O capitalismo sustenta esta máquina de pilhagem de
miseráveis com a cumplicidade da sociedade e do sistema financeiro. Ao aceitar
o dinheiro do tráfico, os bancos se omitem ante o terror imposto a pessoas
indefesas. É dinheiro sujo procedente de bordéis, masmorras, carvoarias,
barracões.
“O trafico de pessoas vem, nas últimas décadas, e
particularmente nos últimos anos, tornando-se um problema de dimensões cada vez
maiores, a ponto de ser denominado como a ‘a escravidão contemporânea’.
Constitui-se um crime de proporções alarmantes e com um grau de desumanidade
inimaginável. Um afronta à dignidade humana que envenena e envergonha a
humanidade”, destaca a Irmã Eurídes Alves de Oliveira, em entrevista por e-mail
à revista IHU On-Line.
Irmã Eurídes é religiosa da Congregação das Irmãs do
Imaculado Coração de Maria, mestra em Ciências da religião, pela Universidade
Metodista de São Paulo – Umesp, coordenadora da rede Um Grito Pela Vida e
integrante da coordenação do GT de Enfrentamento ao Tráfico Humano da
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quais os principais passos para a realização
do sonho da erradicação do tráfico de seres humanos?
Eurídes Alves de Oliveira – O tráfico de pessoas configura
em nossos dias uma grande chaga social, que desumaniza e crucifica milhões de
pessoas em todo o planeta. Constitui uma das formas mais explícitas da
escravidão do século XXI. Reflete profundas contradições históricas das
relações humanas e sociais da humanidade. Vulnera e viola a dignidade e a
liberdade de numerosas pessoas, particularmente mulheres e crianças,
mercantilizando e ferindo seus corpos, matando seus sonhos e direito de viver.
Configura hoje uma das piores afrontas à dignidade humana e um das mais cruéis
violações dos direitos humanos. Um afronta à imagem do Criador. Sua erradicação
é sonho e missão de todos nós, que acreditamos na possibilidade de um “outro
mundo possível”, em uma sociedade pautada no direito, na justiça social e na
superação de toda forma de violência, exclusão e tráfico. Na manifestação do
Reino de Deus como um espaço de vida para todos/as.
A realização deste sonho, deste projeto, supõe a superação
da indiferença e da alienação da população em geral em relação a esta
realidade-clamor. Um firme compromisso de todos: igrejas, sociedade civil e
Estado. Urge uma ação determinada e firme de todos. Das autoridades
competentes, para coibir, punir os que traficam. Do estado e da sociedade no
sentido de denunciar, informar, e educar, assistir e proteger as vítimas, e
acima de tudo de lutar pela superação das causas geradoras e sustentadoras
desta iníqua realidade.
Sociedade sem tráfico
Só será possível a concretização do sonho de uma sociedade
sem tráfico de pessoas, se houver uma ampla comoção e mobilização social e
política, articulada em redes de proteção e defesa de direitos das populações
empobrecidas, vítimas em potencial deste hediondo crime. Através da gestação de
um novo modelo de desenvolvimento, que centre sua atenção nas pessoas e nas
suas necessidades básicas. Trata-se de uma tarefa que se impõe a todos nós como
imperativo humano e divino.
Concretamente, o empenho em construir uma sociedade sem
tráfico de pessoas consiste num processo permanente de intervenção em todos os
níveis e dimensões. Através de ações locais de sensibilização e informação,
pelas lutas por políticas públicas que garantam os direitos fundamentais das
vítimas, principalmente a adolescência, juventudes e mulheres, pelo efetivo
cumprimento e adequações na legislação e dos mecanismos de proteção e controle
dos Estados-nação.
IHU On-Line – Como compreender que o tráfico de pessoas está
em terceiro lugar na economia mercadológica do crime organizado, perdendo
apenas para o tráfico de armas e drogas?
Eurídes Alves de Oliveira – O tráfico de pessoas não é uma
questão que se esgota em si mesma; não é um problema isolado ou apenas de
índole moral. Está estreitamente conectado com mecanismos globais derivados de
uma estrutura política e econômica alicerçada na injustiça, na violência e na
exacerbada sede de lucro por partes das elites dominantes. O tráfico de pessoas
e as muitas outras faces da pobreza e da exclusão, que atinge milhões de
pessoas em todo mundo, é resultado de um sistema estruturado e sustentado pela
lógica do mercado, cujo fim é o acúmulo da riqueza nas mãos de uns poucos via
mercantilização de tudo, até da pessoa humana. É o espelho da irracionalidade
do capitalismo global, que para manter sua soberania imperialista utiliza-se
desses meios espúrios como o trafico drogas, pessoas e armas como canais de
enriquecimento e poder.
