As mulheres são a minoria no abrigo com quase 300 imigrantes
que chegam todos os dias do Haiti, Senegal e da República Dominicana.
Como vivem as centenas de
imigrantes ilegais que chegam ao Brasil pelo Acre.
“Las autoridades que estamos
esperando estão llegando acá, oui?”. Em uma tarde quente no bairro de Irineu
Serra, a 20 minutos do centro de Rio Branco, no Acre, Maria da Luz, uma
assistente social do Governo do Estado, tentava, a qualquer custo e com uma
mistura de português, espanhol e francês, distrair os quase 300 imigrantes
ilegais, entre haitianos, senegaleses e dominicanos, que esperavam pela visita
à Chácara Aliança que a ministra dos Direitos Humanos, Ideli Salvatti, faria
naquela tarde para conhecer o local.
Os imigrantes do abrigo haviam
ensaiado uma apresentação de música e dança. “Quando a ministra chegar, todos
dirão ‘boa tarde’, ok?”, sugeria Maria da Luz, e um coro respondia “oui!”.
A ministra da Secretaria de Relações Institucionais, Ideli
Salvatti (a terceira, da esquerda para a direita) é abraçada pelos imigrantes.
Na Chácara Aliança, um local
arborizado, com campo de futebol, gramado, refeitório, salão e alojamento, os
imigrantes se dividem em rodas de conterrâneos. Cantam, cortam o cabelo uns dos
outros, alguns jogam bola e outros andam em bando atrás dos funcionários do
Estado, que se revezam semanalmente para fazerem plantões ali e auxiliá-los.
O grupo de imigrantes é parte de
uma leva que começou a chegar com mais força ao Brasil em 2010, pelas
fronteiras com Estados do norte, principalmente o Acre. O terremoto que
devastou parte do Haiti naquele ano impulsionou a saída da população do país em
busca de melhores condições de vida. Segundo o Secretário de Justiça e Direitos
Humanos do Acre, Nilson Mourão, dos 25.000 imigrantes que já passaram pelo Acre
desde 2010, apenas 40 ficaram no Estado. “Eles chegam por aqui por causa da
fronteira, mas não têm o Acre como destino final”, diz. “As crianças são o
nosso maior problema. Muitas delas chegam sozinhas”. Em uma conta de cabeça,
Mourão diz que desse total de imigrantes cerca de 22.000 são haitianos, 2.300
são senegaleses e o restante é de diversas nacionalidades, incluindo a
República Dominicana.
Uma dominicana dança durante apresentação para a ministra
Ideli Salvatti, da Secretaria de Relações Institucionais.
Muitos chegam ao abrigo sem saber
exatamente o que vão fazer. É o caso do haitiano Don Fred Etienne, de 17 anos,
que está no Brasil há menos de um mês, mas já arranha palavras em português.
“Quero ir para São Paulo, pois tenho uma tia lá”, diz o menino, que ama o
futebol brasileiro. “Meu nome é como o do jogador da camisa nove da Seleção”,
diz, em referência ao jogador Fred.
O governador do Estado, Tião
Viana (PT), diz que não há o que fazer, senão acolher esses imigrantes. “Somos
o único país a acolher dessa maneira. Se não fizermos isso, o que vamos
fazer?”, diz. “Não posso deixá-los nas ruas. Por isso providenciamos um
abrigo”, explica. No início deste ano, Viana foi acusado de bancar os ônibus
que levaram centenas de haitianos para São Paulo sem que houvesse um acordo prévio
com o Governo paulista. A ação gerou uma crise entre os dois governos; de um
lado, Viana acusou uma parcela da “elite paulistana” de “não gostar do povo”. O
governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), rebateu dizendo que era uma
irresponsabilidade o governo do Acre enviar esses imigrantes a São Paulo sem
nenhum critério.
Muitas das crianças chegam ao Brasil sozinhas, sem os
familiares.
De acordo com o secretário
Mourão, a chegada dos imigrantes ao Acre não é um problema apenas do Estado.
“Este é um problema do Governo Federal”, diz. “Estamos gastando muito dinheiro
sem ter retorno algum”. Segundo ele, o aluguel do albergue custa 22.000 reais
mensais. Para a alimentação, são desembolsados 20 reais ao dia por imigrante,
mas a conta maior é para levar essas pessoas para outras localidades. “Só de
ônibus, gastamos um milhão de reais por mês”.
