Jesus transgrediu várias normas religiosas e culturais da
época: Passou pela Samaria, o que não era costume dos judeus. Sendo judeu,
conversou com uma samaritana, o que era proibido. Sendo homem, conversou com
uma mulher e pediu bebida a uma pessoa proibida, sem preocupar-se com as normas
severas da pureza.
A leitura que a Igreja propõe neste domingo é o Evangelho de
Jesus Cristo segundo João 4, 5-42 que
corresponde ao Terceiro Domingo de Quaresma, Ciclo A do Ano Litúrgico. O
teólogo espanhol José Antonio Pagola comenta o texto.
Eis o texto
A cena é cativante. Cansado do caminho, Jesus senta-se junto
ao manancial de Jacob. Rapidamente chega uma mulher a recolher água. Pertence a
uma população meio pagã, desprezada pelos judeus. Com toda a espontaneidade,
Jesus inicia o diálogo. Não sabe olhar para ninguém com desprezo, mas sim com
grande ternura. “Mulher, dá-me de beber”.
A mulher fica surpreendida. Como se atreve a entrar em
contato com uma samaritana? Como se rebaixa a falar com uma mulher desconhecida?
As palavras de Jesus surpreendem-na ainda mais: “Se conhecesses o dom de Deus e
quem é que te pede de beber, serias tu a pedir-lhe, e Ele te daria da água da
vida”.
São muitas as pessoas que, ao longo destes anos, foram se
afastando de Deus, sem dar-se conta do que realmente estava a ocorrer no seu
interior. Hoje, Deus é-lhes um “ser estranho”. Tudo o que está relacionado com
Ele lhes parece vazio e sem sentido: um mundo infantil, cada vez mais distante.
Entendo-os. Sei o que podem sentir. Também eu me fui
afastando pouco a pouco daquele “Deus da minha infância” que despertava dentro
de mim tantos medos, mal-estar e desconforto. Provavelmente, sem Jesus nunca me
teria encontrado com um Deus que hoje é para mim um Mistério de bondade: uma
presença amistosa e acolhedora em que posso confiar sempre.
Nunca me atraiu a tarefa de verificar a minha fé com provas
científicas: creio que é um erro considerar o mistério de Deus como se fosse um
objeto de laboratório. Tampouco os dogmas religiosos me ajudaram a encontrar-me
com Deus. Simplesmente deixei-me conduzir por uma confiança em Jesus que foi
crescendo com os anos.
Não saberia dizer exatamente como se sustenta hoje a minha
fé no meio de uma crise religiosa que me sacode também a mim como a todos. Só
diria que Jesus trouxe-me a viver a fé em Deus de forma simples do fundo do meu
ser. Se eu escuto, Deus não se cala. Se eu me abro, Ele não se fecha. Se eu me
confio, Ele me acolhe. Se eu me entrego, Ele me sustém. Se eu me afundo, Ele me
levanta.
Creio que a experiência primeira e mais importante é
encontrar-nos à vontade com Deus, porque O percebemos como uma “presença salvadora”.
Quando uma pessoa sabe o que é viver à vontade com Deus, porque apesar da nossa
mediocridade, nossos erros e egoísmos, Ele nos acolhe tal como somos e nos
impulsiona a enfrentar a vida com paz, dificilmente abandonará a fé. Muitas
pessoas estão hoje abandonando Deus antes de tê-lo conhecido. Se conhecessem a
experiência de Deus que Jesus contagia, procurá-lo-iam.
Fonte: Ihu
A SAMARITANA ENCONTRA JESUS: EM BUSCA
DA FONTE DE ÁGUA VIVA JOÃO 4,1-42 [CARLOS MESTERS, MERCEDES LOPES E FRANCISCO
OROFINO]
Os samaritanos eram desprezados pelos judeus. Este desprezo
vinha de longe, desde o século VIII antes de Cristo (2Rs 17,24-41), e transparece
em alguns livros do Antigo Testamento. O livro do Eclesiástico, por exemplo,
fala de um “povo estúpido que mora em Siquém, que nem sequer é nação” (Eclo
50,25-26). Muitos judeus da Galileia, quando viajavam para Jerusalém, não
passavam pela Samaria. O Evangelho de João mostra Jesus fazendo o contrário,
passando pela Samaria e acolhendo os samaritanos. Por causa disso, era
criticado pelos judeus, que o xingavam de “samaritano, possesso de demônio” (Jo
8,48). Depois da ressurreição, os seguidores e as seguidoras de Jesus, seguindo
o exemplo de Jesus, superaram seus preconceitos e anunciaram a Boa-nova aos
samaritanos (At 8,4-8). Nas comunidades do Discípulo Amado, havia muitos
samaritanos.