Elite triunfante
Como bem expressa Élio Estanislau Gasda , “há uma elite
triunfante e exibicionista, que trafega em seus jatinhos, banqueiros,
empresários, senhores da mídia que deram as costas aos milhares de seres
humanos empurrados para os vales da morte do capitalismo. Aí se escondem os
crimes mais cruéis contra a vida humana, como a escravidão e o tráfico de seres
humanos. O capitalismo sustenta esta máquina de pilhagem de miseráveis com a
cumplicidade da sociedade e do sistema financeiro. Ao aceitar o dinheiro do
tráfico, os bancos se omitem ante o terror imposto a pessoas indefesas. É
dinheiro sujo procedente de bordéis, masmorras, carvoarias, barracões. São
dólares de sangue extraído destes reféns dos criminosos vorazes cujo poder está
longe de esgotar-se”.
Os agentes, “empresários do crime” do tráfico de pessoas que
vão desde os aliciadores até os agenciadores mais ocultos do sistema, fazem
parte de uma rede bastante complexa e bem articulada que envolve inúmeras
pessoas e instituições que deveriam estar a serviço da vida e dos direitos das
pessoas, mas que se articulam e agem contrariamente, configurando um cenário de
morte de “nova e velha escravidão”.
IHU On-Line – O que faz do tráfico de pessoas um dos mais
urgentes apelos históricos para a sociedade em nossos dias?
Eurídes Alves de Oliveira – O tráfico de pessoas é uma das
formas mais antigas de violação de direitos e de ameaça à vida e à dignidade
humana. Nas últimas décadas correram profundas mudanças estruturais na economia
e na geopolítica mundial, configurando o cenário de um mundo globalizado e
portador de inúmeras possibilidades. O capital e a informação se locomovem com
facilidade, rapidez e agilidade. Assiste-se a um grande avanço no campo das
redes de comunicação e um amplo movimento de mobilidade humana, ampliados os
fluxos migratórios, dentro dos quais o tráfico de pessoas é uma das faces obscuras.
O tráfico de pessoas vem, nas últimas décadas, e
particularmente nos últimos anos, tornando-se um problema de dimensões cada vez
maiores, a ponto de ser denominado como a “a escravidão contemporânea”.
Constitui-se um crime de proporções alarmantes e com um grau de desumanidade
inimaginável. Trata-se de um afronta à dignidade humana que envenena e
envergonha a humanidade. O Brasil, país de origem, trânsito e destino desta
prática criminosa, é responsável por 15% das pessoas exportadas da América Latina
para a Europa.
Apelo histórico
O tráfico de pessoas constitui-se no urgente apelo histórico
pela sua gravidade e amplitude. Trata-se de um delito de grande incidência
mundial na contemporaneidade. Apesar da sua amplitude, é uma realidade ainda
bastante oculta nos cenários e agendas das instituições. O tráfico de pessoas
funciona como uma epidemia silenciosa que vai ceifando vidas e sendo tolerada
pela sociedade como um problema distante e de pouca relevância. Urge aguçar
nossa capacidade de pessoas históricas e construtoras da história. Romper com o
silêncio que faz novas vítimas. A crueldade do escândalo do tráfico de pessoas
exige uma opção pastoral decidida e inegociável. Sua presença dolorosa e
perturbadora é sacramento da presença de Deus clamando por libertação.
IHU On-Line – Quais são os fatores que favorecem a entrada
de pessoas como vítimas deste crime? A pobreza, o desemprego e a ausência de
educação podem ser citados nesse sentido?
Eurídes Alves de Oliveira – Inserido na complexa estrutura
do modelo de desenvolvimento capitalista, o tráfico de pessoas tem na
globalização excludente a causa e cenário para o seu surgimento, crescimento e
sustentação. Como um fenômeno multifacetário, são muitos os fatores básicos que
contribuem para a entrada das pessoas nesta rede criminosa, fatores de ordem
socioeconômica e política, cultural e ideológica: a pobreza, a ausência de
oportunidades de trabalho, a discriminação de gênero, a violência doméstica, a
desinformação, a cultura hedonista veiculada pela mídia, a instabilidade
política, econômica em regiões de conflito, a migração forçada, o turismo
sexual, a corrupção das autoridades, leis deficientes, a impunidade, são os
mais citados pelos estudiosos do assunto como fatores que favorecem a inserção
das pessoas neste mercado do crime.
IHU On-Line – Qual o perfil das mulheres que são
particularmente vulneráveis ao tráfico de seres humanos?
