Em entrevista, a advogada Magnólia Said diz que o tráfico de mulheres já é algo real e planejado para a
Copa e afirma que as mulheres têm sido vendidas no exterior como um atrativo turístico
a mais – o que os governos federal, estadual e municipal se recusam a admitir.
E que a tendência é de aumento da violência contra a mulher durante o
megaevento – inclusive assédio, estupro
e violência doméstica.
A advogada Magnólia Said conhece a realidade cearense
profundamente. Técnica do Esplar –
Centro de Pesquisa e Assessoria, uma ONG que trabalha nos municípios do semiárido
com atividades voltadas para a agricultura familiar – desde 1989 trabalha com
grupos de mulheres do Estado. Por isso, foi uma das primeiras integrantes da
Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa (ANCOP), a questionar os
impactos do megaevento sobre a vida das mulheres cearenses.
Fortaleza é uma das cidades-sede da Copa e, além de
colecionar altos índices de violência doméstica e abuso sexual contra crianças
e adolescentes (as denúncias subiram 23% entre 2011 e 2012), é um conhecido
alvo de turismo sexual, combatido por programas governamentais que, segundo
ela, não se prepararam para a tendência de aumento de casos durante a Copa do
mundo.
Em fevereiro deste ano o Esplar lançou, em parceria com a
Fundação Heinrich Böll, um folheto informativo para distribuição e um dvd
inédito “Copa 2014 – “O que as mulheres têm a ver com isso?”, que a Pública
disponibiliza aqui.
O folheto e o filme chamam a atenção para os efeitos
negativos que a Copa pode trazer para a população, destacando o aumento do
turismo sexual. Uma pesquisa do jornal ‘O Povo’ de Fortaleza refere-se ao
Brasil como um país à mercê do turismo predatório, destacando que algumas
cidades sede, como Natal, Salvador e Fortaleza, têm recebido um grande número
de homens solteiros e de maior idade que buscam as cidades para usufruir do que
se transformou em um grande comércio do corpo e da vida das mulheres”, alerta o
material produzido pela advogada.
Em entrevista,
Magnólia diz que o tráfico de mulheres já é algo real e planejado para a
Copa e afirma que as mulheres têm sido vendidas no exterior como um atrativo
turístico a mais – o que os governos federal, estadual e municipal se recusam a
admitir. E que a tendência é de aumento da violência contra a mulher durante o
megaevento – inclusive assédio, estupro
e violência doméstica. Leia:
O que as mulheres têm
a ver com a Copa afinal?
Tudo! Se falamos de remoções para a Copa, da mudança no
espaço urbano ou de obras de desenvolvimento, as mulheres acabam sendo as mais
impactadas. No caso das remoções, por exemplo, quem estabelece um convívio social com a comunidade é a
mulher. Ela tem as amigas que se
encontram nas casas, as vizinhas que revezam os cuidados com as crianças para
uma e outra poder trabalhar, vende
paninhos, cosméticos ou vai fazer uma faxina aqui, lavar uma roupa ali, tudo no
entorno de casa. Também é ela que gerencia a rotina do lar e fornece a
estrutura para o homem trabalhar. Então quando as famílias são removidas, a
mulher é mais penalizada.
Além disso, em todas as cidades sede a maioria das
ambulantes é mulher. Novamente elas
serão mais impactadas pelas áreas de exclusão da Fifa. E em especial a mulher
será a mais impactada pelos vários tipos
de violência. A exploração sexual é um dos tipos.
Como isso acontece?
A nossa imagem [do Ceará] é vendida lá fora como a de um
lugar com belas praias e de um povo acolhedor. Um jornal daqui entrevistou um
turista que disse que gostava do Ceará porque era mais fácil de lidar com as
mulheres, elas eram mais receptivas. Em um estado como o nosso, que está
atravessando uma das piores secas dos últimos 50 anos, que é extremamente pobre
e desigual, com a Copa, as mulheres vão pensar: vou sair da miséria e posso
conseguir um dinheiro para manter minha família, então vou para Fortaleza. Isso
já está acontecendo em algumas cidades onde o Esplar trabalha. Nós estamos
ouvindo isso de algumas mulheres. Para arrumar um emprego com a Copa ou arrumar
um estrangeiro. Estou muito preocupada porque a gente já observou alguns tipos
de exploração e de tráfico. O tráfico interno que acontece dos municípios pequenos para os maiores municípios
é muito forte.
De que forma?
As cafetinas, que têm casas que fazem os programas aqui em
Fortaleza, fazem o aliciamento dessas
mulheres do interior. No jornal mesmo existem anúncios propagandeando a alta
rotatividade de mulheres, falando que
você já tem sempre a mesma mulher em casa, então o melhor é variar.
