Jesus não nos salva automaticamente, mas testemunha um jeito de viver, melhor dizendo, um jeito de conviver que é libertador e salvador. Vital é prestarmos atenção no jeito e como Jesus ensina e atua.
1 - A partir da roça, do campo.
Nasci na roça, no campo. Fiz muitos calos nas mãos no cabo
da enxada tocando roça à meia ao lado do papai José Moreira. Na hora da
colheita, quando via o fazendeiro levar no caminhão a metade da nossa safra e
quase toda a outra metade também, porque contraíamos dívida na sede da fazenda
onde comprávamos, do plantio à colheita, açúcar, café, sal, remédios etc,
dentro de mim, ainda criança, gritava uma voz: “Deus não quer isso. Isso não é
justo.” Trago na minha memória essa indignação diante da opressão do latifúndio
e dos latifundiários. Saí da roça, mas a roça não saiu de mim. Meu sacerdócio e
meu jeito de ser frade carmelita estão intimamente conectados com a luta dos
camponeses por terra, pão e dignidade.
2 - Juventude camponesa em Recife.
O III Congresso da Pastoral da Juventude Rural (PJR –
www.pjr.org.br), em Recife, PE, de 14 a 19 de janeiro de 2014, reuniu mais de
1.500 jovens camponeses de todo o Brasil. Além das reflexões, troca de
experiência, convivência, noites culturais etc, foi momento propício também
para beber da herança espiritual profética de frei Caneca, padre Ibiapina,
Padre Cícero, beato Zé Lourenço, padre Henrique, frei Jessé, Dom Hélder Câmara,
Francisco Julião, cacique Chicão Xucuru, dentre tantos outros lutadores do
povo. Frei Jessé e padre Henrique foram homenageados. Frei Cícero dos Santos
Jessé (1954 a 1995), uma vida a serviço da Juventude Camponesa. Frei Jessé foi
assessor da PJR por vários anos. Ao adoecer dizia: “Não deixem de fazer nada
porque estou ausente.” Padre Antonio Henrique Pereira Neto (1940 a 1969),
mártir da juventude que ousa viver a sua fé no mundo. Chamado por dom Hélder,
padre Henrique, além de secretário do Dom, foi também assessor da Juventude.
Chamado de subversivo, em 26 de maio de 1969, foi torturado e assassinado pela
ditadura civil-empresarial-militar. Antes de completar 29 anos tombou por sua
opção pelos pobres e pelos jovens, mas frei Jessé e padre Henrique, assim como
todos os mártires da caminhada, continuam conosco, presente, presente,
presente.
A cidade de Recife nos convida a recordar: a) frei Caneca, o
carmelita da Confederação do Equador, fuzilado dia 13 de janeiro de 1824, após
ter sido preso em 1817 e ter ficado vários anos no cárcere, em Salvador, Bahia.
Frei Caneca, ao lado de outros 50 padres, esteve à frente da Confederação do
Equador que lutava pela independência do Pernambuco, contra a violência da
monarquia. Lutava por vida e liberdade para todos; b) Dom Hélder Câmara, o dom
do amor, da paz e da justiça; d) Pernambuco também foi palco das Ligas
Camponesas que, sob a liderança de tantos como o advogado Francisco Julião, se
espalharam pelo país, com mais de 2.000 já organizadas quando se instaurou a
ditadura. As Ligas camponesas lutando por reforma agrária na lei ou na marra.
3 – Deus na história, o divino no humano.
O Deus do cristianismo é um Deus da história, quer dizer,
age nas entranhas dos fatos e dos acontecimentos. O Deus da vida, mistério de
infinito amor, não faz mágica. Desde que Deus, por infinito amor à humanidade,
encarnou-se, o divino está no humano.
O Concílio de Calcedônia, no ano de 451, reconheceu Jesus
Cristo com “natureza” divina e humana. O apóstolo Paulo reconhece que Jesus é o
Cristo, filho de Deus, mas “nascido de mulher” (Gal 4,4), ou seja, humano como
nós desenvolveu seu infinito potencial de humanidade. “Jesus, de tão humano, se
tornou divino,” dizia o papa João XXIII.
