Para o desembargador do TJ-SP (Tribunal de Justiça de São
Paulo), Guilherme de Souza Nucci, o Código Penal de 1940 está desatualizado.
Ele defende a regulamentação da prostituição e a descriminalização do lenocínio
(intermediação da prostituição), as casas de prostituição e o tráfico de
pessoas, desde que feitos sem violência, grave ameaça ou fraude, e as casas de
prostituição.
Nucci é autor do recém-lançado “Prostituição, lenocínio e
tráfico de pessoas – aspectos constitucionais e penais” (Editora Revista dos
Tribunais). Na obra, o especialista analisa os princípios e leis que
fundamentam a prostituição, examinando os prós e contras da regulamentação da
atividade.
Em entrevista ao Última Instância, Nucci explicou os
diferentes sistemas de tratamento da prostituição no mundo, criticou as
legislações que preveem punições aos clientes, como a que entrará em vigor na
França.
Última Instância: Como as leis brasileiras tratam a prostituição? O que
é crime e o que não é?
Guilherme Nucci: A prostituição não é crime no Brasil quando
é vista individualmente desde o Código Penal de 1940. O que o Código Penal
sempre considerou crime é o lenocínio, que é a intermediação da prostituição,
com ou sem lucro. Essa pessoa, que recebe vários nomes, é considerada
criminosa, mesmo que a intermediação seja gratuita, não tenha violência, grave
ameaça, fraude, e mesmo que seja de acordo com os interesses da prostituta e do
cliente. Mas o Código Penal 40 está desatualizado.
Qual é a sua opinião a respeito do Título VI do Código Penal (que trata
dos crimes contra a dignidade sexual)?
Nucci: É uma melhora, não teria que mudar tanto. Em primeiro
lugar, ninguém defende o lenocínio violento. A mesma coisa com o tráfico. Mas é
preciso acabar com a hipocrisia, regulamentando a intermediação de um lenocínio
desejável. Na Alemanha e na Austrália, onde é regulamentado, há casas de
prostituição discretas, onde quem quer ir sabe onde é, há uma fiscalização inclusive
de agentes sanitários, pra ver se estão usando camisinha, fazendo exames pra
DSTs [doenças sexualmente transmissíveis]. Alguns podem se cadastrar pra obter
benefícios sociais e previdenciários. Então, continuaria a ser crime no Código
Penal o lenocínio violento, fraudulento, e o tráfico violento e fraudulento.
Sairia da criminalização o agenciamento da prostituição não violento e o
agenciamento internacional. Por exemplo: “eu quero ir me prostituir na Espanha.
Me dá umas dicas aí: onde eu fico, que hotéis são bons” etc., e a pessoa que
fizer tudo isso é um intermediário.
Seria como um agente de modelos?
Nucci: Isso. Até porque, falem o que quiser, mas a gente sabe
que muitas agências de modelos são meras fachadas pra prostituição de homens e
mulheres. Todos sabem, mas fingem que não veem. Isso é prostituição de
altíssimo nível. Mas tem outro ponto. Muitos advogam que ela não é crime, mas
também não é lícita. Ou seja, ela seria um ato ilícito porque civilmente, o
Código Civil diz que não pode haver contratos imorais e contra os bons
costumes. Então, você contrata o serviço de um(a) profissional de prostituição,
e se você não pagar, ele não pode fazer nada, não pode chamar a polícia, entrar
no Judiciário, porque o contrato é ilegal porque ofende os bons costumes. É
preciso permitir que amanhã uma prostituta vá à Justiça discutir um cheque sem
fundo de um cliente, já que a prostituição não é crime.
Explique o funcionamento dos quatro sistemas de prostituição que você
cita no seu livro: o proibicionista, o regulamentador, o abolicionista e o
misto.
Nucci: O proibicionista é o que proíbe tudo. O país que
serve de exemplo pra isso são os Estados Unidos, retrato da hipocrisia mundial. Lá, tudo é
proibido: prostituir sozinho é proibido, é crime para a prostituta e para o
cliente, é crime para o intermediador, para o cafetão, para todo mundo. Agora,
é só abrir sites americanos, que você vê a maior incidência da indústria do
sexo do mundo.
Regulamentador é o que me parece ideal, porque é o que
legaliza e regulamenta. Um exemplo é Alemanha. Lá, quem quiser exercer a
prostituição, exerce e há um código pra você recolher previdência. Você pode
exercer, pode abrir uma casa de prostituição legalmente, empregar pessoas. Os
profissionais do sexo têm os direitos trabalhistas garantidos. E tem também o
ônus, que é a proteção da sociedade. É preciso se submeter a exames médicos
periódicos, obrigatoriamente.
