifa virou a menor das questões agora. Os próximos protestos
precisam ser, antes de tudo, pela liberdade de protestar/ @choracuica Não é
mais sobre a tarifa. F...-se a tarifa. Isso ficou muito maior que a questão da
tarifa/@gaiapassarelli Há algo grande acontecendo e é menos sobre aumento de
tarifa e mais sobre tomar posição. Todo mundo deveria prestar atenção/
@tavasconcellos Não é mais uma discussão sobre tarifa. Transporte. Baderna.
Sobre nada disso. É sobre o direito de se manifestar por qualquer causa”.
Tenho recebido e-mails de amigos e também de desconhecidos.
Edson Natale, músico e produtor cultural, mandou o seguinte texto para o seu
mailing, do qual também faço parte: “Vou pra rua na segunda (17/6). E vou
porque acho que devo cuidar da rua e porque o Brasil não é só a rua por onde
ando. Vou pra rua por minhas crenças e pelas crenças dos filhos: dos meus
filhos e dos filhos dos outros. Não é muita coisa ir pra rua, mas não quero
perder o direito de ir, quando quiser. Não tenho partido, nem religião, mas
acredito sobretudo na vida, nas pessoas e no futuro, por exemplo. Tenho 51 anos
e poderei (tentar) ajudar a evitar a violência ou a quebradeira, seja lá de
quem for. Estarei lá para mostrar que não tenho gostado dos conchavos, das
negociatas, das simulações e das dissimulações que têm acontecido tão
intensamente nos bairros, cidades e estados; nas florestas, litorais e sertão,
independentemente dos partidos responsáveis por elas. Tenho 51 anos e digo –
com maturidade – que é preciso ir para a rua e levar as nossas crenças para
passear um pouco e encontrar-se com outras crenças, diferenças e verdades. Acho
que é assim que se faz um País e eu tinha me esquecido disso. Por isso agradeço
aos que ocuparam as ruas antes de mim e por mim. E antes que alguém diga,
ressalto que não vou para a rua defender partidos políticos, violência,
quebradeira ou ódio... nem para impor a ‘minha’ verdade. E dessa forma encerro
aqui o meu convite: vamos?”.
É possível que seja de qualificação do desejo que esse
movimento fale. Talvez seja esta a única coesão entre tantos anseios
diferentes, organizados ou não. O sentimento de que essa vida é pouca, de que
essa política pautada mais pela reprodução das relações de poder do que por
ideias de um Brasil melhor já não motiva ninguém. Em São Paulo, mais do
qualquer uma das outras capitais que também se levantaram e se levantam, a
questão do transporte explicita todo esse desencanto. É muito simbólico que
Alckmin e sua polícia tenham frisado tanto que defendiam “o direito de ir e
vir” dos cidadãos, como se cidadãos também não fossem aqueles que se
manifestavam. Mas o mais irônico dessa justificativa para a repressão é que “ir
e vir” é o que não se consegue fazer em São Paulo, imobilizados em ônibus e
carros no trânsito parado, uma oposição já cristalizada na linguagem. Talvez o
que una os manifestantes tão diferentes de São Paulo seja o movimento – o ato
mesmo de literalmente romper o imobilismo e se mover. A maior transgressão é
andar – e por isso era também crucial andar na imensamente simbólica Avenida
Paulista. Pessoas, não carros, não ônibus 20 centavos mais caros. Não mais como
zumbis sustentando uma vida insustentável em passos claudicantes e limitados,
mas como pessoas no movimento desejante em busca de uma vida que faça mais
sentido.
Vinte centavos talvez sejam o tanto de morte que uma vida
humana já não pode suportar. Em São Paulo, mas também em Porto Alegre, no Rio,
em Brasília, em várias cidades e capitais. Assim como em outras partes do mundo
– antes, agora, possivelmente depois –, em cada uma delas com contextos,
peculiaridades e rostos próprios, mas com algo em comum que é possível
reconhecer. Algo que revela de um mundo que apodrece, de um modo de vida que já
não dá conta da vida.
Talvez quem melhor tenha sintetizado os protestos que hoje
tomam conta do Brasil tenha sido um velho, o escritor uruguaio Eduardo Galeano,
em outro canto do mundo, quase dois anos atrás. Ao falar aos jovens que tomaram
as ruas de cidades da Espanha como Barcelona e Madri, ele disse uma frase que
se disseminou pela internet, traduzida para várias línguas: “Este mundo de
merda está grávido de outro”.
Tomara que esteja. E que tenhamos a grandeza de sonhar com
um mundo em que exista espaço para a vida.
Fonte: Revista Época
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