“Não é ele o filho de Maria e José, o carpinteiro (Mt
13,55)?”. Progressivamente, na Galileia, Samaria e Judéia, Jesus se revela, à
primeira vista, em aparentes contradições, mas, no fundo, com tal equilíbrio
que chama a atenção de todos. Assim, ele testemunha que Deus é mais interior a
nós do que imaginamos. A mística “encarnatória” revela a pessoa humanamente
divina e divinamente humana. “Quem me vê, vê o Pai (Jo 14,9)”.
Jesus, antes de se tornar mestre, foi discípulo, mas como
mestre continuou aprendendo. Antes de ensinar, aprendeu muito com muitos: com
Maria e José, com o povo da sinagoga, com os vizinhos, amigos, com os
acontecimentos históricos, com a natureza etc.
Somos discípulos/as de um jovem camponês, da periferia, que
foi condenado à pena de morte pelos podres poderes da política, da economia e
da religião. Somos discípulos de um mártir. Feliz quem não esquece a vida, o
testemunho e o ensinamento dos mártires.
Jesus compreende a mulher acusada de adultério, mas ferve o
sangue de ira santa contra os vendilhões do templo.
4 – Jesus, a Juventude Camponesa e a PJR.
Em sintonia com a Campanha da Fraternidade de 2013 -
Fraternidade e Juventude -, como instrumento inspirador para a Juventude
Camponesa e para a Pastoral da Juventude Rural, apresentamos Jesus de Nazaré, o
jovem de Nazaré que se tornou Cristo, messias, filho de Deus. Jovem, camponês,
da periferia, Jesus, no meio de muitos jovens, apresenta uma Pedagogia que
emancipa e liberta. Hoje, os/as jovens estão sendo marginalizados, violentados
em sua dignidade, milhares assassinados anualmente. As prisões estão
abarrotadas de jovens das periferias. Os modelos de educação hegemônicos mais
fazem adestramento, capacitação profissional para encaixar os jovens na máquina
mortífera que é o mercado endeusado. No meio dessa realidade conflituosa, faz
bem nos inspirar na pedagogia de Jesus, um jovem camponês da periferia, que
humaniza pelo seu ensinamento e testemunho.
5 – Treze características da pedagogia emancipatória de
Jesus de Nazaré.
Jesus não nos salva automaticamente, mas testemunha um jeito
de viver, melhor dizendo, um jeito de conviver que é libertador e salvador.
Vital é prestarmos atenção no jeito e como Jesus ensina e atua. Faz bem
prestarmos atenção no processo pedagógico efetivado por Jesus. Trata-se de uma
Pedagogia emancipatória com muitas características, entre as quais, destacamos
treze.
5.1) A partir da periferia. O Evangelho de Lucas interpreta
a vida, ações e ensinamentos de Jesus ao longo de uma grande caminhada da
Galileia até Jerusalém, ou seja, da periferia geográfica e social ao centro
econômico, político, cultural e religioso da Palestina. A Palavra, em Lucas, é
a palavra de um leigo, de um camponês galileu, “alguém de Nazaré”, pessoa
simples, pequena, alguém que vem da grande tribulação. Não é palavra de sumo
sacerdote, nem do poder.
5.2) Prioriza a formação. Nessa grande viagem, subida para
Jerusalém, Jesus prioriza a formação dos discípulos e discípulas. Ele percebe
que não tem mais aquela adesão incondicional da primeira hora. Jesus descobriu
que para consolar os aflitos era necessário também incomodar os acomodados e
denunciar pessoas e estruturas injustas e corruptas. Assim, o jovem de Nazaré
começou a perder apoio popular. Era necessário caprichar na formação de um
grupo menor que pudesse garantir os enfrentamentos que se avolumavam. Jesus
sabia muito bem que em Jerusalém estava o centro dos poderes religioso,
econômico, político e judiciário. Lá travaria o maior embate.
