Há os que dizem: a Lei do
Evangelho é clara. "Há que amar a Deus e ao próximo como a si mesmo”. Mas,
como fazer isso? E outros dizem: "não há outro caminho a não ser obedecer
a Constituição do país!” E mais: "é evidente que a Lei nos diz que todos
nós somos iguais perante a Ela e assim há de ser.” Mas, como viver isso? Como
expressar essa igualdade? Outros ainda afirmam: "todos devem ser submissos
às leis do país... Ninguém está nem acima e nem abaixo da Lei”. "Toda
desobediência à lei deve ser punida”, gritam juízes e cidadãos comuns. Mas,
quem de fato redigiu as leis e para quem?
E a Lei o que é? Para que serve
ela? Se a Lei fosse uma verdade inquestionável e clara que nos orientasse de
fato não estaríamos nesse caos social, nesse marasmo, nessa divisão produtora
de agressões, as mais estúpidas e banais. Se a Lei fosse ‘amorosa verdade’ não
a tomaríamos em vão e não estaríamos tentando interpretá-la segundo nossas
limitadas visões e percepções e afirmando como absoluto apenas o lado que
conseguimos ver.
A Lei obra de nossas mãos se
torna nosso amparo, nosso apoio, nosso julgamento. Mas também se torna nosso
algoz, nossa torturadora e fonte de injustiças.
Quando não há outros apoios,
quando nosso coração torna-se de pedra e nossa voz levanta-se contra o outro
como lança afiada, quando não há o sentimento da dor alheia, quando apenas os
interesses pessoais vigoram e tornam-se lei, então a Lei que rege o país deixa
de regê-lo. A Lei se torna palavra morta ou servidão, um tecido esgarçado que
de tanto ser puxada por uns e outros para justificarem suas interpretações, ou
melhor, seus interesses claros ou escusos, torna-se quase inoperante. A Lei
então morre como Lei. É enterrada e sobre ela se constrói um túmulo com uma
pesada pedra por cima.
Embora seja necessária e
fundamental para a convivência social e para qualquer regime político, a Lei
passa a se submeter à jurisprudência de uns e outros que se acreditam
verdadeiros intérpretes da Lei e únicos capazes de entendê-la. Se aplicada de
um jeito dizem que é injusta. Se aplicada de outro dizem que foi arbitrária! De
novo, a Lei obra de algumas mãos e de algumas cabeças sobre todas as cabeças
nacionais ou internacionais é puxada por um lado e por outro como uma boneca de
pano desejada ou ambicionada por muitos.
Juízes e advogados agem
convencidos de sua superioridade profissional. Políticos discursam inspirados
por uma pretensa integridade de serviço ao povo e respeito às leis do país.
Religiosos conclamam a paz em nome de seu deus. O povo grita apoiando uns e
discordando de outros, levados pelas emoções à flor da pele geradas pelas
tensões sociais.
Praça de guerra em todos os
lugares! Incitação e excitação das mais torpes emoções orquestradas pelos meios
de comunicação que convencem o público de sua "sagrada” missão de
informar. Vítimas e torturadores uns dos outros, amantes e algozes, escravos e
libertos, com ânimos exaltados, buscamos saídas para a asfixia coletiva que nos
atinge.
Escrevo para buscar luzes no
pensamento. Sim, alguma luz que me faça entender a confusão em que estou e
estamos. Não escrevo para ninguém em particular, escrevo primeiro, para mim
mesma como uma premente necessidade de compreender algo de meu/nosso
totalitarismo insano. Sim, totalitarismo individual e coletivo. Cada um
querendo ser o tirano dos outros ou o herói crucificado em favor dos outros.
Cada um querendo impor ao outro a punição que não quer para si ou o prêmio
glorioso não revelado.
Escrevo como frágil resposta à
ansiedade que me oprime diante da espessa névoa política que nos envolve. Como
se não bastasse a lama da Samarco em Minas Gerais, ou as chuvas abundantes que
destruíram tantas moradias no sul, ou os hospitais repletos de bebês enfermos
com a picada de um mosquito... Estamos perdidos... Desamparados... A Lei que
fizemos volta-se contra nós e agora jaz em um túmulo obscuro sobre o qual
colocamos uma enorme pedra.
Quem removerá a pedra? A pergunta
se ajusta bem ao tempo quaresmal em que vivemos esse mês.
Segundo contam os Evangelhos, uma
pesada pedra jazia sobre o túmulo de Jesus e as mulheres que lá foram tinham a
esperança de removê-la para ungir seu corpo com óleo e aromas ternamente
preparados. Não encontraram o corpo. E de repente, muito de repente ouviram uma
voz dizendo "não está aqui”... Ressuscitou, está vivo em outro lugar? Mas
qual lugar? Onde está ele? Digam-nos que iremos buscá-lo... Por favor, diga-nos
onde se escondeu o nosso amado ou onde o esconderam?
E as mulheres então perceberam
que o corpo, a vida estava no coração das gentes preocupadas com seu cotidiano,
com o pão de cada dia, com os doentes e as crianças, com a horta e o jardim...
Elas e eles eram a expressão e a lei da vida. E era por essa vida que se faziam
leis. Era para a vida de todos que a Lei devia ajudar e servir.
A Lei era apenas um instrumento,
não a razão da vida. No momento em que as leis oprimem como aquela do sábado é
preciso transgredi-la...No momento em que a Lei manda apedrejar uma mulher pega
em adultério é preciso convocar aos que não têm pecado a atirar a primeira
pedra e talvez a segunda e a terceira. E a vida se torna vitoriosa, não a Lei.
A Lei não é a vida. É apenas um
instrumento, coisa inventada para ajudar a fraqueza de nossas vidas. É coisa
escrita para nos educarmos a viver em sociedade sem que a tentação de querermos
ser e aparecer uns mais do que outros prevaleça.