No abrigo, funcionários da
Secretaria recolhem os passaportes dos imigrantes para dar entrada no processo
no Ministério do Trabalho. Assim que os documentos forem aceitos, os imigrantes
vão, normalmente por meio de um ônibus circular, até o Ministério do Trabalho
em Rio Branco para fazer foto e assinar a papelada. Assim que a carteira de
trabalho fica pronta eles a recebem no abrigo e partem para a cidade que
escolheram viver. Isso não significa que esses imigrantes têm visto permanente
para viver no Brasil. De seis em seis meses, eles devem se apresentar à Polícia
Federal.
“O Brasil é um país que sempre
acolheu quem quisesse morar aqui”, disse a ministra Ideli Salvatti no dia da
visita, sendo traduzida simultaneamente por um intérprete. “Ficou claro aqui
que vocês trazem alegria e uma contribuição cultural ao povo brasileiro. Por
isso, espero que vocês encontrem rapidamente o trabalho que vieram buscar,
porque hoje, felizmente, temos muito trabalho para oferecer aos brasileiros,
aos haitianos, aos senegaleses...” e foi interrompida por aplausos calorosos.
Tanto a ministra, quanto o
secretário, enfatizaram que é preciso estimular a vinda desses imigrantes pelos
meios legais, já que as embaixadas brasileiras nesses países estão abertas para
recebê-los e encaminhá-los ao Brasil legalmente. “Fazer com que eles deixem de
entrar no país por meio dos coiotes e entrem na legalidade é a única maneira de
termos controle”, disse Mourão.
No dia em que a reportagem do EL
PAÍS esteve no abrigo, foi confirmado o primeiro caso no Senegal da epidemia de
ebola, que já matou 1.841 pessoas na África, segundo o último relato da
Organização Mundial de Saúde. Mourão aproveitou para cobrar medidas mais ágeis
do Governo Federal. “Precisamos urgentemente de um auxílio do Ministério da
Saúde. Todo africano que chegar aqui deve ser examinado e deixado em quarentena
e não podemos fazer isso sozinhos”, disse. Por enquanto, não há nenhuma medida
de prevenção tomada especificamente para esses imigrantes.
Haitianos versus senegaleses
Senegaleses vibram depois de uma competição com os haitianos de quem sabia contar até 10 em português.
“Quem aqui já sabe contar até 10
em português?”, perguntou a assistente social Maria Luz, em uma sala repleta
com os imigrantes do abrigo Chácara Aliança. Rapidamente, um rapaz senegalês
pegou o microfone e pronunciou os números em português. A sala, dividida ao
meio – do lado esquerdo os senegaleses, do direito, os haitianos, e, nas
beiradas, alguns dominicanos; ninguém se misturava – torcia para seus
compatriotas. Chegando ao número 10, todos os senegaleses aplaudiram. Silêncio
entre os haitianos. Até um deles tomar o microfone e começar a contar. Contou
até quase 100 e, quanto mais perto chegava do centésimo número, mais os
haitianos aplaudiam e vibravam, como se fossem os segundos finais da vitória de
um campeonato.
Os haitianos falam apenas o
crioulo haitiano, um dialeto vindo do francês. Os senegaleses têm o francês
como língua materna, mas muitos aprenderam em seu país o inglês e o espanhol e
se comunicam melhor com os brasileiros, embora sejam bem menos comunicativos
que os haitianos. Já os dominicanos, que são minoria, falam espanhol. Todos são
negros. No abrigo, os quartos são divididos por sexo e nacionalidade, já que os
imigrantes não se misturam.
“No início, tínhamos mais
problemas. Um senegalês não pegava nem a marmita da mão do haitiano, e os haitianos
furavam a fila na hora do almoço. Era difícil”, explica Andreia Santos,
diretora administrativa da Secretaria de Desenvolvimento Social. Ela conta que
as mulheres – a minoria no abrigo – eram sempre as últimas da fila. “Se
deixássemos, elas ficavam sem comer”, diz Santos. Agora as coisas mudaram e
parece que os imigrantes compreenderam melhor a organização do local.
Ronald Henr, de 29 anos, chegou
do Haiti há uma semana. “Eu sou professor de línguas”, diz, em inglês. “Mas no
meu país eu não tinha mais alunos”, conta. Henr fala espanhol e inglês, além da
língua materna, e pretende ir a São Paulo para dar aulas. A capital paulista é
um destino bastante procurado pelos imigrantes, mas não é o único. Alguns
estavam de partida para Florianópolis (SC), Cascavel (PR) e Cuiabá (MT).
Outros, preferem continuar na região norte, escolhendo o Estado do Amapá como
destino final.
Fonte: El Pais
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