E você, que veste roupas feitas por tantos Josés, saberia
responder onde está teu irmão?
Por Leonardo Sakamoto e Xavier Plassat*
Filho do patriarca Jacó, José é a primeira figura bíblica
vítima do tráfico humano. José ainda pode ser encontrado em qualquer esquina do
nosso mundo global. Seu nome é Sikandar, Miriam, Juan, Pedrito, Luizinha,
Jerry. Seu exílio (ou inferno) chama-se Doha, Belo Monte, Dacca, Brás, Codó,
Barcelona, General Carneiro, Guarulhos, Lampedusa.
José está vivo. Escondido, invisível, traficado feito
mercadoria, acorrentado pelo medo, instrumentalizado para o lucro fácil, preso
nos tentáculos de um velho-novo crime. Tráfico e escravidão permaneceram vivos,
transformando-se e ganhando novas características que os diferenciam do
passado. A finalidade é a mesma: alguém lucra, alguém é explorado.
Intermediários viabilizam o sistema. Cúmplices garantem sua
sustentabilidade. As modalidades são variadas: exploração sexual, trabalho
análogo ao de escravo, servidão, remoção ilegal de órgãos, casamento forçado,
entre outras.
A escravidão tem na atualidade um peso nunca visto na
história da humanidade. Não por acaso: aprendemos a transformar tudo em
mercadoria e nos conectamos globalmente, transformando o mundo em um único e
grande supermercado. A Organização Internacional do Trabalho estima em 21
milhões o número de vítimas, tanto homens como mulheres, um em cada quatro com
menos de 18 anos.
No Brasil, para onde foram traficados 5 milhões de
africanos, com o amparo da lei e a bênção da religião, a forma mais visível
deste tráfico ainda é o trabalho escravo, presente sob as modalidades do
trabalho forçado, da servidão por dívida, da jornada exaustiva e do trabalho em
condições degradantes. As vítimas são aliciadas em bolsões de pobreza, dentro e
fora do país. Nos últimos 20 anos foram libertadas 47 mil delas, em dois mil
estabelecimentos de mais de 600 municípios. No campo, destaque para a pecuária,
as lavouras do agronegócio e carvoarias. Nas cidades, a construção civil e
oficinas de confecção. Para a exploração sexual, as informações quantitativas
são precárias. O Brasil é tido como um dos grandes exportadores de mulheres a
serem exploradas sexualmente, particularmente na Europa.
No Brasil, a mobilização contra a escravidão contemporânea
iniciou-se nos anos 1970, destacando-se a figura do bispo Pedro Casaldáliga e a
atuação incansável da Comissão Pastoral da Terra. Acolheram fugitivos e
tornaram públicas denúncias de trabalhadores escravizados em plena floresta
amazônica. A pressão em fóruns nacionais e internacionais acabou obrigando o
Estado a assumir, em 1995, a causa da erradicação. A partir da ratificação do
Protocolo de Palermo, tratado internacional sobre o tráfico de pessoas, em
2004, o Brasil adotou uma política nacional de enfrentamento a esse crime.
A invisibilidade das práticas do tráfico e a cegueira de
muitos são algumas das dificuldades para avançar no combate a esse crime. Há
quem teime em negar sua realidade, a exemplo de ruralistas em sua busca para
esvaziar o conceito legal e a política nacional de combate ao trabalho escravo.
Face à idolatria que sacrifica a dignidade e a liberdade no
altar do lucro, ressoa a pergunta feita a Caim: “Onde está teu irmão?” Sim, o
escândalo ainda perdura, com o José bíblico renascido sob outros nomes. De nós
depende que ele possa sair da invisibilidade, levantar-se, conquistar seus
direitos. Oportunamente este é o desafio proposto à sociedade pela Campanha da
Fraternidade lançada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil.
"Tráfico humano e Fraternidade" é seu lema.
E, você, que veste as roupas produzidas por tantos Josés,
come o fruto de seu trabalho e mora em residências erguidas por suas mãos,
saberia responder onde, neste momento, está teu irmão?
Fonte: Dom Total
Gazeta do Povo, 05-03-2014.
* Leonardo Sakamoto é jornalista, cientista político e
coordenador da ONG Repórter Brasil. Xavier Plassat é frei dominicano e
coordenador da campanha pela erradicação do trabalho escravo da Comissão
Pastoral da Terra.
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