terça-feira, 22 de março de 2016

Como enfrentar a violência contra a mulher de dentro das igrejas?

A assessora de Koinonia, Ester Lisboa (de pé) em uma das rodas de conversa da Rede Religiosa de Proteção à Mulher Vítima de Violência.
Existem interpretações e posturas religiosas que tendem mesmo a agravarem a situação das pessoas que sofrem violência doméstica. "Isso acontece principalmente quando falamos de igrejas preocupadas em pregarem a religiosidade e não o Evangelho de [Jesus] Cristo. Estão mais preocupadas em mostrarem uma estrutura perfeita, rígida em seus princípios, mas pecam em relacionamento. Não há investimento nas vidas das pessoas.

Não surpreende, principalmente no dia de hoje, que as matérias e artigos sobre desigualdade de gênero e violência contra a mulher tragam dados chocantes a respeito do problema, a fim de contextualizar sua gravidade (isso, claro, excluído todo o conteúdo que insistentemente retoma uma interpretação unicamente celebratória/conservadora do Dia Internacional da Mulher). 
No entanto, o fato estarrecedor de uma mulher ser assassinada a cada duas horas no país não deve fazer com que outra questão seja obscurecida: a da constância com que atos violentos são praticados, em especial, no ambiente doméstico. Das mulheres que afirmam terem sofrido violência – contingente que equivale a 19% da população do país -, 31% ainda precisam conviver com o agressor; destas, 14% seguem como vítimas de repetidas agressões. Esses números são produto de um círculo alimentado pela ideologia machista, que trivializa condutas abusivas, dificultando o próprio reconhecimento da violência enquanto tal.




Num país composto mais de 86% por cristãos, onde apenas 8% da população declaram não possuírem religião, as justificativas religiosas para as desigualdades de gênero e a violência contra a mulher não devem ser desprezadas no entendimento desse fenômeno, talvez ainda mais cruel do que apontam os dados.

É o que destaca a assessora de Koinonia, Ester Lisboa, uma das principais responsáveis por articular a chamada Rede Religiosa de Proteção à Mulher Vítima de Violência. A iniciativa promove rodas de conversa em espaços religiosos de diferentes tradições, mas principalmente em igrejas cristãs, discutindo, prioritariamente, com as mulheres a importância de enfrentarem a violência, justamente nesses lugares que regulam práticas e papéis familiares e onde os tabus sobre o tema, muitas vezes, se exprimem com força de dogma.

"A roda de conversa torna-se um ambiente relativamente seguro para que as mulheres falem dessas situações de violência. Nesses momentos, independentemente da denominação religiosa, sempre, sempre, surgem relatos. E, só falando, identificam essas agressões, que, por exemplo, não se dão de forma direta contra o corpo delas, como é o caso das violências psicológica e patrimonial. Muitas dessas são legitimadas por passagens bíblicas, para subordinarem a mulher e, de certa forma, preservarem o seu silêncio”, destaca Ester.

Ela também explica que, embora os relatos surjam espontaneamente no bate-papo, os desdobramentos nem sempre são tão simples. Segundo Ester, o grande obstáculo é a falta de preparo teológico de lideranças religiosas, que ainda entendem o lar como um local descolado da sociedade, não precisando, portanto, estar submetido à universalidade das leis.

"O primeiro passo dessa nossa rede, diante de um caso de violência, é conversar com a liderança da igreja ou do terreiro. Existem aí desde comunidades religiosas que acompanham todo o processo até aquelas que passam a proibirem que as mulheres falem do assunto, para que aquele não seja um espaço identificado com a violência”, revela.


Vencendo resistências

Para Suzi Soares, assistente social especializada em violência doméstica e autora do livro "Primeiro amor: a história de um abuso”, existem interpretações e posturas religiosas que tendem mesmo a agravarem a situação das pessoas que sofrem violência doméstica.

"Isso acontece principalmente quando falamos de igrejas preocupadas em pregarem a religiosidade e não o Evangelho de [Jesus] Cristo. Estão mais preocupadas em mostrarem uma estrutura perfeita, rígida em seus princípios, mas pecam em relacionamento. Não há investimento nas vidas das pessoas. Talvez por medo de que os casos de abuso comecem a aparecer dentro da própria Igreja, sujando a imagem, podendo até quem sabe colocarem em risco a coleta de dízimos e ofertas”, explica.


Embora estimule momentos exclusivamente voltados para a troca entre mulheres, a rede também conta com a participação do público masculino. Fabio Mendes, da Igreja Metodista de Itaberaba, em São Paulo, é um dos participantes da rede. Ele afirma que a resposta dos homens, com algumas exceções, consiste em justificar a desigualdade de gênero com passagens bíblicas, mas que, ao mesmo tempo, as mulheres da sua comunidade religiosa se mobilizaram para que a igreja desse respostas ao tema da violência. Esta e outras histórias estão no livro "As mulheres escolhem a vida! – Estudos bíblicos para o enfrentamento da violência contra a mulher”, produzido pela Assessoria de Direitos Humanos em parceria com a Federação Metodista de Mulheres e apoio do Departamento Nacional de Escola Dominical.

"Mas ainda não é majoritário na igreja evangélica, em geral, a compreensão de que o serviço a Deus se concretiza no serviço ao próximo. E esta tem sido uma luta que todas as pessoas que estão trabalhando com este tema, na igreja, têm de enfrentarem”, adverte Fabio.

A assistente social Suzi, que faz parte da Comunidade Presbiteriana Villa Lobos, em São Paulo, hoje, trabalha em iniciativas voltadas para enfrentar a violência em igrejas. Para ela, esses espaços teriam de ser, de alguma forma, inseridos na rede intersetorial de atendimento, pois é neles que as mulheres religiosas buscam refúgio em situações de violência, mesmo que numa perspectiva de encontrar conforto espiritual.

"No meu caso, tive melhores resultados com igrejas pequenas, em que conseguimos sentar, conversar sobre tema, ouvir e pensar juntos em propostas de como enfrentar, do que em igrejas grandes que parecem querer ‘controlar, para que as coisas não saiam do controle’”, afirma. Suzi também sugere que um dos caminhos pode ser investir na capacitação de líderes religiosos, para lidar com o problema.


Fonte: Koinonía

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