O abolicionista é o sistema da Suécia, da Noruega. O sistema
é abolicionista porque ele quer extinguir a prostituição e não quer permitir a
prostituição individual. Então pune, como nós, o tráfico e intermediação
(lenocínio). Só não é proibicionista, como no dos EUA, porque não pune a
prostituta. Para não dizer que é rigoroso, eles desenvolveram um método,
inspirado nas ideias das feministas, que defendem as prostitutas, sob a ótica
da mulher oprimida, dizendo que a culpa da prostituição é do homem sempre, o
homem oprimindo a mulher há milênios. Portanto, na Suécia, eles criaram um
mecanismo de punir o cliente. Então, ele é apenado, primeiro recebe multa, e em
reincidência, pode até chegar a ser preso, e a prostituta nunca será presa. Para
mim, é um sistema burro, porque tudo o que eu li a respeito mostra que é a
prostituta quem fica asfixiada, porque se ela é prostituta e isso não é
proibido, ela quer ser, vai continuar sendo. A partir do momento que se pune o
cliente, a prostituição é escondida, a profissional tem que abaixar o preço,
aceitar pessoas que querem fazer de tudo, como fazer sexo sem camisinha, por
exemplo. Ela fica cada vez mais jogada na valeta, porque a prostituição não vai
acabar nunca.
Já o sistema misto é o adotado, por exemplo, pela Espanha. O
país optou por um sistema que não proíbe, não autoriza e não regulamenta. Por
isso, digo que é misto porque não faz nada. A prostituição isolada não é crime,
mas a intermediação é. Mas há casas de prostituição espalhadas por todos os
lugares. Alguns municípios as reconhecem, mas a lei federal não. Eles não sabem
o que querem. Não é o ideal. O Brasil entraria aí num sistema misto, porque
também não sabe o que quer.
O que você acha da nova lei que está prestes a entrar em vigor na França,
que pune os clientes com multas, inicialmente de 1,5 mil euros, valor que pode
aumentar em caso de reincidência?
Nucci: Acho absurdo, porque é a França querendo adotar o
sistema abolicionista da Suécia. Na França, os movimentos feministas querem isso.
A verdade é que, no fundo, [alguns segmentos do movimento] feminista não gostam
nem da prostituta nem da prostituição. Acha que a prostituta é uma mulher que
se vende, não dignifica a mulher igual ao homem, acha que a mulher é objeto
sexual, se coloca numa posição subalterna. Elas não veem que muitas vezes, é a
única opção que a sociedade deu às prostitutas.
A prostituição é reconhecida pelo Ministério do Trabalho como
profissão. Qual é a diferença entre existir ou não esse reconhecimento?
Nucci: A prostituta ganhou um código pra recolher
previdência. É uma situação interessante, porque o Executivo reconhece a
prostituição como uma profissão, mas o Legislativo, não. No Judiciário, depende
do bom humor do juiz, de sua mentalidade.
Se a regulamentação realmente fosse feita, como isso se daria? Haveria
uma lei federal estabelecendo as regras?
Nucci: Não há uma única resposta. Nós teríamos que extrair
um modelo. O primeiro passo seria acabar com a casa de prostituição como crime.
Por que aí vão surgir várias por aí, e o governo vai ter a real dimensão do
negócio. Depois disso, excluir o lenocínio consensual do artigo 228 do Código
Penal. Põe como redação: “é crime intermediar ou instigar a prostituição
mediante fraude, violência ou grave ameaça”. Pronto, já se liberou o agenciador
consensual. Assim, a prostituição sai da toca, e o Estado sabe como legalizar.
Caso contrário, é um tiro no escuro.
Um argumento das feministas e de quem defende a regulamentação é o de
livrar as prostitutas da exploração de cafetões. Mas, em alguns momentos, você
os defende. Por quê?
Nucci: Porque nem todos os tais proxenetas são maus. É um
empresário. Ele aluga um espaço, paga as contas, faz o anúncio, atrai o
cliente. Então às vezes, isso é vantagem, porque a prostituta não tem o desgaste
de receber na casa dela, de receber qualquer um, de ser assaltada, morta.
Quando se fala de prostituição, o foco é, quase sempre, as mulheres.
Mas qual é a situação dos homens e travestis que se prostituem?
Nucci: A prostituição masculina é igual à feminina, mas não
tem as feministas no pé. Elas dizem que “o homem que se prostitui, gosta. A
mulher que se prostitui é obrigada, porque ela não tem prazer em se prostituir,
e ele tem, porque a maioria é gay”. Mas a gente entrevistou um monte de gente
que é heterossexual, que se prostitui porque quer ganhar dinheiro, e não
discrimina cliente, transa com mulheres também, sem prazer. Quem realmente
sofre é o travesti. Porque ele tem dupla discriminação – por ser travesti e por
se prostituir. Eles falam abertamente: “é na gente que jogam ovo, xixi,
xingam”, são os que mais sofrem violência policial. Muitos se perguntam: e qual
é a opção pra minha vida? Mas não há ninguém que lhes ofereça emprego. A
prostituição é a única opção deles – senão eles morrem de fome. É preciso ter
um auxílio do Estado.
Fonte: http://ultimainstancia.uol.com.br
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