A realidade é que crianças e jovens representam um terço da
população, mas as políticas urbanas foram organizadas para a faixa etária
superior, e para as elites. Não se trata de 20 centavos, trata-se de um saco
cheio generalizado com o caos urbano gerado, que transtorna a qualidade de vida
das pessoas, e dos jovens em particular.
Por Ladislau Dowbor
Eu tinha vinte anos. Que ninguém me
diga que é a mais bela idade da vida.
Paul Nizan, Aden, Arabie
O transporte numa cidade como São Paulo é sem dúvida
caótico. Anos de poder de empreiteiras e montadoras articuladas com políticos
fisiológicos a seu serviço nos deram muitos viadutos, túneis e ruas paralisadas
por 7 milhões de veículos. A apropriação da política urbana pelos sucessivos
malufismos gerou uma estagnação do transporte coletivo. O Paulistano perde uma
média de duas horas e quarenta minutos no trânsito por dia. E na ausência de
transporte de massa decente, quem mora na Capela do Socorro acorda às 5 da
manhã para chegar na hora ao emprego, volta para casa às 9 e adormece no sofá
vendo bobagens. Vida de família?
Não tenho aqui a pretensão de explicar a juventude, nem de
dar conselhos sobre os movimentos. Mas o contexto dá para delinear. Há tempos
ajudei a organizar um livro para as Nações Unidas, Cities for Children, ou
seja, cidades para crianças. Recusaram o título que eu propus inicialmente, que
era “Administrando as Cidades como se as Crianças fossem Importantes” (nota 2).
A realidade é que crianças e jovens representam um terço da população, mas as
políticas urbanas foram organizadas para a faixa etária superior, e para as
elites. Não se trata de 20 centavos, trata-se de um saco cheio generalizado com
o caos urbano gerado, que transtorna a qualidade de vida das pessoas, e dos
jovens em particular.
Não é tão difícil assim colocar-se no lugar do jovem. Sai da
escola sem nunca ter visitado uma empresa, uma repartição pública, uma
organização da sociedade civil. A separação radical entre as fases de estudo e
do trabalho, produz uma geração de jovens desorientados, à procura da sua
utilidade na vida. Se cruzarmos esta situação com as dinâmicas do trabalho, a
ausência de perspectivas torna-se muito forte, a não ser em alguns grupos
privilegiados. Na realidade, no processo produtivo onde os conhecimentos passam
a desempenhar um papel preponderante, em vez de estudo e trabalho serem etapas
distintas da vida, devem crescentemente constituir um processo articulado onde
aquisição de conhecimentos e a sua aplicação produtiva devem enriquecer-se
permanentemente. Isto se organiza.
Sentir-se inútil numa fase da vida em que o jovem chega
disposto a fazer e acontecer, gera sem dúvida um sentimento de profunda
frustração. Poder fazer uma coisa útil parece constituir um favor, alguém “deu”
um emprego. Uma pesquisa nos Estados Unidos mostrou que no conjunto, o who you
know (quem você conhece) tornou-se um fator mais importante de avanço
profissional do que o what you know (o quê você conhece, as suas competências).
O mundo para o jovem passa a ser visto como um universo opaco e fechado,
gerando desânimo e passividade, e frequentemente revolta e violência.
Esta tendência tem de ser colocada numa perspectiva mais
ampla. As nossas crianças e os nossos jovens são criados num referencial de
família muito frágil: com os dois pais no trabalho, o trabalho distante da
casa, casais frequentemente separados, o silêncio no binômio sofá-televisão:
constrói-se assim muito pouco balizamento entre o bem e o mal, muito pouco
sentido de vida. Nos Estados Unidos apenas 25% dos domicílios têm pai, mãe e
filhos. O joy-stick basta? A grande solução apresentada seria o tempo integral
da criança na escola, em nome da educação, mas liberando os pais no horário
completo.
Um outro universo que contribuía muito para a construção de
valores era a rua, a vizinhança. Ali, não era ainda o mundo¸ mas também já não
era a família, ali a criança e o jovem testavam a sua presença social,
delimitavam gradualmente os valores da amizade, o peso das rivalidades,
construíam os seus espaços de sociabilidade. Hoje, nenhuma mãe em sã
consciência diz à criança que vá brincar na rua. Fica sossegada quando as
crianças estão sentadas no sofá, comendo salgadinho, e vendo “vale tudo por
dinheiro”. Porque na rua é o perigo, são as drogas, as gangues, os acidentes de
carro, o medo. Não inserimos mais as crianças no mundo, buscamos apenas
protegê-las. E quando chega o momento inevitável de sua inserção, desabam sobre
elas desafios difíceis de suportar.
Os pais perdidos entram em intermináveis discussões sobre se
devem ser mais permissivos, ou colocar mais limites, sorrir ou gritar, e
terminam, quando têm dinheiro, lamentando-se com o analista. O analista pode
sem dúvida ajudar quando os problemas são individuais, mas não resolverão
grande coisa quando se trata de um processo socialmente desestruturante.
