Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Se eu, o Senhor e mestre, vos
lavei os pés, também deveis lavar-vos os pés uns dos outros”
(Jo 13,14)
Jesus sente que sua “hora” se
aproxima, reúne os seus discípulos e manifesta-lhes o último desejo com um
gesto que marcará para sempre a história da humanidade: o “lava-pés”.
O texto joanino nos diz que Jesus
realizou o “lava-pés” durante a ceia. Todas as refeições tinham o “lava-mãos”.
Algumas ceias especiais tinham o “lava-pés” no início como sinal de acolhida e
de hospitalidade.
Jesus realiza seu gesto enquanto
a refeição está acontecendo. Pode ser que Ele esteja colocando uma relação
muito estreita entre o comer e o servir,
melhor dizendo, entre a Eucaristia e o serviço solidário.
Até Jesus, os convidados para a
refeição eram servidos e saiam satisfeitos. A partir de Jesus, os convida-dos
para a refeição servem-se uns aos outros e saem da refeição para servir outros.
O dom recebido é partilhado entre os seus, mas isso não basta, ele precisa ser
colocado à disposição de todos, a começar pelos mais carentes. O dom é, ao
mesmo tempo, graça e missão. A força que ele traz é para conduzir à vida em
abundância.
Jesus “levantou-se da mesa, tirou
o manto, pegou uma toalha e amarrou-a à cintura”.
“Levantou-se da mesa”: este gesto
de Jesus assume um significado especial. Revela-nos que não se pode servir
permanecendo em nosso comodismo. O gesto de levantar denota que há algo por ser
feito.
“Ficar de pé” é posição que expressa prontidão para servir;
para isso é preciso deslocar-se do próprio “lugar” e descer até o “lugar” do
outro. É desinstalar-se do próprio bem-estar, é dinamismo.
Jesus não faz um gesto teatral;
Ele revela aos apóstolos um “novo ângulo”
ou um novo modo de ver as coisas: não a partir do lugar dos comensais,
mas a partir da perspectiva de quem não está sentado à mesa.
O gesto de Jesus nos convida a
deslocar-nos, ou seja, ocupar o lugar da pessoa que não participa da mesa. Quê
novidade percebemos a partir deste lugar?
“Estar à mesa” é sempre sinal de
fraternidade, de comunhão, mas é necessário saber levantar-se na hora certa
para poder servir com amor.
“Tirou o manto”: Ele mesmo se
despoja. Abrir mão do manto é uma iniciativa livre e soberana, que nasce de seu
próprio interior. O manto impede a liberdade de movimentos, não permite fazer o
serviço com facilidade. Há “mantos” que são sinais de poder.
O Senhor assume, em tudo, a
condição de servo, para servir. Troca o manto pela toalha-avental: este parece
ser o distintivo fundamental, divisor de águas entre a religião antes e depois
de Jesus Cristo.
As autoridades religiosas
vestiam-se do distintivo de autoridade-poder
para servir o povo. Jesus despe-se dele para servir. Ele serve verdadeiramente
como servo. Os outros serviam como senhores.
É necessário arrancar “todos os
mantos do poder” para poder redescobrir a verdadeira dignidade humana desnuda e
despojada de todas as aparências. Não há serviço sem se despir de todas as
aparências de poder, de força, de prestígio. Não é possível amar colocando-se
longe do outro.
“Coloca água numa bacia e começa
a lavar os pés dos discípulos e a enxugá-los com a toalha com que estava
cingido”. Normalmente os preparativos ficam por conta de outros; é o servo que
prepara a bacia com água para que o senhor lave os pés de outro. Aqui Jesus
assume os preparativos, não faz trabalho pela metade. A água derramada não é
feita com violência, nem com força, mas com extrema delicadeza, com atenção e
amor. Amar é tocar de perto, ajudar, caminhar juntos...; nesse gesto de
elevação Jesus revela um amor “físico”, de contato corporal e de serviço, de
ajuda humana e de dignidade. Ele não quis só ensinar, dar comida, mas
aproximar-se, ajoelhar-se, lavar.
O gesto que Jesus faz expressa o
que Ele é. Ele é inteiramente servo. Todo o seu ser está a serviço. Ele se dá
naquilo que faz, e faz o que propõe aos discípulos.
Lava os pés dos discípulos.
Inclina-se aos pés deles, até o chão. Com reverência, o mestre lava os pés dos
discípulos: essa é a dinâmica que revela a novidade do Reino de Deus. “Lavar os
pés” dos discípulos é cuidar dos que servem os servos.
Jesus sabia que seus discípulos tinham
pés frágeis, pés de argila. E se os pés são, na mentalidade judaica, símbolo de
infância e prazer, seus pés precisariam, sem dúvida, ser lavados de todas as
suas memórias negativas. Cada discípulo era uma criança doente, e era preciso,
em primeiro lugar, curar essa criança antes que ela se colocasse a caminho para
anunciar o Evangelho, a Boa-Nova.
“Depois que lhes lavou os pés,
retomou o manto, voltou à mesa e lhes disse: ‘compreendeis o que vos fiz?’”
Jesus volta ao lugar em que estava antes, mas volta diferente. Ele repõe o
manto, mas não depõe a toalha-avental. Ele assume e visibiliza uma nova
realidade que caracteriza o novo modo de ser, que é próprio dos cristãos. O
amor-serviço tem como primeiro símbolo o avental. O avental é o selo de autenticidade
que orienta, credita e dignifica a autoridade que se faz serviço. A autoridade
cristã nasce do serviço, se sustenta nele, só persevera servindo.
Jesus pede que a dinâmica
iniciada por Ele tenha continuidade, seja progressiva e circular, partindo do
meio para a periferia em forma de círculo a fim de atingir a todos. O novo modo
de exercer a autoridade é praticado primeiro entre todos os que participam da
ceia, mas deve ser exercido sem limite de tempo ou de espaço, isto é, deve
atingir toda criatura em todos os tempos até a plenitude.
Todos os gestos do lava-pés
possuem uma sacralidade própria, uma reverência, uma paz e calma especial. Não
há pressa, não há agressividade, não há nada que possa dar a mínima aparência
de algo que fosse obrigado. No corre-corre da vida é urgente reassumir a
linguagem dos gestos que se perdem na pressa, na mania de fazer muitas coisas
porque outras nos atropelam e nos distraem do essencial.
Texto bíblico: Jo 13,1-15
Na oração: Seja você alguém que,
na admiração da gratidão, se aproxima deste gesto ousado de Jesus (tirar o
manto e vestir o avental), a fim de purificar sentimentos, endireitar caminhos
e aprofundar a caminhada na convivência com os irmãos.
A sua identificação com Jesus lhe
confere um novo modo de ver, avaliar, escolher e posicionar. É a contemplação,
a postura mais envolvente, que lhe pode fazer enxergar o milagre; e,
sensibilizado, abrir-se-á à dimensão do maior serviço, por pura gratuidade.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de
Espiritualidade Inaciana – CEI
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