Carlos Mesters,
Mercedes Lopes e Francisco Orofino publicaram esta e outras reflexões no livro
Raio-X da Vida.
1. João 4,1-6: O palco onde se realiza o diálogo entre Jesus e a
samaritana
Quando Jesus percebe que os fariseus poderiam irritar-se com
a sua atividade batismal, ele sai da Judeia e volta para a Galileia. Desse
modo, evita uma briga religiosa (Jo 4,1-3). Voltando para a Galileia, Jesus
passa pela Samaria. Por volta do meio-dia, ele chega junto do poço de Jacó.
Cansado da viagem, senta perto do poço, onde a samaritana o encontra. O poço
era o lugar tradicional de encontros e de conversas. Hoje, seria a praça, o
bar, a rodoviária, o shopping... É perto do poço que começa a longa e difícil
conversa que foi de muito proveito para ambos.
2. João 4,7-15: Primeira parte do diálogo: a conversa sobre a água ou o
trabalho
Água, corda, balde e poço eram os elementos que marcavam o
mundo do trabalho da samaritana. É Jesus que toma a iniciativa do diálogo. Ele
parte da necessidade bem concreta da sua própria sede e diz: “Dá-me de beber?”
Pela pergunta a samaritana descobre que Jesus precisa dela para ele poder
resolver o problema da sua sede. Assim, Jesus desperta nela o gosto de ajudar e
de servir. Desde o começo da conversa, Jesus usa a palavra água nos dois
sentidos. No sentido normal: água que mata a sede; e no sentido simbólico: água
como fonte de vida e como dom do Espírito Santo, prometido no Antigo Testamento
(Zc 14,8; Ez 47,1-12). Desde o começo da conversa, a samaritana entende a
palavra água no seu sentido normal de água que mata a sede do corpo. Existe uma
tensão entre os dois. Jesus tenta ajudar a samaritana a passar para um outro
nível de entendimento. A samaritana, por sua vez, procura levar Jesus a
entender as coisas conforme o sentido que elas têm no dia a dia. Por isso, por
esta porta da água ou do trabalho, Jesus não consegue comunicar-se com ela e a
conversa não avança.
3. João 4,16-18: Segunda parte do diálogo: a conversa sobre o marido ou
a família
Jesus tenta estabelecer contato por uma outra porta. Ele
diz: “Vá buscar seu marido!” É a porta da família. Mas também aqui ele encontra
a porta fechada. A samaritana responde secamente: “Não tenho marido!” Jesus
diz: “Você falou bem. Você teve cinco maridos e o que tem agora não é o seu
marido!” Os cinco maridos evocam simbolicamente os cinco ídolos do povo
samaritano (2 Rs 17,29-30). Aquele com quem ela convive agora, ou seja, o sexto
a que Jesus alude, talvez seja João Batista, venerado como messias, ou a fé
diferente dos samaritanos em Javé. O Quarto Evangelho sugere discretamente que
o sétimo é o próprio Jesus, o messias, o esposo que o povo estava esperando.
4. João 4,19-24: Terceira parte do diálogo: a conversa sobre o lugar da
adoração
Finalmente, por causa da resposta recebida, a samaritana
identifica Jesus e diz: “Vejo que o senhor é um profeta”. Neste momento, ela se
situa na conversa e começa a tomar a iniciativa. Muda o rumo da conversa e puxa
o assunto para a religião: Onde adorar Deus? Lá em Jerusalém ou aqui no Monte
Garizim? Os samaritanos tinham construído um templo no Monte Garizim que ficava
perto do poço onde eles conversam. Jesus entra pela porta que a mulher abriu.
Primeiro, ele relativiza o lugar do culto: nem aqui nem lá! Neste ponto, os
judeus não têm nenhum privilégio. Em seguida, esclarece que tanto judeu como
samaritano, ambos adoram Deus. A diferença é que os judeus adoram o que
conhecem. Os samaritanos adoram o que (ainda) não conhecem, “porque a salvação
vem dos judeus”, mas não se restringe a eles. E Jesus termina dizendo que
chegará o tempo em que se poderá adorar Deus em qualquer lugar, contanto que
seja “em espírito e verdade”.