5.3) Não foge do combate. O Evangelho de Lucas diz: Jesus,
cheio do Espírito, em uma proposta periférica alternativa, vai, em uma
caminhada, de Nazaré a Jerusalém; ou seja, vai da periferia para o centro,
caminhando no Espírito. Em Jerusalém acontece um confronto entre o projeto de
Jesus e o projeto oficial. Este tenta matar o projeto de Jesus (e de seu
movimento) condenando-o à morte na cruz. Mas o Espírito é mais forte que a
morte. Jesus ressuscita. No final do Evangelho de Lucas, Jesus diz aos
discípulos: “Permaneçam em Jerusalém até a vinda do Espírito Santo” (Lc 24,49).
5.4) Sempre em movimento. Seguir Jesus exige uma dinâmica de
permanente movimento. A sociedade capitalista leva-nos a buscar segurança, o
que é uma farsa. É hora de aprendermos a seguir Jesus de forma humilde e
vulnerável, porém mais autêntica e real. Isso não quer dizer distrair com
costumes e obrigações que provêm do passado, mas não ajudam a construir uma
sociedade justa, solidária e sustentável ecologicamente.
5.5) Anda na contramão. Seguir Jesus implica andar na
contramão, remar contra a correnteza de tantos fundamentalismos e da idolatria
do consumismo. Exige também rebeldia, coragem, audácia diante de costumes que
entortam o queixo e de modas que aniquilam o infinito potencial humano
existente em nós.
5.6) Sabe a hora de conviver e a hora de lutar. O Evangelho
de Lucas apresenta dois envios de discípulos para a missão. No primeiro envio
(Lc 10,1-11), Jesus indicou aos discípulos que fossem despojados e desarmados
para o campo de missão. Assim deve ser todo início de missão: conhecer,
conviver, estabelecer amizades, cativar, assumir a cultura do outro, tornar-se
um/a irmã/ão entre as/os irmã/ãos para que seja reconhecido como “um dos
nossos”. No segundo envio (Lc 22,35-38), em hora de luta e combate, Jesus
sugere que os discípulos devem ir preparados para a resistência. Por isso
“pegar bolsa e sacola, uma espada – duas no máximo.” (Lc 22,36-38). Durante a
evolução da missão, chega a hora em que não basta esbanjar ternura,
graciosidade e solidariedade. É preciso partir para a luta, pois as injustiças
precisam ser denunciadas. Ao tomar partido e “dar nomes aos bois” irrompem-se
as divisões e desigualdades existentes na realidade. Os incomodados tendem
naturalmente a querer calar quem os está incomodando. É a hora das perseguições
que exigem resistência. Confira a trajetória de vida dos/as mártires da
caminhada: Padre Josimo, Padre Ezequial Ramin, Chico Mendes, Margarida Alves,
Sem Terra de Eldorado dos Carajás, Irmã Dorothy, Santo Dias, Chicao Xucuru,
Padre Gabriel, padre Henrique etc.
5.7) Resiste, o que não é violência, mas legítima defesa.
Diante de qualquer tirania e de um Estado violentador, vassalo do sistema
capitalista que sempre tritura vidas e pratica injustiças, é dever das pessoas
cristãs resistirem contras as opressões perpetradas contra os empobrecidos, os
preferidos de Jesus. Lucas, em Lc 22,35-38, sugere desobediência civil –
econômica, política e religiosa. Em uma sociedade desigual, esse é “outro
caminho” a ser seguido (cf. Mt 2,12) por nós, discípulos e discípulas de Jesus,
o rebelde de Nazaré.
5.8) Não trai sua origem. Jesus, o jovem de Nazaré, se
tornou Cristo, filho de Deus. Como camponês, deve ter feito muitos calos nas
mãos, na enxada e na carpintaria, ao lado de seu pai José. Os evangelhos fazem
questão de dizer que Jesus nasceu em Belém, (em hebraico, “casa do pão” para
todos), cidade pequena do interior. “És tu Belém a menor entre todas as
cidades, mas é de ti que virá o salvador”, diz o evangelho de Mateus (Mt 2,6),
resgatando a profecia de Miquéias (Miq 5,1). Segundo Lucas, Jesus inicia sua
missão pública em Nazaré, sua terra de origem, em uma sinagoga, onde aprendeu
muita coisa libertadora. Jesus se orgulhava de ser jovem camponês. Valorizava a
cultura camponesa. Percebia que a cidade, muitas vezes, mata os profetas, mata
os jovens, como o jovem de Naim (Lc 7,11-17).
