É uma daquelas notícias que, há alguns anos, teria sido
considerada ficção científica. Agora, ao invés, graças à decisão de Francisco
que quer continuar com firmeza na linha iniciada por Bento XVI, Marie Collins,
uma mulher irlandesa abusada por um padre aos 13 anos, foi nomeada membro da
nova comissão antipedofilia da Santa Sé.
Uma mulher que, quando menina, foi
vítima de violência estará envolvida, portanto, no mais alto nível para fazer
com que as regras e as leis já existentes correspondam também a uma verdadeira
mudança de mentalidade na hierarquia.
"Eu esperava que houvesse um representante das vítimas
na comissão, mas não tinha ideia de que seria nomeada", afirma Marie
Collins. "Para mim, foi uma surpresa absoluta. A instituição dessa
comissão é uma medida muito positiva do Papa Francisco e pode levar a uma mudança
real do modo pelo qual o problema da proteção dos menores e do cuidado pastoral
das vítimas será gerido no futuro. Há muito trabalho a fazer."
"Como sobrevivente de um abuso clerical, para mim, foi
uma viagem longa e difícil. A minha confiança e o meu respeito pela Igreja
Católica foram minados pela forma como o meu caso e, em geral, os casos de
abuso foram enfrentados. Houve momentos em que eu me perguntei se eu realmente
devia ir embora. Por isso, agora, o fato de me encontrar como parte de uma comissão
desse nível no Vaticano é algo que eu nunca poderia ter previsto. E é preciso
aproveitar a oportunidade para fazer a voz de uma vítima."
O anúncio ocorreu nesse sábado, de surpresa, depois de uma
aceleração desejada pessoalmente pelo papa: "A Comissão para a Proteção
dos Menores" contra o fenômeno da pedofilia, por enquanto, é composta por
quatro homens e quatro mulheres, representantes dos vários países. Além de
Collins e do cardeal Sean O'Malley, estão a francesa Catherine Bonnet; a
inglesa Sheila Hollins; o jurista italiano Claudio Papale, professor de direito
canônico; a ex-embaixatriz polonesa Hanna Suchocka; e dois jesuítas da
Gregoriana: o argentino Humberto Miguel Yánez, diretor do Departamento de
Teologia Moral, e o alemão Hans Zollner, decano do Instituto de Psicologia.
Os oito membros são apenas os primeiros, porque outros serão
designados a partir das diferentes áreas geográficas do mundo. O nascimento da
comissão antipedofilia havia sido discutida pelos oito cardeais conselheiros de
Francisco – O'Malley é um deles – em dezembro passado.
As nomeações desse sábado são apenas um primeiro passo. Os
estatutos já estão sendo estudados, e os oito membros terão que se ocupar
deles, definindo "as competências e as funções" da própria comissão,
para garantir a segurança das crianças, a prevenção, o estudo dos procedimentos
penais, os deveres e as responsabilidades civis.
A finalidade é a de aconselhar o papa e a Santa Sé sobre as
normas antipedofilia e o cuidado pastoral das vítimas. O novo órgão, que também
terá que identificar novos colaboradores, não irá substituir a força-tarefa da
Congregação para a Doutrina da Fé que lida com esses casos, nem aos vários
dicastérios envolvidos na formação do clero. Mas irá colaborar com todos os
escritórios vaticanos, fornecendo indicações e propostas concretas.
Marie Collins foi a única vítima de abuso a tomar a palavra
no primeiro simpósio internacional sobre pedofilia clerical organizado pela
Gregoriana em fevereiro de 2012, com o apoio do Vaticano e com a participação
de bispos e superiores religiosos de todo o mundo.
Ela havia contado que, aos 13 anos, enquanto estava
internada em um hospital de Dublin, havia sofrido violências. "O fato de
que o homem que abusou de mim fosse sacerdote acrescentou uma grande confusão
na minha mente... Aqueles dedos que tinham abusado do meu corpo na noite
anterior eram os mesmos que, na manhã seguinte, seguravam e me ofereciam a
hóstia sagrada."