Buscar a pureza da Lei é como
buscar uma agulha no palheiro. Buscar uma interpretação única é como querer
ouvir uma sinfonia com uma nota só. Buscar a pureza e a retidão dos corações
que nunca traíram seus princípios e seus amores é como acender uma lâmpada em
dia de sol. O sol e a luz artificial ofuscam nossa busca e finalmente vamos ter
que aceitar o quanto ela é vã e impossível.
Tudo isso é só para dizer que
somos todos impuros, imperfeitos, limitados e misturados... Todos nós somos
míopes ou estrábicos ou sofremos de cegueira momentânea. Todos somos
alfabetizados e analfabetos das muitas coisas da vida. Tudo isso para dizer que
nossas razões são frágeis e nossas emoções também.
Para onde iremos? Quem nos
ajudará a mover e remover a pedra que jaz em nossos corações sempre em busca de
defender a nós mesmos, nossas leis e a nossos partidos? Onde estará a força que
nos ajudará a redescobrir que o outro e a outra que odiamos, mora na realidade
em nós mesmos? Mora como ódio que nos oprime. Mora como força negativa que nos
torna insensíveis ao mais importante, àquilo que segundo o Evangelho faz
transparecer o rosto divino que nos habita: "Tive fome e me deste de
comer, tive sede e me deste de beber, estava nu e me vestiste, era prisioneiro
e me libertaste...” ou "não haverá pobres entre vocês”.
E eis que o rosto humano se
transfigura e se torna luz divina. E é capaz de partilhar o pão e a terra, e o
óleo e o petróleo... É capaz de ensinar e aprender da diversidade inesgotável
que nos constitui.
Hoje, embora persista a fome de
pão e a sede de água, estamos com uma necessidade premente de ar, ar puro, ar
capaz de varrer de nós esta poluição nefasta que habita nossos corações, nossas
mentes e nossas casas. Poluição capaz de nos transformar em lobos querendo
comer lobos, algozes sanguinários uns dos outros disfarçados com mantos de
bondade e de direito.
Estamos necessitados de matar a
fome de ternura, de afeto e de afago sincero. Estamos famintos de olhares de
simpatia, de risos alegres e da cumplicidade do humor. Acaso nos esquecemos que
somos apenas essa mistura mortal semelhante a erva do campo que hoje vive e
amanhã morre?
Ainda que tivéssemos todas as
virtudes do mundo e todos os bens da terra, se não tivermos
fraternidade/sororidade nada somos. Ainda que soubéssemos distinguir todos os
sons musicais e reconhecer todas as árvores da floresta, se não acolhermos o
outro como meu semelhante dessemelhante não poderemos avançar na construção de
nossa humanidade comum.
Se no caminho não tivesse uma
pedra... Se não houvesse a lua como eterna namorada... Se... Sim, tudo isso é
poesia. Tudo o que escrevo é nada mais que poesia visto que quando cessam as
razões e só se ouvem os impropérios uns contra os outros é hora de abrir alas à
poesia.
Talvez ela consiga amolecer os
corações. Talvez ela consiga chamar a atenção para as coisas simples da vida. E
ainda, talvez consiga acalmar a ira feroz da razão que se arvora para si mesma
o direito de ser a coroa mais preciosa dos humanos.
Somos racionais! Seres de Razão!
E fazemos então as "sem razões” da guerra uns para os outros,
parafraseando as "sem razões do amor” de Drummond.
Mas, em que conflito a razão
teria vencido as entranhas e o coração? Em que batalha cheia de artifícios e
armas de guerra teria sido vitoriosa? Com que mentiras e artimanhas enganou o
coração e suas palpitantes vibrações diante das lágrimas e da dor do mundo ou
diante da beleza de um novo por do sol?
Volta, volta amada... Volta poesia
esquecida e entoa de novo em cada coração "minha terra tem palmeiras onde
canta o sabiá... E, segue adiante na "cadencia bonita do samba”subindo e
descendo nos morros da vida, no percurso sinuoso dos rios que, como escreve o
mestre das letras poéticas Manoel de Barros,
"recebem no seu percurso,
pedaços de pau, folhas secas, penas de urubu e demais trombolhos.
Seria como o percurso de uma
palavra antes de chegar ao poema.
As palavras na viagem para o
poema recebem nossas torpezas, nossas demências, nossas vaidades. E demais
escorralhas.
As palavras se sujam de nós na
viagem. Mas desembarcam no poema escorreitas: como que filtradas. E livres das
tripas de nosso espírito.”*
Também as leis e a justiça, a
verdade e o amor se sujam de nós ao longo da vida. ‘Se sujam de nós’...
A poesia exige sua limpeza e os
poetas e poetizas podem humanizar as palavras, as leis, os conceitos e refazer
o mundo a partir de ninguém e para além das hierarquias e ideologias. Os poetas
e poetizas podem ajudar a re-habitar as palavras, a tirá-las do abusado uso, da
insignificância e do esvaziamento. Podem ajudar a encher de amor a palavra
política e esvaziar o ódioda violência que o caracteriza.
Podem imaginar jardins em cima
das ruínas de um edifício ou até beleza em um código de leis quando desvenda as
histórias que o motivou e as pessoas que outrora viveram de seu sentido. Podem
devolver-lhes ‘carne e espírito’ como o profeta Ezequiel imaginava quando
falava da necessidade de devolver carne aos ossos ressequidos dos povos
oprimidos.
E nisso tudo, talvez, precisamos
inventar de novo o mundo, como nos lembrava Clarice Lispector no seu "Eu
te invento, ó realidade!”
Ivone Gebara
Escritora, filósofa e teóloga
Fonte: Adital
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