quarta-feira, 23 de março de 2016

A Legalidade ou o controverso ‘espírito das leis’ -por Ivone Gebara

Há os que dizem: a Lei do Evangelho é clara. "Há que amar a Deus e ao próximo como a si mesmo”. Mas, como fazer isso? E outros dizem: "não há outro caminho a não ser obedecer a Constituição do país!” E mais: "é evidente que a Lei nos diz que todos nós somos iguais perante a Ela e assim há de ser.” Mas, como viver isso? Como expressar essa igualdade? Outros ainda afirmam: "todos devem ser submissos às leis do país... Ninguém está nem acima e nem abaixo da Lei”. "Toda desobediência à lei deve ser punida”, gritam juízes e cidadãos comuns. Mas, quem de fato redigiu as leis e para quem?

  

 Em 2008, o então presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Ministro Gilmar Mendes, ordenou por duas vezes consecutivas a soltura do banqueiro Daniel Dantas, investigado por tentativa de suborno e crimes financeiros, gerando desconfianças no mundo jurídico. Foto: reprodução.
E a Lei o que é? Para que serve ela? Se a Lei fosse uma verdade inquestionável e clara que nos orientasse de fato não estaríamos nesse caos social, nesse marasmo, nessa divisão produtora de agressões, as mais estúpidas e banais. Se a Lei fosse ‘amorosa verdade’ não a tomaríamos em vão e não estaríamos tentando interpretá-la segundo nossas limitadas visões e percepções e afirmando como absoluto apenas o lado que conseguimos ver.

A Lei obra de nossas mãos se torna nosso amparo, nosso apoio, nosso julgamento. Mas também se torna nosso algoz, nossa torturadora e fonte de injustiças.

Quando não há outros apoios, quando nosso coração torna-se de pedra e nossa voz levanta-se contra o outro como lança afiada, quando não há o sentimento da dor alheia, quando apenas os interesses pessoais vigoram e tornam-se lei, então a Lei que rege o país deixa de regê-lo. A Lei se torna palavra morta ou servidão, um tecido esgarçado que de tanto ser puxada por uns e outros para justificarem suas interpretações, ou melhor, seus interesses claros ou escusos, torna-se quase inoperante. A Lei então morre como Lei. É enterrada e sobre ela se constrói um túmulo com uma pesada pedra por cima.

Embora seja necessária e fundamental para a convivência social e para qualquer regime político, a Lei passa a se submeter à jurisprudência de uns e outros que se acreditam verdadeiros intérpretes da Lei e únicos capazes de entendê-la. Se aplicada de um jeito dizem que é injusta. Se aplicada de outro dizem que foi arbitrária! De novo, a Lei obra de algumas mãos e de algumas cabeças sobre todas as cabeças nacionais ou internacionais é puxada por um lado e por outro como uma boneca de pano desejada ou ambicionada por muitos.

Juízes e advogados agem convencidos de sua superioridade profissional. Políticos discursam inspirados por uma pretensa integridade de serviço ao povo e respeito às leis do país. Religiosos conclamam a paz em nome de seu deus. O povo grita apoiando uns e discordando de outros, levados pelas emoções à flor da pele geradas pelas tensões sociais.

Praça de guerra em todos os lugares! Incitação e excitação das mais torpes emoções orquestradas pelos meios de comunicação que convencem o público de sua "sagrada” missão de informar. Vítimas e torturadores uns dos outros, amantes e algozes, escravos e libertos, com ânimos exaltados, buscamos saídas para a asfixia coletiva que nos atinge.

Escrevo para buscar luzes no pensamento. Sim, alguma luz que me faça entender a confusão em que estou e estamos. Não escrevo para ninguém em particular, escrevo primeiro, para mim mesma como uma premente necessidade de compreender algo de meu/nosso totalitarismo insano. Sim, totalitarismo individual e coletivo. Cada um querendo ser o tirano dos outros ou o herói crucificado em favor dos outros. Cada um querendo impor ao outro a punição que não quer para si ou o prêmio glorioso não revelado.

Escrevo como frágil resposta à ansiedade que me oprime diante da espessa névoa política que nos envolve. Como se não bastasse a lama da Samarco em Minas Gerais, ou as chuvas abundantes que destruíram tantas moradias no sul, ou os hospitais repletos de bebês enfermos com a picada de um mosquito... Estamos perdidos... Desamparados... A Lei que fizemos volta-se contra nós e agora jaz em um túmulo obscuro sobre o qual colocamos uma enorme pedra.

Quem removerá a pedra? A pergunta se ajusta bem ao tempo quaresmal em que vivemos esse mês.

Segundo contam os Evangelhos, uma pesada pedra jazia sobre o túmulo de Jesus e as mulheres que lá foram tinham a esperança de removê-la para ungir seu corpo com óleo e aromas ternamente preparados. Não encontraram o corpo. E de repente, muito de repente ouviram uma voz dizendo "não está aqui”... Ressuscitou, está vivo em outro lugar? Mas qual lugar? Onde está ele? Digam-nos que iremos buscá-lo... Por favor, diga-nos onde se escondeu o nosso amado ou onde o esconderam?

E as mulheres então perceberam que o corpo, a vida estava no coração das gentes preocupadas com seu cotidiano, com o pão de cada dia, com os doentes e as crianças, com a horta e o jardim... Elas e eles eram a expressão e a lei da vida. E era por essa vida que se faziam leis. Era para a vida de todos que a Lei devia ajudar e servir.

A Lei era apenas um instrumento, não a razão da vida. No momento em que as leis oprimem como aquela do sábado é preciso transgredi-la...No momento em que a Lei manda apedrejar uma mulher pega em adultério é preciso convocar aos que não têm pecado a atirar a primeira pedra e talvez a segunda e a terceira. E a vida se torna vitoriosa, não a Lei.

