Mulheres que escolhem Portugal e Espanha para estudar, fazer
negócios ou simplesmente mudar de ares têm que provar o tempo todo que não
estão lá para se prostituir ou arrumar marido. Fomos aos dois países rastrear
as origens do preconceito que se espalha pela Europa e está cada dia mais agudo.
A estudante gaúcha Manoela Rysdyk, 28 anos, e uma amiga
andavam em Lisboa, pelas ruas do Bairro Alto, cheio de bares charmosos e onde
não circulam carros. Um motorista afoito surgiu num Alfa Romeo, buzinou e
gritou para elas saírem da frente. Manoela respondeu e o homem, irritado, saiu
do carro já acertando socos e pontapés nas duas. A polícia chegou, o português
se adiantou: "São prostitutas brasileiras". Enquanto a gaúcha e a
amiga tentavam dar a versão delas, o policial pediu o passaporte e decretou:
"É mentira, vocês são mesmo prostitutas brasileiras".
Manoela ficou uma semana sem pôr o pé na rua, chorando.
Pouco tempo depois, de volta a Porto Alegre, recebeu o diagnóstico de síndrome
do pânico. Na Espanha, a nutricionista paraense Sueli Moreira, 38 anos,
preferiu perder a fiança que pagou a continuar na república onde alugava um
quarto. Como parte do seu doutorado pela Universidade de São Paulo, precisava
passar sete meses em Barcelona. Já nos primeiros dias no novo endereço, onde
viviam apenas pós-graduandos estrangeiros, ouviu da esposa de um colega a
determinação de não chegar perto do marido dela: "Toda brasileira é
prostituta", sentenciou.
São situações como essas que as brasileiras têm enfrentado
no dia-a-dia em Portugal e na Espanha. Não faz diferença nem o grau de
formação, nem a qualificação profissional, nem mesmo o tipo físico. No
imaginário europeu, a mulher brasileira é livre, sensual, não mede esforços
para atingir seus objetivos e não vê barreiras que a impeçam de trocar de par
se ela não está feliz. Essa lista de atributos atesta que es tamos falando de
uma mulher bem-reslvida e dona de si, mas na Europa tem sido sinônimo de mulher volúvel, infiel,
cidadã nada confiável.
De onde vem a imagem?
O Carnaval do sambódromo, que os portugueses só viam na TV,
se transferiu para as ruas de Lisboa, Algarve e Ilha da Madeira. En quanto os
lusitanos usam fantasia e casaco sob a baixa temperatura de fevereiro, muitas
brasileiras revivem, com plumas e seios nus, as passistas do Carnaval carioca -
o que escandaliza a moral conservadora do lugar. Além disso, está fortemente
presente na fantasia portuguesa a Gabriela Cravo e Canela, personagem concebida
pelo escritor Jorge Amado como baiana sensual, de ancas fartas e um cheiro
inconfundível de prazer. "A Gabriela encarnada por Sonia Braga passou a
ser a nossa vizinha", diz a psicóloga Maria Bibas.
"Foi a primeira novela brasileira exibida em Portugal,
no fim dos anos 70, ou seja, foi assim que os portugueses descobriram a
brasileira, uma espécie de fruto proibido."
O problema, resume Beatriz Padilla, autora de um estudo
sobre a imigrante brasileira em
Portugal, é que o limite entre ficção e realidade é tênue. "Entre a
imagem da brasileira calorosa e exuberante e a da prostituta tem só um
passo", afirma.
Já o jornal PÚBLICO, o terceiro maior do país, escancara o
preconceito contra os brasileiros que se fixaram nos arredores da capital, como
neste texto: "A primeira vaga, vinda de Minas Gerais, era majoritariamente
masculina. A região até agradecia o aparecimento de mais mão-de-obra (...)
Ninguém contava, contudo, que anos depois esses imigrantes conseguissem
legalizar-se e trouxessem suas mulheres e filhos. Era ainda menos previsível
que a informação sobre as oportunidades laborais na florescente região da Ericeira
atravessasse o Atlântico e seduzisse jovens solteiras de lingerie reduzida,
pondo em perigo a integridade dos matrimônios de Barril".
O veículo tem entre suas bandeiras o combate à imigração,
que levou para lá 100 mil brasileiros, hoje regularizados ou em vias de
legalização.
Sem contar os 50 mil clandestinos, esse grupo forma a maior
comunidade estrangeira em Portugal, que enfrenta recessão e desemprego. As
reportagens, claro, provocam terrível
rejeição. Um dos casos mais graves ocorreu há cinco anos, quando, em Bragança,
norte do país, as mulheres traídas saíram em manifesto, acusando as prostitutas
brasileiras de destruírem seus lares. Conhecido como "Mães de
Bragança", o movimento colocou Portugal e "as meninas do Brasil"
na capa da revista TIME. Depois disso, tornou-se difícil reverter a imagem
distorcida.
Renegando a herança
Recentemente, a intolerância foi medida no trabalho Os
Imigrantes e a População Portuguesa, Imagens Recíprocas. O estudo concluiu que
os portugueses reconhecem os brasileiros como alegres e bem-dispostos. Mas não
nos consideram competentes, muito menos honestos. Pior: 70% dos entrevistados
disseram que as brasileiras têm contribuído para a prostituição no país. Com
tudo isso, a advogada paulista Marina Alves de Souza, 28 anos, se retrai para
não parecer alegre demais, espontânea demais. "Passei a ser reservada e a
conter meu senso de humor", revela. "Sou obrigada a provar o tempo
todo a minha capacidade para não ser con fundida outra vez", diz.