Eurídes Alves de Oliveira – O tráfico de mulheres e
adolescentes para fins de exploração sexual é resultado das contradições
sociais acirradas pela globalização e pela fragilidade dos Estados-nações,
aprofundando as desigualdades de gênero, raça e etnia. O perfil das mulheres
traficadas em geral são: pessoas situação de vulnerabilidades social,
desempregadas, mães solteiras, com pouco estudo, que já sofreram violência.
Quanto à etnia, há uma predominância para as afrodescendentes ou indígenas. São
oriundas na sua maioria das regiões mais periféricas e sem condições dignas de
sobrevivência. Mulheres que carregam o sonho e a disposição de conseguir um
futuro melhor e para si e sua família.
IHU On-Line – Qual a importância de promover uma edição da
Campanha da Fraternidade tendo como tema o tráfico de pessoas?
Eurídes Alves de Oliveira – O enfrentamento ao tráfico de
pessoas está contemplado de forma oficial pela Igreja no Brasil, CNBB, nas
Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil 2011-2015, (n. 107
e 111): “O serviço à vida começa pelo respeito à dignidade da pessoa humana...
Atenção especial merecem também os migrantes forçados pela busca de trabalho e
moradia... as vítimas do tráfico de pessoas”. O que evidencia que a Igreja tem
consciência de que o tráfico não é somente um problema sociológico, é também
eclesiológico que exige uma decidida opção pastoral. Nessa perspectiva, a
Campanha da Fraternidade é um espaço-meio para uma prática evangelizadora já
consagrada da Igreja, a fim de consolidar suas opções por em pauta e contribuir
com a sociedade na reflexão e enfrentamento das realidades mais gritantes que
afligem a humanidade. É uma iniciativa mobilizadora de convocação dos cristãos
e de todas as pessoas de boa vontade para uma problemática social que suscita
compromisso.
A Campanha da Fraternidade sobre o tema do tráfico humano é
sem dúvida de suma importância, dará maior visibilidade ao tema-realidade e
contribuirá para fortalecer as iniciativas de enfrentamento já existentes,
contribuindo para a formação da consciência da sociedade no sentido de romper a
indiferença, compreender e atuar no seu enfrentamento.
IHU On-Line – Como tem sido o trabalho da rede Um Grito pela
Vida?
Eurídes Alves de Oliveira – A rede Um Grito pela Vida é
intercongregacional. É constituída por aproximadamente 150 religiosas/os de
diversas regionais e congregações. Trata-se de um espaço de articulação e ação
profético-solidária da vida religiosa consagrada do Brasil. Desde 2006, como
parte constitutiva da CRB Nacional, atua de forma descentralizada e articulada
com as organizações e iniciativas afins, nas diversas localidades, estados e
municípios. Integra a Talitha kum – rede internacional de vida religiosa
consagrada.
Os religiosos (e religiosas) que integram a rede Um Grito
pela Vida atuam nas diversas regiões do país, articuladas em núcleos; eles (e
elas) estão integrados com as organizações eclesiais e civis, fomentando,
promovendo e/ou participando de atividades e processos de prevenção e
assistência às vítimas, assim como na intervenção política, buscando instruir e
instrumentalizar a sociedade, coibindo o crescimento da inserção de vítimas
neste mercado do crime. Hoje esta rede conta com 17 núcleos articulados que se
encontram periodicamente.
A rede Um Grito pela Vida nos permite ampliar alianças
intercongregacionais em prol da vida ameaçada e ferida, das pessoas traficadas
e violentadas em seus direitos e nos possibilita ensaiar passos de encarnação
em novos espaços sociais, políticos e teológicos. Com o lema “Enfrentar o
tráfico de pessoas é nosso compromisso”, a rede desenvolve um conjunto de
atividades, tais como:
– Sensibilização e informação, priorizando os grupos em
situação de vulnerabilidade, lideranças comunitárias, agentes de pastoral e
outros.
– Organização de grupos de reflexão e estudo, aprofundando
as causas e situações que o favorecem tais como: questões de gênero, violência,
modelo de desenvolvimento, grande construções e projetos, grandes eventos,
hedonismo midiático, aumento da precariedade do trabalho, corrupção,
impunidade, entre outras.
– Capacitação de multiplicadores/as, visando ampliar a ação
de enfrentamento ao tráfico de pessoas, principalmente para fins de exploração
sexual.
– E participação e mobilização social e política de
incidência na definição e efetivação de politicas públicas de enfrentamento ao
tráfico de pessoas.
Fonte: Ihu (Por: Ricardo Machado)
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