5.9) Pedagogia da partilha de pães, que liberta e emancipa.
A fome era um problema tão sério na vida dos primeiros cristãos e cristãs, que
os quatro evangelhos da Bíblia relatam Jesus partilhando pães e saciando a fome
do povo. É óbvio que não devemos historicizar
os relatos de partilha de pães como se tivessem acontecido tal como descrito.
Os evangelhos foram escritos de quarenta a setenta anos depois. Logo, são
interpretações teológicas que querem ajudar as primeiras comunidades a resgatar
o ensinamento e a práxis original do jovem galileu. Não podemos também
restringir o sentido espiritual da partilha dos pães a uma interpretação
eucarística, como se a fome de pão se saciasse pelo pão partilhado na
eucaristia. Isso seria espiritualização do texto. Eucaristia, celebrada em
profunda sintonia com as agruras da vida, é uma das fontes que sacia a fome de
Deus, mas as narrativas das partilhas de pães têm como finalidade inspirar
solução radical para um problema real e concreto: a fome de pão.
A beleza espiritual das narrativas de partilha de pães – o
correto é partilha de pães e não multiplicação de pães - está no processo
seguido: uma série de passos articulados e entrelaçados que constituem um
processo libertador. O milagre não está aqui ou ali, mas no processo todo.
Ei-lo em várias características:
5.10.1) Cidade, lugar de violência? O evangelho de Mateus
mostra que o povo faminto “vem das cidades”. As cidades, ao invés de serem
locais de exercício da cidadania, se tornaram espaços de exclusão e de violência
sobre os corpos humanos. Faz bem recordar que Deus criou – e continua criando
-, nas ondas da evolução, tudo “em seis dias e no sétimo dia descansou.”
Conta-se que alguém teria perguntado a Deus porque ele resolveu descansar após
o sexto dia. Deus teria dito que já tinha criado tudo com muito amor e para o
bem da humanidade e de toda a biodiversidade. Quando viu que faltava criar a
cidade, o Deus criador concluiu que era melhor descansar.
5.10.2) Ir para o meio dos excluídos e injustiçados. “Jesus
atravessa para a outra margem do mar da Galileia” (Jo 6,1), entra no mundo dos
gentios, dos pagãos, dos impuros, enfim, dos excluídos e injustiçados. Jesus
não fica no mundo dos incluídos, mas estabelece comunicação efetiva e afetiva
entre os dois mundos, o dos incluídos e o dos excluídos. Assim, tabus e
preconceitos desmoronam-se.
5.10.3) Nunca perder a capacidade de se comover e de se
indignar. Profundamente comovido, porque “os pobres estão como ovelhas sem
pastor” (Mc 6,34), Jesus percebe que os governantes e líderes da sociedade não
estavam sendo libertadores, mas estavam colocando grandes fardos pesados nas
costas do povo. Com olhar altivo e penetrante, Jesus vê uma grande multidão de
famintos que vem ao seu encontro, só no Brasil são milhões de pessoas que têm
os corpos implodidos pela bomba silenciosa da fome ou da má alimentação.
5.10.4) Postura crítica. Jesus não sentiu medo dos pobres,
encarou-os e procura superar a fome que os golpeava e humilhava. Apareceram
dois projetos para resgatar a cidadania do povo faminto. O primeiro foi
apresentado pelo discípulo Filipe: “Onde vamos comprar pão para alimentar tanta
gente?” (Jo 6,5). No mesmo tom, outros discípulos tentavam lavar as mãos:
“Despede as multidões para que possam ir aos povoados comprar alimento.” (Mt
14,15). Filipe está dentro do mercado e pensa a partir do mercado. Está
pensando que o mercado é um deus capaz de salvar as pessoas. Cheio de boas
intenções, Filipe não percebe que está enjaulado na idolatria do mercado.