Marina faz mestrado em Portugal e, ao responder a uma oferta
de emprego, se deparou com o teste da cama. O advogado que a contrataria, em
vez de checar o currículo, convidou-a para passar um fim de semana com ele
antes da aprovação. "Me senti desvalorizada." Toda vez que ela repete
seu discurso contra a discriminação, ouve dos amigos estrangeiros o comentário:
"Ah, mas você é uma brasileira diferente das outras!"
Na Espanha, a mineira Janine Avelar, 31, pós-graduanda na
Universidade de Barcelona, conta que viveu situação parecida ao recorrer ao
site de empregos Loquo.com. A informação
de que fala cinco línguas e tem experiência em quarto setores profissionais não
bastou: A primeira vaga que me ofereceram foi numa casa de massagens".
Por mais que elas tentem neutralizar a ginga - que para o
sociólogo Gilberto Freyre é talento herdado dos negros - e amenizar o decote,
que faz parte do histórico brasileiro de vestir, há algo que as entrega: o
sotaque. A paulistana Lucinda Raimundo, gerente de vendas, 38 anos, filha de transmontanos, com
nome e feições de portuguesa, diz bom 'djia' ", e os lusitanos entendem
que ela fala o "português com açúcar". Lucinda tentou ser direta
e lacônica ao telefone quando ligou para o número dos classificados para
alugar um apartamento. Do outro lado da linha, uma senhora reconheceu o sotaque
e disparou: Eu não alugo para brasileiras".
Rótulo reforçado
Verdade seja dita, o rótulo mulher objeto foi criado e alimentado pelo Brasil. Se o
país quiser acabar com ele, terá de
começar em casa. A partir do regime militar, a divulgação sobre o país se
baseou em corpos seminus. O governo já percebeu o engano e, de alguns anos para
cá, tem abandonado o apelo das garotas de fio-dental. Mas a mudança de rumo não
foi assimilada por marcas como a Garoto, que, em 2005, numa feira de
alimentação, em Lisboa, contratou mulatas de biquíni que rebolavam e
distribuíam chocolates. A festa se repete sempre que os profissionais de
marketing querem chamar a atenção para produtos nacionais em eventos
estrangeiros.
Na mesma linha, agências de turismo espanholas usam a mulata
do tipo exportação para oferecer pacotes para o Brasil.
Citam as praias paradisíacas, o axé music, o calor tropical
e "as melhores mulheres do mundo". Para Daniela Alves, do Núcleo de
Pesquisa em Relações Internacionais da USP, o principal elemento da formação do
preconceito é essa imagem vendida sobre o nosso país no exterior. "Quando
as agências de turismo e guias agem
dessa forma, visam claramente fortalecer o turismo sexual", opina.
Caso de polícia
Toda vez que o assunto pula para as páginas policiais, a
repercussão se estende sobre as 67 mil brasileiras que vivem na Espanha e as 54
mil que moram em Portugal. Em fevereiro, a imprensa publicou que as brasileiras
dominam a prostituição de luxo na ilhas espanholas. Oito em cada dez nasceram
no nosso país. Foram presos sete chefões, incluindo dois brasileiros, donos de
uma megarrede de exploração sexual nas Ilhas Canárias. Logo depois, outra
reportagem mostrava que só nas Ilhas Baleares a prostituição de brasileiras
movimenta 300 milhões de euros (cerca de 770 milhões de reais).
A jornalista baiana Larissa Ramos, 28 anos, sente o rescaldo
do noticiário na pele. "O dono da pizzaria onde trabalhei, em Barcelona,
vivia perguntando: 'Quer subir aqui comigo para se trocar?' ", lembra.
"Uma vez, contou que tinha contatos na PLAYBOY. Eu falei: 'Ótimo, sou
jornalista, adoraria escrever para a revista'. E ele devolveu: 'No seu caso,
seria para posar nua, minha filha'."
Embaraços no amor
A nova lei de estrangeiros pune as uniões de conveniência,
mas muitas brasileiras ainda "compram matrimônio" para tirar o green
card europeu. Isso dificulta a vida de quem quer casar de verdade: a paulista
Beatriz Saiani, 36 anos, saiu do mestrado nos Estados Unidos para uma pausa em
Portugal. Conheceu Manuel Severino e se casou. Tempos depois, já com dois
filhos, o marido lhe revelou que seu melhor amigo havia dito: "Com
brasileira? Nunca vai dar certo". O designer português Daniel Bandeira
corrobora: "A idéia que predomina aqui é a de que a brasileira só está
atrás de homem e, se ele for rico, tanto melhor".
Cartão vermelho
A União Européia redobrou a vigilância nas fronteiras para
conter a imigração ilegal e o tráfico de pessoas. A operação Amazon filtra
sul-americanos nos aeroportos de Madri, Barcelona, Lisboa, Londres, Paris,
Milão, Roma, Amsterdã e Frankfurt. Mas tem cometido repugnantes excessos.
Portugal barrou 3 598 estrangeiros em 2006. Deles, 1749 eram brasileiros
(48,6%). Em 2007, a Espanha recusou 3 mil brasileiros, a média diária era de
8,2. Em fevereiro deste ano, a média subiu para 15. Até que a denúncia de
discriminação sexual, feita pela física paulista Patrícia Magalhães à imprensa
internacional, causou um embaraço diplomático entre Brasil e Espanha. Ela voaria
de Madri para um congresso em Lisboa, mas acabou presa por 53 horas e mandada
de volta. Dias depois, a Polícia Federal passou a dificultar a entrada de
espanhóis no Brasil, com endosso do governo.
Fonte: www.claudia.com.br
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