5. João 4,25-26: A revelação: “O Messias sou eu que estou conversando
contigo!”
A samaritana muda novamente o rumo da conversa e puxa o
assunto para a esperança messiânica do seu povo: “Sei que vem um Messias.
Quando ele vier, nos vai mostrar todas essas coisas!” Novamente, Jesus aceita a
mudança do rumo da conversa, entra pela porta que a samaritana abriu e se
apresenta: o Messias “sou eu que estou conversando contigo!” A esta mulher,
excluída e herética para os judeus da época, Jesus revelou, por primeiro, a sua
condição de Messias. Enquanto ele mesmo tomava a iniciativa, a conversa não
avançava. Ela só avançou e atingiu o seu objetivo a partir do momento em que a
samaritana se situou e começou a tomar a iniciativa. Será que nós temos a mesma
coragem de deixar ao outro a iniciativa do rumo da conversa?
6. João 4,27-30: A transformação que o diálogo realiza na samaritana
Os discípulos tinham ido ao povoado comprar alimento (Jo
4,8). Retornando, encontraram Jesus conversando com uma mulher. Estranham, mas
não dizem nada. Então, a samaritana larga o balde perto do poço e volta sem
água para o povoado. Já não precisa da água do poço de Jacó, da antiga Lei. Ela
havia encontrado a fonte da água que brotava dentro dela para a vida eterna (Jo
4,14). Chegando no povoado, ela anuncia Jesus: “Venham ver um homem que me
disse tudo o que eu fiz! Será que ele é o Messias?” O resultado deste difícil
diálogo parece muito reduzido. Jesus só conseguiu provocar uma pergunta na
mulher: “Será que ele é o Messias?” Talvez seja este o resultado mais positivo
que se possa imaginar. Jesus não dá respostas. Ele levanta perguntas que levam
a pessoa a refletir sobre o sentido da vida.
7. João 4,31-38: A transformação que o diálogo realiza em Jesus
Mesmo correndo o risco de não obter nenhum resultado, Jesus
não se impõe nem condena a mulher, mas respeita-a profundamente. Durante a
conversa, ele não se fecha dentro da sua religião nem dentro da sua raça, mas
se orienta por aquilo que ele mesmo aprendia da própria samaritana. No fim,
esqueceu até a comida que os discípulos tinham trazido, pois presta atenção ao
que o Pai lhe diz por meio da conversa com a samaritana: “Meu alimento é fazer
a vontade daquele que me enviou e completar a sua obra!” (Jo 4,34). Jesus lê os
fatos com outros olhos. Para os judeus, os samaritanos são um povo a ser
desprezado. Para Jesus, eles são um campo fértil, pronto para a colheita (Jo
4,35). Ele descobre que, na vida da samaritana, pessoa não judia e não
praticante, existe o “dom de Deus” (Jo 4,10). A Boa-nova de Deus existe na vida
de todas as pessoas. Os discípulos e as discípulas não são os donos da
Boa-nova. Devem ser servidores, instrumentos. Sua missão é ajudar as pessoas a
descobrir o dom de Deus dentro das suas vidas.
8. João 4,39-42: O resultado da missão de Jesus na Samaria
Aqui temos o mesmo processo que já vimos na formação da
primeira comunidade: encontrar, experimentar, partilhar, testemunhar, conduzir
até Jesus. A samaritana encontrou, experimentou, partilhou, testemunhou e
conduziu o seu povo até Jesus. Os samaritanos, por sua vez, escutaram a
partilha que ela fez e, por isso, convidaram Jesus a ficar com eles. Durante a
convivência de dois dias, eles mesmos experimentaram a Boa-nova e começaram a
partilhar e a testemunhar a sua experiência com a samaritana: “Nós próprios
ouvimos e sabemos que este é verdadeiramente o Salvador do mundo!” Resumindo:
nesta longa conversa, Jesus transgrediu várias normas religiosas e culturais da
época: Passou pela Samaria, o que não era costume dos judeus. Sendo judeu,
conversou com uma samaritana, o que era proibido. Sendo homem, conversou com
uma mulher e pediu bebida a uma pessoa proibida, sem preocupar-se com as normas
severas da pureza. Conviveu dois dias com os samaritanos. Conviver, comer e
beber juntos era sinal de grande intimidade. A comunhão de mesa era permitida
só com os da mesma religião.
Fonte: Cebi
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