O crime de venda de órgãos, no Brasil, é um crime
consentido, segundo a antropóloga americana Nancy Scheper-Hughes, que estuda
desde o começo da década de 90 o tráfico humano para a venda de órgãos.
Em 1999, ela fundou a organização Organs Watch, que reúne
dados sobre o tema. Em sua pesquisa, a antropóloga descobriu que as principais
vítimas do tráfico de órgão são pessoas de comunidades pobres. Segundo dados da
Organização Mundial de Saúde (ONU), todos os anos, 15 mil rins são vendidos no
mercado negro mundial.
Desde o início da década de 1990, a antropóloga americana
Nancy Scheper-Hughes estuda o tráfico humano para a venda de órgãos, como os
rins. Sua pesquisa começou no Brasil, em 1987, em Pernambuco, quando ouviu
boatos sobre crianças sequestradas por estrangeiros que eram evisceradas e
depois tinham seus corpos abandonados perto de estradas e hospitais.
Ao tentar entender de onde vinham esses rumores (que as
autoridades públicas contestavam), ela passou a pesquisar o assunto,
desvendando redes internacionais e criminosas de tráfico de órgãos. A partir
daí, passou a colaborar com a polícia e com a Justiça de diversos países para a
condenação de traficantes e médicos envolvidos.
Veja trechos da entrevista concedida à Folha por e-mail:
Folha - Quem são as principais vítimas do tráfico de órgãos
hoje?
Nancy Scheper-Hughes - Comunidades pobres, em geral, como as
de agricultores e de favelas. São pessoas em situação muito vulnerável, que
precisam desesperadamente de dinheiro. Em alguns lugares, como no sul da Ásia,
nas Filipinas e em favelas da América Central, a obrigação de vender um rim
para salvar a família é passada de pai para mulher, depois para os filhos mais
velhos e até para crianças. Os corpos dessas pessoas passam a ser como "bancos".
Todos os anos, 15 mil rins são vendidos no mercado negro, segundo a ONU.
Quais são as consequências para as vítimas do tráfico?
A longo prazo, há perda do bem-estar físico e mental. Como
muitos dos vendedores de rins trabalham usando sua força física carregando
coisas, mexendo na terra etc, eles acabam perdendo seus empregos. Também sofrem
estigma social e sentem que vão morrer cedo. É uma mistura de culpa, vergonha,
medo e desinformação. Muitas das pessoas que recebem um rim mencionam que o dia
da cirurgia é aquele em que elas renasceram. Já vendedores de rim em Bangladesh
se referem ao dia da nefrectomia como "o dia em que eu morri",
ligando-a a uma morte econômica, psicológica, espiritual e social.
Há alguma especificidade no tráfico de órgãos no Brasil?
Toda pessoa que vende seu rim precisa de dinheiro, claro,
mas os homens brasileiros que entrevistei, em Pernambuco, diziam que também
queriam viajar e conhecer o mundo, no caso, a África do Sul, onde aconteciam as
cirurgias. Alguns também diziam que queriam ir em um safári.
Mas as vítimas brasileiras sabiam que o que estavam fazendo
era ilegal? Ou eram ludibriadas pelos aliciadores?
Eles sabiam que a venda de órgãos era provavelmente ilegal,
mas foram recrutados por dois homens de alta patente militar, Gedalya Tauber da
reserva do Exército israelense] e Ivan Bonifácio da Silva [capitão da reserva
da PM de Pernambuco]. Então eles pensavam que estavam protegidos, embora
tivessem sido enganados em muitos pontos: em quanto iam ganhar pelo rim, quanto
tempo duraria a cirurgia, o quanto ela doía, se ela era segura.
Como o Estado pode prevenir o tráfico de órgãos?
Punindo os cirurgiões envolvidos no processo. Até agora,
apenas os traficantes estão indo para a prisão. Muitos médicos e hospitais
dizem que foram enganados, mas muitas vezes eles consentem com o que está
acontecendo. Os cirurgiões são responsáveis, por lei, de saber de onde está
vindo o órgão que eles estão transplantando: se ele é saudável, se ele tem
procedência legal etc. A responsabilidade final é do cirurgião. Afinal, quem
está segurando o bisturi?
O que leva pessoas de alto nível financeiro, como médicos, a
participarem desse tipo de esquema?
Cirurgiões gostam de fazer transplantes. É a profissão
deles, e uma profissão muito bonita. Muitas vezes, eles ficam frustrados em não
conseguir os órgãos que precisam. Eles são levados pelo amor que tem pelo
trabalho, mas também pela cobiça, tem muito dinheiro envolvido nessas
transações. Alguns veem a si mesmos como "acima da lei". Há diversos motivos.