Esse tipo de tráfico hoje é mais forte para os municípios
praieiros, como Canoa Quebrada. É acintoso. Porque lá é o lugar dos gringos. E
essas são mulheres mais jovens, muitas vezes menores de idade, todas muito
pobres.
E esse tráfico
interno pode crescer com a Copa?
Pode crescer muito, ainda mais pela situação que nós estamos
vivendo de seca e falta de trabalho. As mulheres mais velhas, que precisam
sustentar suas famílias, já estão vendo aí uma oportunidade. As mais jovens,
querem “arrumar um estrangeiro” e sair da miséria.
É preciso entender o cenário : as políticas do governo quando chegam, vêm com tanta
politicagem que não chegam para quem mais precisa. Ou já tem prioridades mais
definidas. Nós temos aqui pertinho de Fortaleza por exemplo, o Complexo
Portuário do Pecém. Lá tem siderúrgicas, refinarias, duas termelétricas , então
tem que ter água. A água do São Francisco, que aquele ex-presidente disse que
serviria para matar a sede de 12 milhões de pessoas, naquela época a gente já
alertava que não era para isso. Era para fruticultura, para prover Pecém e
Fortaleza. São Gonçalo do Amarante é a cidade do Pecém. Tem 100 comunidades
onde chegam somente três carros pipas e em algumas comunidades a água nem
chega. A que chega é contaminada. Só agora o governo teve o descaramento de
dizer que a água do São Francisco vem para Fortaleza e para Pecém.
Então esse é um cenário para que essas mulheres vejam a Copa como uma oportunidade de mudança de
vida e isso é propício para as cafetinas atuarem. Isso já pode ser sentido?
Com certeza. Já foram criados até cursos de idiomas para as
mulheres atenderem melhor aos turistas! Imagina o que elas estão aprendendo.
Uma amiga estava na França com outro amigo estrangeiro, ele iria ligar para o
país dele e ela para o Brasil. Eles compraram cartões telefonicos. O dele era
comum. No dela tinha uma mulher seminua.
E as leis protegem
mais os turistas do que os cidadãos, não?
Sim, porque existe um complexo de inferioridade. Nós, o
estado do Ceará, somos uma cidade de muro baixo. Qualquer pessoa que tenha
poder e dinheiro sufoca a gente. Então um homem alto, loiro, bonito e branco,
impõe muito mais poder a uma delegada de uma delegacia da mulher, do que uma
cidadã que fala português e muitas vezes nem fala o português correto. Ele veio
de fora está trazendo dinheiro para o Estado. Existe também esse incentivo
fortíssimo no discurso oficial. Toda hora o responsável pela Copa daqui diz que
a Copa vai trazer dinheiro para o nosso Estado, e que nosso Estado não pode
parar de crescer. E que vai ficar conhecido internacionalmente. Então eu,
delegada, vou intimidar um turista que vai trazer dinheiro e contribuir para o
crescimento do meu Estado? Não vou. “Deixe por menos”.
E não existe uma estrategia
pensada e efetivada de proteção à mulher [nos megaeventos] não existe
hoje nem por parte da prefeitura nem por parte do governo do estado. A Livia
Xerez, que é coordenadora do Núcleo Estadual de Enfrentamento ao Tráfico de
Pessoas, disse que chama os órgãos oficiais e eles simplesmente não acreditam
que isso possa acontecer. Eu acho que eles fazem de conta que não sabem porque
o empresário que vem de fora não pode ser lesado, a proteção maior é para eles.
De onde surgiu a
ideia de fazer o vídeo?
Eu já trabalho com mulheres do campo desde 1989 dando
assessoria e formando grupos de mulheres através do Esplar. Quando a gente fez
o comitê de Fortaleza, começou a me
incomodar [o fato] de que ninguém falava sobre a questão da exploração sexual
ou mesmo dos impactos mais gerais da Copa na vida das mulheres. Falava-se de
remoções, mobilidade, mas não se fazia esse recorte nem o recorte racial. Aí a
Fundação Boll me procurou um dia, disse que vinha notando minha fala e queria
saber se eu queria produzir um material.Fiz o informativo e pensei que a gente
comunicaria mais se pudesse conversar com as pessoas sobre isso. No Nordeste,
onde atuamos, a coisa é mais complexa. Queremos que isso seja um primeiro passo
para uma campanha, pegar alguns jogadores que tenham perfil ético dizendo que
eles vêm para a Copa mas são contra a exploração de mulheres.
Fonte: www.apublica.org/
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