A escola pequena, de bairro, frequentada por pessoas que
convivem de uma maneira na escola, e de outra nas ruas da vizinhança, mas
pertencendo ao mesmo tecido de relações sociais, era outro espaço de construção
de referências. Boa parte disto subsiste no interior. Nas grandes cidades, e
frente a uma construção escolar onde se buscam absurdas economias de escala
(quanto maior, mais barato), gera-se um universo de gente que só se encontra na
escola. Os universos sociais do local de residência e do local de estudo só se
cruzam eventualmente. Na própria classe média, é patético ver mães que passam
horas no trânsito para levar uma criança a brincar com outra no outro lado da cidade,
porque já não aguenta a solidão em casa. E no outro lado da cidade, o
coleguinha terá os mesmos videogames, o mesmo “vale tudo por dinheiro” na
televisão. Se juntarmos os efeitos de desestruturação do referencial familiar,
da ausência do referencial de vizinhança, e da perda da presença social local
da escola, e acrescentarmos o cinismo dos valores martelados horas a fio na
televisão, que valores queremos que eles tenham?
Os pais ficam indignados: eles bebem, eles fumam, eles se
drogam, eles transformam o sexo numa aeróbica banalizada, eles não vêm sentido
nas coisas...O que é que nos fizemos para dar sentida às suas vidas? Todos nós
estamos ocupados em ganhar a vida, em subir nos degraus absurdos do sucesso¸
como é que as crianças vão entender o nosso sacrifício como útil?
A compreensão de que se matar de trabalho para construir uma
vida sem sentido, ainda que com a garagem que ostenta um belo carro, e
entulhada de esteiras de ginástica e outras relíquias de entusiasmos
consumistas passageiros, sem tempo para fazer as diversas coisas que poderiam
ser agradáveis, ou belas, – filtra gradualmente para dentro das nossas
consciências, ainda que continuemos todos a correr sem rumo. Será que os nossos
filhos realmente não vêm o absurdo das nossas próprias vidas? E que rumo isto
aponta para elas? A verdade é que a vida reduzida a uma corrida individual pelo
sucesso econômico, com a ilusão de que tendo sucesso, e por tanto dinheiro,
compraremos o resto, é uma absurda ilusão que nos levou à civilização de guetos
de riqueza e miséria que hoje vivemos.
É significativo que em muitos lugares jovens, e até
crianças, às vezes com apoio dos professores – outra classe á procura do
sentido do que ensina – estão arregaçando as mangas e começando a tomar
iniciativas organizadas. Vimos na Itália um movimento de crianças pela
recuperação das praças. Um filme-reportagem feito pelas próprias crianças
mostra a passeata, a negociação com a prefeitura, e o resgate progressivo de
praças transformadas em estacionamento, para que voltem a ter água, árvores,
espaço para brinquedos e jogos, uma dimensão de estética, de lazer, de
convívio. Em muitas cidades já há câmaras-mirins, e não se podem aprovar
projetos de espaços públicos sem o aporte do interesse organizado das crianças.
Em muitos lugares, foram organizados trajetos seguros, acompanhando as
principais rotas das crianças entre as escolas e lugares de lazer, parar
melhorar a sua mobilidade e sentimento de liberdade na sua cidade: a tecnologia
é simples, são aqueles passinhos pintados na calçada, semáforos, algum reforço
de policiamento. O que estas experiências têm em comum, é o sentimento, por
parte das crianças, de estarem recuperando o seu direito à cidade, à cidadania.
Em Valparaíso, vimos uma experiência de crianças de rua que,
com o apoio de uma ONG, passaram a resgatar os espaços vazios de um bairro, a
organizar as suas próprias bandas de música, eventos culturais, a ponto que
hoje as seis escolas formais do bairro se associaram ao projeto, e desenvolvem
atividades de resgate dos espaços públicos, fazem aulas sobre meio-ambiente
melhorando o próprio entorno, estudam ciências sociais melhorando o ambiente
social do bairro. Aqui também, a cidade é deles, e fazer uma coisa útil e
prazerosa não é o resultado de um emprego que lhes “dão”, mas de uma iniciativa
que lhes pertence.
O que isto aponta, na realidade, é a necessidade de
evoluirmos de uma visão em que a organização social se resume a um Estado que
faz coisas para nós, e de empresas que produzem coisas para nós, para uma visão
em que a sociedade organizada volta a ser dona dos processos sociais, e
articula as atividades do Estado e das empresas em função da qualidade de vida
que procuramos. A expansão das organizações da sociedade civil, a força do
terceiro setor, as políticas de desenvolvimento local e em particular do
bairro, o resgate das funções sociais do Estado, o surgimento da
responsabilidade social e ambiental das empresas, a crítica às grandes
corporações da especulação financeira, do monopólio de produtos farmacêuticos,
de comercialização de armas, o próprio surgimento muito mais amplo da noção de
que um outro mundo é possível, pertencem todos a um deslocamento profundo de
valores que estamos começando a sentir na sociedade em geral.
Como indivíduos, podemos melhorar a nossa casa, batalhar o
estudo para os nossos filhos, comprar um carro melhor. Mas as mudanças sociais
dependem de organização social. O sentimento de desorientação é sentido como
sofrimento individual, mas as raízes e as soluções são mais amplas.
Nota
Cities for Children, ideias sobre como poderiam ser
organizadas as cidades se levássemos em conta as crianças. Sheridan Bartlett et al., Cities for Children,
Earthscan, London 1999 www.earthscan.co.uk
*Laidslau Dowbor é professor da PUC-SP, economista e
consultor de várias agências das Nações Unidas. A presente nota se apoia no
estudo mais amplo A Economia da Família,
http://dowbor.org/2013/05/economia-da-familia.html/
Fonte: Carta Maior
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