Um cirurgião que conheci em Tel Aviv me disse meio brincando, meio sério que o
mundo devia aos judeus ao menos 8 milhões de rins, em compensação ao nazismo.
O tráfico de órgãos motiva muitos boatos de difícil
comprovação. Por exemplo, de moradores de ruas ou pessoas em situação
vulnerável que são sequestrados, tem seus órgãos retirados e depois são
enterrados como indigentes. A senhora entrou em contato com algum caso como
este? Se eles existem, acredita que sejam maioria no esquema de tráfico de órgãos?
Muitos dos rumores são falsos, mas alguns estão baseados em
fatos reais. Por exemplo, pude comprovar por meio de entrevistas e com a ajuda
de um especialista em transplantes que o caso Pavesi [ocorrido em Poços de
Caldas, MG, em 2000; os médicos envolvidos respondem na Justiça] realmente
aconteceu. Este foi apenas um entre muitos casos de retirada de órgãos de
pacientes antes de sua morte cerebral. Também há sólidas evidências de casos na
Argentina, no Brasil, na Turquia e nos Estados Unidos de pessoas que fizeram
cirurgias de rotina ou ginecológicas e tiveram um de seus rins retirado
A legalização da venda e compra de rins é uma saída?
Não. Mesmo um sistema regulado ainda predará os corpos dos
jovens, dos pobres, dos socialmente marginalizados, dos economicamente e
mentalmente vulneráveis para servir aos corpos dos velhos, dos mortalmente
doentes e dos relativamente ricos. Ainda que algumas vidas sejam salvas, a
maioria é apenas prolongada por transplantes que só foram possíveis por conta
do desespero de quem não tem nada a vender, a não ser seu próprio corpo. Mesmo
países onde a venda de rins é legalizada, como Irã e Filipinas, não conseguiram
eliminar traficantes que se infiltraram no sistema legal.
Você chegou a conhecer Gedalya Tauber, que recrutava
vendedores de rins em Pernambuco?
Sim, a primeira vez que tentei entrevistá-lo foi em 2004,
quando vim ao Brasil para testemunhar na CPI sobre tráfico de órgãos. Mas ele
não quis me receber. Voltei em 2005, para entrevistar vendedores de rins, e ele
então aceitou conversar comigo na prisão. "Gaddy" foi muito aberto e
me contou toda a sua história de vida, inclusive seus traumas como sobrevivente
do Holocausto. Ele dizia que pensava estar servindo o seu país, fazendo o bem
para Israel e os israelenses doentes.
O que achou da recente extradição dele o Brasil?
Fiquei chocada ao saber, quando ele foi recapturado em 2013,
que Tauber havia fugido do Brasil em 2009 e estava se escondendo desde então.
Porque ele me convidou para visitá-lo em Israel, em Natanya, em setembro de
2009! Fomos juntos a um restaurante, e ele me disse que estava tudo bem, que
ele havia sido solto.
Na época, eu estava participando de um documentário, chamado
"Kidney Pirates", sobre o tema. Disse a ele que, na véspera de nosso
encontro, um dos seus "colegas" havia quebrado nossa câmera de vídeo
e batido em nossa equipe. Ele me disse: 'Por que você não me ligou? Eu poderia
ter protegido vocês! Além disso, esse cara que bateu em vocês é um idiota, ele
não tem ética nem moral'.
"Gaddy" nos chamou para jantar na casa dele, para
conhecer seus amigos. Mas, depois de ter sido atacada, eu não quis correr o
risco.
Ou seja, se ele estava escondido, era à plena vista. Esse é
um dos motivos que me fazem dizer que tráfico de pessoas para obter órgãos é um
crime protegido.
A polícia brasileira considerava-o um dos líderes da rede de
tráfico. É isso mesmo? Ou ele era uma peça facilmente substituível?
Ele era central para o esquema do tráfico em Recife, mas não
era o líder da rede, que era Ilan Perry.
As autoridades brasileiras, como policiais, estão se
esforçando para dar um fim ao tráfico de órgãos?
A polícia fez um bom trabalho no caso do Recife. Mas ela
também levou 25 anos para prender e processar os cirurgiões corruptos no famoso
caso de Taubaté : Rui Sacramento, Pedro Torrecillas e Mariano Fiore Jr, que
foram sentenciados à prisão por remover órgãos de pessoas que ainda não haviam
tido morte cerebral e distribuí-los em hospitais particulares do país.
Fonte: Folha de São Paulo
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