O capelão do hospital tentou tranquilizá-la, dizendo que,
como era um padre, não podia agir mal. "Isso acrescentou um novo peso ao
meu sentimento de culpa, e a convicção de que o que tinha acontecido era de
responsabilidade minha, e não dele. Quando saí do hospital, eu não era mais a
mesma menina...".
O arcebispo de Dublin, Diarmuid Martin, parabenizou Collins
pela nomeação: "A sua contribuição ao trabalho para a proteção das
crianças na nossa diocese foi crucial, e os seus conselhos e comentários
críticos foram de inestimável ajuda e inspiração para mim".
Entrevista
No telefone, a voz da Marie Collins, irlandesa abusada
sexualmente por um sacerdote quando tinha 13 anos e nomeada nesse sábado pelo
Papa Francisco para a nova comissão para a proteção dos menores instituída
precisamente contra o fenômeno da pedofilia, não trai emoções.
Determinada, mas também gentil e calma, Collins explica que
"era justo e necessário chegar a pedir a ajuda explicitamente das vítimas.
Um passo decisivo".
Eis a entrevista.
Por que Francisco escolheu justamente você?
Acima de tudo, quero dizer que para mim é uma honra. Mas
porque ele me escolheu, eu só posso supor. Algum tempo atrás, eu conheci o
cardeal arcebispo de Boston, Sean O'Malley. Ele estava na Irlanda para a
visitação apostólica desejada por Bento XVI justamente para lançar luz sobre a
pedofilia no clero depois da publicação do relatório Murphy, um estudo sobre os
abusos sexuais cometidos por sacerdotes na diocese de Dublin de 1975 a 2004. Eu
já tinha sido chamada por essa diocese como consultora. Depois, fui convidada
para a Universidade Gregoriana de Roma, no dia 6 de fevereiro de 2012, para um
congresso internacional. E lá contei diante de diversas autoridades vaticanas e
a muitos bispos de todo o mundo os abusos sofridos. Eles me ouviram em silêncio
e com respeito. Pessoalmente, nunca falei com o Papa Francisco, mas
evidentemente ele estava informado.
Quais são as urgências que a comissão deve enfrentar?
Que se chegue, se os casos de abuso forem confirmados e a
vítima permitir, à denúncia às autoridades civis. Esse passo é decisivo. Eu
sofri não só com os abusos, mas também com o encobrimento que algumas
hierarquias na Igreja deram ao meu molestador. Eu não era acredita. Ou ao menos
diziam que não acreditavam em mim. Foi terrível.
Francisco está dando passos novos com relação ao passado?
Bento XVI também fez muito. Com Francisco, esse impulso,
finalmente, essa política de não encobrimento e da verdade é perseguida mais, e
me parece que com grande vigor. E estou feliz por isso.
No passado, no Vaticano, quem lhe ajudou mais?
O ex-promotor de justiça da Congregação para a Doutrina da
Fé, Dom Charles Scicluna. Fiquei impressionada com a sua vontade de chegar a
uma verdadeira proteção dos menores.
Você declarou que manteve a sua fé apesar de tudo.
Foi difícil. No começo, eu me sentia culpada. Eu era jovem.
Tinha 13 anos quando sofri os abusos. Estava internada em um hospital, e um
jovem padre abusou me várias vezes. À noite, as suas mãos me violentavam e, de
manhã, me ofereciam a hóstia. Eu entendia que as suas ações eram erradas, mas
estava confusa e comecei a pensar que era culpa minha. Em seguida, depois de
tantos sofrimentos, da depressão, eu me casei. Foi depois do matrimônio que eu
tomei coragem e falei com um sacerdote sobre o que acontecera comigo. Mas
ninguém acreditava em mim. Os superiores do meu molestador chegaram a
protegê-lo contra todas as evidências. Foi apenas 25 anos depois que as
autoridades civis incriminaram aquele sacerdote. Em seguida, a Igreja também
admitiu as suas culpas. Só depois dessa condenação, é que dentro de mim algo
com relação a Deus e a religião mudou.
Por isso é importante a denúncia?
Sim. A minha vida recomeçou quando o meu agressor foi levado
à justiça. Nesses anos, eu trabalhei com a minha diocese e com a Igreja
Católica irlandesa. A minha vida não é mais uma terra estéril. Sinto que isso
tem significado e valor.
Fonte: Ihu
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