A Lei não é a vida. É apenas um instrumento, coisa inventada para ajudar a fraqueza de nossas vidas. É coisa escrita para nos educarmos a viver em sociedade sem que a tentação de querermos ser e aparecer uns mais do que outros prevaleça.

Buscar a pureza da Lei é como buscar uma agulha no palheiro. Buscar uma interpretação única é como querer ouvir uma sinfonia com uma nota só. Buscar a pureza e a retidão dos corações que nunca traíram seus princípios e seus amores é como acender uma lâmpada em dia de sol. O sol e a luz artificial ofuscam nossa busca e finalmente vamos ter que aceitar o quanto ela é vã e impossível.

Tudo isso é só para dizer que somos todos impuros, imperfeitos, limitados e misturados... Todos nós somos míopes ou estrábicos ou sofremos de cegueira momentânea. Todos somos alfabetizados e analfabetos das muitas coisas da vida. Tudo isso para dizer que nossas razões são frágeis e nossas emoções também.

Para onde iremos? Quem nos ajudará a mover e remover a pedra que jaz em nossos corações sempre em busca de defender a nós mesmos, nossas leis e a nossos partidos? Onde estará a força que nos ajudará a redescobrir que o outro e a outra que odiamos, mora na realidade em nós mesmos? Mora como ódio que nos oprime. Mora como força negativa que nos torna insensíveis ao mais importante, àquilo que segundo o Evangelho faz transparecer o rosto divino que nos habita: "Tive fome e me deste de comer, tive sede e me deste de beber, estava nu e me vestiste, era prisioneiro e me libertaste...” ou "não haverá pobres entre vocês”.

E eis que o rosto humano se transfigura e se torna luz divina. E é capaz de partilhar o pão e a terra, e o óleo e o petróleo... É capaz de ensinar e aprender da diversidade inesgotável que nos constitui.

Hoje, embora persista a fome de pão e a sede de água, estamos com uma necessidade premente de ar, ar puro, ar capaz de varrer de nós esta poluição nefasta que habita nossos corações, nossas mentes e nossas casas. Poluição capaz de nos transformar em lobos querendo comer lobos, algozes sanguinários uns dos outros disfarçados com mantos de bondade e de direito.

Estamos necessitados de matar a fome de ternura, de afeto e de afago sincero. Estamos famintos de olhares de simpatia, de risos alegres e da cumplicidade do humor. Acaso nos esquecemos que somos apenas essa mistura mortal semelhante a erva do campo que hoje vive e amanhã morre?

Ainda que tivéssemos todas as virtudes do mundo e todos os bens da terra, se não tivermos fraternidade/sororidade nada somos. Ainda que soubéssemos distinguir todos os sons musicais e reconhecer todas as árvores da floresta, se não acolhermos o outro como meu semelhante dessemelhante não poderemos avançar na construção de nossa humanidade comum.

Se no caminho não tivesse uma pedra... Se não houvesse a lua como eterna namorada... Se... Sim, tudo isso é poesia. Tudo o que escrevo é nada mais que poesia visto que quando cessam as razões e só se ouvem os impropérios uns contra os outros é hora de abrir alas à poesia.

Talvez ela consiga amolecer os corações. Talvez ela consiga chamar a atenção para as coisas simples da vida. E ainda, talvez consiga acalmar a ira feroz da razão que se arvora para si mesma o direito de ser a coroa mais preciosa dos humanos.

Somos racionais! Seres de Razão! E fazemos então as "sem razões” da guerra uns para os outros, parafraseando as "sem razões do amor” de Drummond.

Mas, em que conflito a razão teria vencido as entranhas e o coração? Em que batalha cheia de artifícios e armas de guerra teria sido vitoriosa? Com que mentiras e artimanhas enganou o coração e suas palpitantes vibrações diante das lágrimas e da dor do mundo ou diante da beleza de um novo por do sol?

Volta, volta amada... Volta poesia esquecida e entoa de novo em cada coração "minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá... E, segue adiante na "cadencia bonita do samba”subindo e descendo nos morros da vida, no percurso sinuoso dos rios que, como escreve o mestre das letras poéticas Manoel de Barros,

  
"recebem no seu percurso, pedaços de pau, folhas secas, penas de urubu e demais trombolhos.

Seria como o percurso de uma palavra antes de chegar ao poema.

As palavras na viagem para o poema recebem nossas torpezas, nossas demências, nossas vaidades. E demais escorralhas.

As palavras se sujam de nós na viagem. Mas desembarcam no poema escorreitas: como que filtradas. E livres das tripas de nosso espírito.”*


Também as leis e a justiça, a verdade e o amor se sujam de nós ao longo da vida. ‘Se sujam de nós’...

A poesia exige sua limpeza e os poetas e poetizas podem humanizar as palavras, as leis, os conceitos e refazer o mundo a partir de ninguém e para além das hierarquias e ideologias. Os poetas e poetizas podem ajudar a re-habitar as palavras, a tirá-las do abusado uso, da insignificância e do esvaziamento. Podem ajudar a encher de amor a palavra política e esvaziar o ódioda violência que o caracteriza.

Podem imaginar jardins em cima das ruínas de um edifício ou até beleza em um código de leis quando desvenda as histórias que o motivou e as pessoas que outrora viveram de seu sentido. Podem devolver-lhes ‘carne e espírito’ como o profeta Ezequiel imaginava quando falava da necessidade de devolver carne aos ossos ressequidos dos povos oprimidos.

E nisso tudo, talvez, precisamos inventar de novo o mundo, como nos lembrava Clarice Lispector no seu "Eu te invento, ó realidade!”

Ivone Gebara
Escritora, filósofa e teóloga

Fonte: Adital

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