A assessora de Koinonia, Ester Lisboa (de pé) em uma das rodas de conversa da Rede Religiosa de Proteção à Mulher Vítima de Violência.
Existem interpretações e posturas religiosas que tendem mesmo a agravarem a situação das pessoas que sofrem violência doméstica. "Isso acontece principalmente quando falamos de igrejas preocupadas em pregarem a religiosidade e não o Evangelho de [Jesus] Cristo. Estão mais preocupadas em mostrarem uma estrutura perfeita, rígida em seus princípios, mas pecam em relacionamento. Não há investimento nas vidas das pessoas.
Não surpreende, principalmente no
dia de hoje, que as matérias e artigos sobre desigualdade de gênero e violência
contra a mulher tragam dados chocantes a respeito do problema, a fim de
contextualizar sua gravidade (isso, claro, excluído todo o conteúdo que
insistentemente retoma uma interpretação unicamente celebratória/conservadora
do Dia Internacional da Mulher).
No entanto, o fato estarrecedor
de uma mulher ser assassinada a cada duas horas no país não deve fazer com que
outra questão seja obscurecida: a da constância com que atos violentos são
praticados, em especial, no ambiente doméstico. Das mulheres que afirmam terem
sofrido violência – contingente que equivale a 19% da população do país -, 31%
ainda precisam conviver com o agressor; destas, 14% seguem como vítimas de
repetidas agressões. Esses números são produto de um círculo alimentado pela
ideologia machista, que trivializa condutas abusivas, dificultando o próprio
reconhecimento da violência enquanto tal.
Num país composto mais de 86% por
cristãos, onde apenas 8% da população declaram não possuírem religião, as
justificativas religiosas para as desigualdades de gênero e a violência contra
a mulher não devem ser desprezadas no entendimento desse fenômeno, talvez ainda
mais cruel do que apontam os dados.
É o que destaca a assessora de
Koinonia, Ester Lisboa, uma das principais responsáveis por articular a chamada
Rede Religiosa de Proteção à Mulher Vítima de Violência. A iniciativa promove
rodas de conversa em espaços religiosos de diferentes tradições, mas
principalmente em igrejas cristãs, discutindo, prioritariamente, com as
mulheres a importância de enfrentarem a violência, justamente nesses lugares
que regulam práticas e papéis familiares e onde os tabus sobre o tema, muitas
vezes, se exprimem com força de dogma.
"A roda de conversa torna-se
um ambiente relativamente seguro para que as mulheres falem dessas situações de
violência. Nesses momentos, independentemente da denominação religiosa, sempre,
sempre, surgem relatos. E, só falando, identificam essas agressões, que, por
exemplo, não se dão de forma direta contra o corpo delas, como é o caso das
violências psicológica e patrimonial. Muitas dessas são legitimadas por
passagens bíblicas, para subordinarem a mulher e, de certa forma, preservarem o
seu silêncio”, destaca Ester.
Ela também explica que, embora os
relatos surjam espontaneamente no bate-papo, os desdobramentos nem sempre são
tão simples. Segundo Ester, o grande obstáculo é a falta de preparo teológico de
lideranças religiosas, que ainda entendem o lar como um local descolado da
sociedade, não precisando, portanto, estar submetido à universalidade das leis.
"O primeiro passo dessa
nossa rede, diante de um caso de violência, é conversar com a liderança da
igreja ou do terreiro. Existem aí desde comunidades religiosas que acompanham
todo o processo até aquelas que passam a proibirem que as mulheres falem do
assunto, para que aquele não seja um espaço identificado com a violência”,
revela.
Vencendo resistências
Para Suzi Soares, assistente
social especializada em violência doméstica e autora do livro "Primeiro
amor: a história de um abuso”, existem interpretações e posturas religiosas que
tendem mesmo a agravarem a situação das pessoas que sofrem violência doméstica.
"Isso acontece
principalmente quando falamos de igrejas preocupadas em pregarem a
religiosidade e não o Evangelho de [Jesus] Cristo. Estão mais preocupadas em
mostrarem uma estrutura perfeita, rígida em seus princípios, mas pecam em
relacionamento. Não há investimento nas vidas das pessoas. Talvez por medo de
que os casos de abuso comecem a aparecer dentro da própria Igreja, sujando a
imagem, podendo até quem sabe colocarem em risco a coleta de dízimos e
ofertas”, explica.
Embora estimule momentos
exclusivamente voltados para a troca entre mulheres, a rede também conta com a
participação do público masculino. Fabio Mendes, da Igreja Metodista de
Itaberaba, em São Paulo, é um dos participantes da rede. Ele afirma que a
resposta dos homens, com algumas exceções, consiste em justificar a
desigualdade de gênero com passagens bíblicas, mas que, ao mesmo tempo, as
mulheres da sua comunidade religiosa se mobilizaram para que a igreja desse
respostas ao tema da violência. Esta e outras histórias estão no livro "As
mulheres escolhem a vida! – Estudos bíblicos para o enfrentamento da violência
contra a mulher”, produzido pela Assessoria de Direitos Humanos em parceria com
a Federação Metodista de Mulheres e apoio do Departamento Nacional de Escola
Dominical.
"Mas ainda não é majoritário
na igreja evangélica, em geral, a compreensão de que o serviço a Deus se
concretiza no serviço ao próximo. E esta tem sido uma luta que todas as pessoas
que estão trabalhando com este tema, na igreja, têm de enfrentarem”, adverte
Fabio.
A assistente social Suzi, que faz
parte da Comunidade Presbiteriana Villa Lobos, em São Paulo, hoje, trabalha em
iniciativas voltadas para enfrentar a violência em igrejas. Para ela, esses
espaços teriam de ser, de alguma forma, inseridos na rede intersetorial de
atendimento, pois é neles que as mulheres religiosas buscam refúgio em
situações de violência, mesmo que numa perspectiva de encontrar conforto
espiritual.
"No meu caso, tive melhores
resultados com igrejas pequenas, em que conseguimos sentar, conversar sobre
tema, ouvir e pensar juntos em propostas de como enfrentar, do que em igrejas
grandes que parecem querer ‘controlar, para que as coisas não saiam do
controle’”, afirma. Suzi também sugere que um dos caminhos pode ser investir na
capacitação de líderes religiosos, para lidar com o problema.
Fonte: Koinonía
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