O longo debate sobre como regular o trabalho sexual chegou a
um ponto de ruptura entre a Organização das Nações Unidas (ONU) e organizações
que combatem o tráfico de pessoas. Estas acreditam que o fórum mundial deve
rever sua posição, refletida em dois informes que promovem a despenalização de
todos os aspectos da prostituição.
“Quando vimos os informes nos preocupamos”, pontuou Lauren
Hersh, diretora do escritório nova-iorquino da organização Igualdade Já, que
lidera a campanha pública lançada em setembro. “É atroz haver agências da ONU
pedindo para manter os bordéis”, disse à IPS. Esta coalizão de 98 organizações
pede à ONU que revise os informes, divulgados no ano passado, para que reflitam
as experiências de sobreviventes da prostituição e para incluir uma gama mais
ampla de pontos de vista sobre o impacto de legalizar a indústria do sexo.
Um deles, intitulado O Trabalho Sexual e a Lei na Ásia
Pacífico, foi apoiado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
(Pnud), pelo Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) e pelo Programa
Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/aids (Onusida). O segundo, O HIV e a Lei:
Riscos, Direitos e Saúde, foi publicado pela Comissão Global sobre HIV e
Direito do Pnud.
Ambos se centram em reduzir o vírus HIV e a doença que
causa, a aids, protegendo simultaneamente os direitos dos que trabalham na
prostituição. As sobreviventes do tráfico sexual dizem ser imperativo abordar a
demanda que mantém vivo o negócio da prostituição, e que isso não é
adequadamente abordado nos informes. A um pedido de declarações, um porta-voz
do Pnud disse que os informes examinam os problemas do trabalho sexual pelas
lentes específicas da epidemia de HIV, e que condenam fortemente o tráfico
sexual.
“O Pnud defende e promove o respeito pelos direitos humanos
para todos, especialmente os mais excluídos e marginalizados. O informe O
Trabalho Sexual e a Lei… distingue claramente entre trabalho sexual adulto
consensual e tráfico humano com fins de exploração sexual”, explicou o
porta-voz. Fontes do UNFPA e da Onusida disseram à IPS que a declaração do Pnud
reflete de modo preciso a posição de suas agências.
Os estudos também propõem a despenalização da indústria
sexual como uma forma de promover a capacidade das pessoas que se prostituem de
negociar o uso de preservativos. A Igualdade Já afirma que a questão econômica
é que exerce pressão para manter relações sexuais sem preservativo, pois
frequentemente os clientes oferecem mais dinheiro para que seja dessa forma. Se
as mulheres são escravizadas ou controladas por um proxeneta, têm menos
capacidade de insistir no uso de preservativos.
Em um comunicado, o Pnud declarou que a penalização do
trabalho sexual aumenta a vulnerabilidade perante o HIV e limita o acesso aos
preservativos e aos serviços de saúde sexual. Hersh acredita que “comumente são
os proxenetas e os clientes que ditam o uso de preservativos, porque as
mulheres podem conseguir mais dinheiro deixando de usá-los”, e ressaltou que a
coalizão não tenta prejudicar os esforços da campanha contra o HIV/aids. A
Igualdade Já tenta, há quase um ano, chegar à ONU por meio de canais internos,
inclusive mediante o envio de uma carta assinada por mais de 80 organizações a
Michel Sidibé, diretor-executivo da Onusida.
A prostituição é legal em muitos países, entre eles a Suíça.
Há pouco foram instaladas em Zurique “cabines sexuais” para promover a
segurança das prostitutas. Mas a situação continua sendo difícil para homens e
mulheres em Estados que legalizam ou despenalizam a prostituição, segundo a
Igualdade Já. “Um dos principais problemas é que os informes não incluíram
consultas aos nossos sócios no terreno, particularmente as organizações
lideradas por sobreviventes”, disse Hersh à IPS.
Stella Marr, diretora-executiva e cofundadora da organização
internacional Sex Trafficking Survivors United, é uma sobrevivente da
exploração sexual. Foi aliciada aos 20 anos e exerceu a prostituição durante
uma década. “Se não abordarmos a demanda, sempre haverá tráfico”, advertiu Marr
à IPS, acrescentando que os informes da ONU a “entristecem”.
Marr acredita que a melhor solução é o modelo nórdico, que
penaliza a compra de sexo, mas despenaliza a prática da prostituição. Ela
abandonou a prostituição quando um cliente lhe ofereceu ajuda e um lugar seguro
para viver por dois anos. Não conhece ninguém mais que tenha conseguido isso.
“O fato de eu ter saído não significa que fui forte. Tive sorte”, afirmou.
As vozes das sobreviventes da indústria do sexo não são
ouvidas tão fortemente como as de quem continua na atividade, pela vergonha que
as persegue, apontou Rachel Moran, integrante e fundadora da Survivors of
Prostituiton-Abuse Calling for Ellightenment (Space) International, que foi
prostituta dos 15 aos 22 anos.
Outra faceta dos informes que a Igualdade Já quer abordar é
a definição de “tráfico” dada pela ONU. No Protocolo para Prevenir, Reprimir e
Sancionar o Tráfico de Pessoas, Especialmente Mulheres e Crianças, das Nações
Unidas, os Estados membros acordaram uma definição ampla, que reflete uma
variedade de experiências vividas por sobreviventes da exploração sexual. Os
informes da ONU do ano passado recomendam reduzir e reelaborar a definição, o
que pode significar que muitas pessoas que foram submetidas já não sejam consideradas
vítimas e que os traficantes não sejam responsabilizados.
“Entendo que é difícil. É preciso ter uma maneira de ajudar
as pessoas a saírem dessa vida. Precisam ser reconhecidas como vítimas de
tráfico. Não acreditamos que alguém a escolha”, ressaltou Marr. Contudo, a
Igualdade Já é otimista em relação a próximos documentos, e dá como exemplo um
estudo da Ásia Pacífico, recentemente lançado por Pnud, UNFPA e ONU Mulheres,
segundo o qual a compra de sexo na região está fortemente associada às violações
e à violência sexual generalizada contra as mulheres.
Fonte: Envolverde
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