5.10.5) Postura criativa. O segundo projeto é posto à baila
por André, outro discípulo de Jesus, que, mesmo se sentindo fraco, acaba
revelando: “Eis um menino com cinco pães e dois peixes” (Jo 6,9). Jesus acorda
nos discípulos e discípulas a responsabilidade social, ao dizer: “Vocês mesmos
devem alimentar os famintos” (Mt 14,16). Jesus quer mãos à obra. Nada de
desculpas esfarrapadas e racionalizações que tranquilizam consciências. Jesus
pulou de alegria e, abraçando o projeto que vem de André (em grego, andros =
humano), anima o povo a “sentar na grama” (Jo 6,10). Aqui aparecem duas
características fundamentais do processo protagonizado por Jesus para levar o
povo da exclusão à cidadania, da injustiça à justiça. Jesus convida o povo para
se sentar. Por quê? Na sociedade escravocrata do império romano somente as
pessoas livres, cidadãs, podiam comer sentadas. Os escravos deviam comer de pé,
pois não podiam perder tempo de trabalho. Deviam engolir rápido e retomar o
serviço árduo. Um terço da população era escrava e outro terço, semiescrava.
Logo, quando Jesus inspira o povo para sentar-se, ele está, em outros termos,
defendendo que os escravos têm direitos e devem ser tratados como cidadãos.
5.10.6) Organização é o segredo da pedagogia de Jesus. Jesus
estimula a organização dos famintos. “Sentem-se, em grupos de cem, de
cinquenta, ...” (Mc 6,40). Assim, Jesus
e os primeiros cristãos e cristãs nos inspiram que o problema da fome e todos
os outros problemas sociais só serão resolvidos, de forma justa, quando o povo
marginalizado e injustiçado se organizar e partir para lutas coletivas.
5.10.7) Gratidão.
“Jesus agradeceu a Deus...” A dimensão da mística foi valorizada. A luz e a
força divinas permeiam e perpassam os processos de luta. Faz bem reconhecer
isso. Vamos continuar cantando com Manelão - cantor e compositor das
Comunidades Eclesiais de Base que já partilha vida em plenitude - cantos
revolucionários, tal como: É madrugada, levanta povo! / A luz do dia vai nascer
de novo! / Rompe as cadeias, abre o coração,/ Vamos dar as mãos, já é o reino
do povo! / O povo agora é Senhor da história, / Somos rebentos desta nova era.
/ A liberdade, a fraternidade. / São as bandeiras desta nova terra!
5.10.8) Não ser paternalista. Quem reparte o pão não é
Jesus, mas os discípulos. Jesus provoca a solidariedade conclamando para a
organização dos marginalizados como meio para se chegar à cidadania de e para
todos. Dar pão a quem tem fome sem se perguntar por que tantos passam fome é
ser cúmplice do capital que rouba o pão da boca da maioria.
5.10.9) Reaproveitar. “Recolham os pedaços que sobraram,
para não se desperdiçar nada.” (Jo 6,12). Economia que evita o desperdício.
Quase 1/3 da alimentação produzida é jogada no lixo, enquanto tantos passam
fome. É hora de reduzir o consumo. Reaproveitar, reciclar. Nada deve se perder,
mas ser tudo transformado. Em uma casa ecológica tudo é reaproveitado,
inclusive as fezes são consideradas recursos, pois viram adubo fértil e
orgânico. Envolvidos pela crise ecológica, com aquecimento e escurecimento
global é hora de reduzir, reutilizar, reciclar reaproveitar, recusar, recuperar
e repensar.
5.11) Participar da vida pública transformando a sociedade
(Lc 10,38-42).
Seguindo para Jerusalém, Jesus entra na casa de duas
mulheres, Marta e Maria (Lc 10,38-42). Tradicionalmente, a narrativa de Lc
10,38-42 tem sido interpretada como uma oposição entre vida ativa e vida
contemplativa. Ao longo dos séculos e ainda hoje, muitos usam e abusam de Lc
10,38-42 para justificar a vida contemplativa em detrimento da vida ativa, mas
essa interpretação não tem consistência exegético-bíblica. Não há nenhuma
referência no texto que diga que Jesus estivesse rezando ou orando com Maria.
Para entender bem Lc 10,38-42 é preciso considerar algumas coisas.
Primeiro, nas duas perícopes anteriores, Lucas revelou uma
oposição, um contraste: humildes X entendidos (Lc 10,21-24) e samaritano X
sacerdote e levita (Lc 10,29-37). Em Lc 10,38-42 também há uma oposição, um
contraste: Maria X Marta. A postura de Maria é elogiada por Jesus e a postura de
Marta é censurada: “Marta, Marta! ... uma só coisa é necessária...” (Lc
10,41-42).
Segundo, precisamos considerar a situação das mulheres na
época de Jesus e do evangelho de Lucas (anos 80/90 do 1º século). As mulheres
eram - não todas, é óbvio - propriedades do pai e, depois de casadas, dos
maridos; não participavam da vida pública, deviam ficar restritas ao lar; não
aprendiam a ler e a escrever; não recebiam os ensinamentos da Torá, a Lei.
Encontra-se escrito no Talmud dos Judeus (Escritura não-sagrada): “Que as
palavras da Torá sejam queimadas, mas não transmitidas às mulheres”. A oração
que muitos judeus piedosos rezavam dizia: “Louvado sejas Deus por não ter-me
feito mulher!” O machismo e o patriarcalismo campeavam.
Ao sentar-se aos pés de Jesus, para ouvir-lhe os
ensinamentos, Maria reivindica para si o direito de ser discípula. Ela reclama
para si o direito de ser cidadã no sentido pleno. “Sentar-se aos pés” era a
atitude dos discípulos dos rabis, os mestres.
Em Lc 10,38-42, Maria faz desobediência civil e religiosa,
pois fica aos pés de Jesus ouvindo-o. Somente os homens judeus podiam ficar aos
pés de um mestre e se tornarem discípulos. Maria ouve Jesus e, provavelmente,
dialoga com Jesus e o interroga. Assim Maria se torna discípula.
Um judeu entrar em uma casa onde só havia mulheres também
era algo censurável pela sociedade. Jesus desobedece a essa regra moral e entra
na casa de duas mulheres. Assim, Jesus vai formando seus discípulos e
discípulas enquanto caminha para Jerusalém.
5.12) Ser simples como as pombas e esperto como as
serpentes.
Após uma longa marcha da Galileia a Jerusalém, da periferia
à capital (Lc 9,51-19,27), Jesus e seu movimento estão às portas de Jerusalém.
De forma clandestina, não confessando os verdadeiros motivos, Jesus e o seu
grupo entram em Jerusalém, narra o Evangelho de Lucas (Lc 19,29-40). De alguma
forma deve ter acontecido essa entrada de Jesus em Jerusalém, provavelmente não
tal como narrado pelo evangelho, que tem também um tom midráxico, ou seja, quer
tornar presente e viva uma profecia do passado.
Dois discípulos recebem a tarefa de viabilizar a entrada na
capital, de forma humilde, mas firme e corajosa. Deviam arrumar um jumentinho –
meio de transporte dos pobres -, mas deviam fazer isso disfarçadamente, de
forma “clandestina”. O texto repete o seguinte: “Se alguém lhes perguntar: “Por
que vocês estão desamarrando o jumentinho?”, digam somente: ‘Porque o Senhor
precisa dele’”. A repetição indica a necessidade de se fazer a preparação da
entrada na capital de forma discreta, clandestina, sutil, sem alarde. Se
dissessem toda a estratégia, a entrada em Jerusalém seria proibida pelas forças
de repressão.
Com os “próprios mantos” prepararam o jumentinho para Jesus
montar. Foi com o pouco de cada um/a que a entrada em Jerusalém foi realizada.
A alegria era grande no coração dos discípulos e discípulas. “Bendito o que vem
como rei...” Viam em Jesus outro modelo de exercer o poder, não mais como
dominação, mas como gerenciamento do bem comum.
Ao ouvir o anúncio dos discípulos – um novo jeito de
exercício do poder – certo tipo de fariseu se incomoda e tenta sufocar aquele
evangelho. Hipocritamente chamam Jesus de mestre, mas querem domesticá-lo,
domá-lo. “Manda que teus discípulos se calem.”, impunham os que se julgavam
salvos e os mais religiosos. “Manda...!” Dentro do paradigma “mandar-obedecer”,
eles são os que mandam. Não sabem dialogar, mas só impor. “Que se calem!”,
gritam. Quem anuncia a paz como fruto da justiça testemunha fraternidade e luta
por justiça, o que incomoda o status quo opressor. Mas Jesus, em alto e bom
som, com a autoridade de quem vive o que ensina, profetisa: “Se meus discípulos
(profetas) se calarem, as pedras gritarão.” (Lc 19,40). Esse alerta do galileu
virou refrão de música das Comunidades Eclesiais de Base: “Se calarem a voz dos
profetas, as pedras falarão. Se fecharem uns poucos caminhos, mil trilhas
nascerão... O poder tem raízes na areia, o tempo faz cair. União é a rocha que
o povo usou pra construir...!”
Dia 10 de abril de 1996, milhares de trabalhadores rurais do
MST, em marcha, estavam chegando a 22 capitais do Brasil. Na chegada a Belo
Horizonte, após marcharem de Governador Valadares à capital mineira, 500 Sem
Terra foram bloqueados pela tropa de choque da polícia militar de Minas Gerais.
Vinte Sem Terra foram presos; outros vinte, hospitalizados. O governador de Minas
havia dado ordens para proibir a entrada do MST em Belo Horizonte, porque três
dias após, dia 13 de abril de 1996, a Fiat faria o lançamento de um novo modelo
de automóvel, o Fiat Pálio, na Av. Afonso Pena, em Belo Horizonte. 700
jornalistas internacionais estariam presentes. Os gritos do MST por reforma
agrária poderiam aparecer na imprensa internacional, o que seria mosca na sopa.
Mesmo reprimidos, conseguimos entrar em Belo Horizonte no dia seguinte contando
com o apoio do povo de BH. Um Sem Terra disse: “Quando os oprimidos hebreus
tentaram fugir da opressão do imperialismo egípcio tiveram que enfrentar o Mar
Vermelho. Na chegada de Belo Horizonte, um Mar de policiais queria fazer um Mar
Vermelho com nosso sangue. Feriram-nos, mas conseguimos entrar na capital.
Assim foi com Jesus de Nazaré também.”
5.13) Intransigência diante da opressão econômica e
política. Os quatro evangelhos da Bíblia
(Mt 21,12-13; Mc 11,15-19; Lc 19,45-46 e Jo 2,13-17) relatam que Jesus,
próximo à maior festa judaico-cristã, a Páscoa, impulsionado por uma ira santa,
invadiu o templo de Jerusalém, lugar mais sagrado do que os templos da
idolatria do capital que muitas vezes tem a cruz de Cristo pendurada em um
ponto de destaque. Furioso como todo profeta, ao descobrir que a instituição
tinha transformado o templo em uma espécie de Banco Central do país + sistema
bancário + bolsa de valores, Jesus “fez um chicote de cordas e expulsou todos
do templo, bem como as ovelhas e bois, destinados aos sacrifícios. Derramou
pelo chão as moedas dos cambistas e virou suas mesas. Aos que vendiam pombas
(eram os que diretamente negociavam com os mais pobres porque os pobres só
conseguiam comprar pombos e não bois), Jesus ordenou: “Tirem estas coisas daqui
e não façam da casa do meu Pai uma casa de negócio.” Essa ação de Jesus foi o
estopim para sua condenação à pena de morte, mas Jesus ressuscitou e vive
também em milhões de pessoas que não aceitam nenhuma opressão.
Enfim, jovens como Jesus de Nazaré, exercitemos pedagogias
que libertam e emancipam.
Notas:
¹Frei e padre da
Ordem dos carmelitas; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em
Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto
Bíblico de Roma; doutorando em Educação pela FAE/UFMG; assessor da CPT, CEBI,
SAB e Via Campesina; conselheiro do Conselho Estadual dos Direitos Humanos de
Minas Gerais – CONEDH; e-mail: gilvander@igrejadocarmo.com.br –
www.gilvander.org.br – www.twitter.com/gilvanderluis - facebook: Gilvander
Moreira
²Cf. Mt 14,13-21; Mc 6,32-44; Lc 9,10-17 e Jo 6,1-13.
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