Para especialistas, adotar a perspectiva de gênero no
trabalho de responsabilização de homens agressores, conforme os parâmetros
previstos pela Lei Maria da Penha, é uma ação essencial para prevenção de novas
violências.
Previsto tanto pela Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006),
como pela Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/1984), o trabalho com homens
agressores é uma parte importante das ações de enfrentamento à violência contra
as mulheres, mas que ainda conta com poucos serviços no País.
A Lei Maria da Penha prevê em seu artigo 35 que sejam
criados, pela União, Estados e Municípios, centros e serviços para realizar
atividades reflexivas, educativas e pedagógicas voltadas para os agressores. Os
resultados esperados seriam a responsabilização do homem pela violência
cometida, em paralelo com a desconstrução de estereótipos de gênero e a
conscientização de que a violência contra as mulheres, além de grave crime, é
uma violação epidêmica de direitos humanos.
Dessa forma, o trabalho se somaria a ações educativas e
preventivas que buscam coibir o problema em duas frentes – evitando que o
agressor volte a cometer violências, em sentido mais imediato, e mudando
mentalidades, para resultados no médio prazo.
Nesse sentido, a abordagem da desigualdade de gênero, que
contemple as relações desiguais de poder, é elemento fundamental para
diferenciar o trabalho pedagógico e de responsabilização de uma ação com
caráter assistencial ou de ‘tratamento’ do agressor, uma vez que a minimização
da gravidade da violência cometida teria efeito contrário ao esperado.
Barreiras e desafios
A avaliação de quem trabalha na área é que esse trabalho é
tão importante quanto desafiador. Entre as principais barreiras apontadas estão
conseguir recursos para custear o programa e sensibilizar as diferentes esferas
do Poder Público sobre a necessidade de medidas nesse sentido. Superadas essas
barreiras, resta ainda conquistar a adesão dos próprios homens para um processo
de desconstrução da cultura patriarcal.
Diante das dificuldades enfrentadas, os serviços ainda são
poucos e insuficientes para dar conta de uma demanda que cresce, na medida em
que há um incremento nas denúncias, conforme aponta a juíza Elaine Cristina Monteiro Cavalcante,
da Vara Central da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de São Paulo,
que criou um projeto especial para atuar nessa frente, o “Dialogando para a
Paz”.
“Nossa principal dificuldade é em relação à criação de
centros de educação para os agressores, prevista no artigo 35 da Lei Maria da
Penha. Atualmente, na cidade de São Paulo, contamos apenas com dois serviços,
que não têm condições de atender toda a demanda das varas especializadas do
Município”, conta a juíza.
A proposta do “Dialogando para a Paz” é encaminhar os homens
que enfrentam processos pela Lei Maria da Penha para os dois programas
oferecidos na capital paulista – o Curso de Reeducação Familiar da Academia de
Polícia Civil do Estado de São Paulo e o Grupo de Reflexão para Homens Autores
de Violência da ONG Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde.
Para a juíza, este trabalho é importante, pois oferece
condições para que os homens que cometem violências repensem seus papéis nas
relações de gênero e, consequentemente, adotem atitudes e comportamentos não discriminatórios em seus relacionamentos
familiares e afetivos.
O encaminhamento ocorre durante o andamento do processo
criminal, independentemente da punição prevista em lei, por meio de uma
audiência coletiva em que as duas entidades apresentam seu trabalho e buscam
estimular os réus a frequentarem os cursos e grupos de reflexão.
Apesar de a participação no “Dialogando para a Paz” ser
facultativa, os resultados, na avaliação da juíza Elaine, têm sido de fato
satisfatórios: a média de reincidência dos homens que concluíram os programas,
enquanto respondem ao processo criminal na Vara especializada, tem sido de 11%.
“Isto sem dúvida contribui para a redução da violência doméstica e familiar.
Possibilita que o homem reflita sobre sua atitude para que ele próprio possa
desconstruir o processo cultural do patriarcado que foi aprendido e, a partir
daí, aprenda a construir outra alternativa para a situação de conflito que não
seja a violência”, avalia a titular da Vara. “Para que haja o processo de
transformação social, o homem precisa se convencer de que não há mais espaço
para a violência doméstica”, complementa.
Responsabilização e
perspectiva de gênero
Segundo o filósofo e professor Sergio Barbosa, coordenador
do trabalho realizado na capital paulista pela ONG Coletivo Feminista
Sexualidade e Saúde, os grupos buscam “criar uma forma para que esses homens
possam se responsabilizar, entendendo que a violência não é fruto do uso de
álcool ou de drogas, mas que é a própria construção da masculinidade que, de
certa forma, potencializa esse exercício da violência sobre as mulheres”.
O trabalho do especialista, um dos pioneiros no País,
começou na década de 1990, já com a perspectiva de gênero. A proposta, à época,
era evitar a banalização e impunidade perante a violência doméstica, quando
ainda não existia a Lei Maria da Penha e a abordagem jurídica dos casos era
baseada na Lei nº 9.099/1995, que minimizava o problema, segundo especialistas,
propondo punições alternativas para os agressores, como a doação de cestas
básicas.
“A proposta era uma forma de combater e erradicar a
violência contra as mulheres, porque este tipo de crime era visto como um
delito de menor poder ofensivo. Mas sabíamos que isso poderia se agravar e que
a mulher chegaria até mesmo a correr risco de morte”, contextualiza o filósofo.
Nesse sentido, partindo da premissa de que o encarceramento
do agressor – por si só – também não seria uma forma de conter a violência, os
grupos reflexivos surgiram como uma alternativa para trabalhar a desigualdade
de gênero junto a homens. “Estamos tentando mostrar para os operadores de
Direito e para as Varas Especializadas que a mudança de atitude por parte do
homem requer um processo de discussão profunda sobre os valores do patriarcado,
porque a prisão não recupera ninguém, pelo contrário, muitas vezes é até pior,
acaba cristalizando mais essa violência”, justifica o coordenador do programa.
Com isso, o objetivo do trabalho, atualmente desenvolvido em
encontros mensais por pelo menos quatro meses, é fazer com que o homem repense
suas condutas sociais, trabalhando, assim, questões como: quais são os papéis
do homem e da mulher na sociedade; a revisão de conceitos; e a crítica às
definições impostas por uma estrutura patriarcal e machista.
“Buscamos atuar na desconstrução do patriarcado na
sociedade, esperando, como efeito desse processo, que os homens cessem o uso da
violência”, aponta Barbosa. Para ele, o Poder Público tem que investir
sobretudo no caráter preventivo previsto na Lei Maria da Penha e os grupos de
reflexão são uma das atuações possíveis nessa frente.
Um trabalho para as
mulheres
Em Minas Gerais, outro grupo com bagagem neste tipo de
serviço – a ONG Instituto Albam – define o trabalho com homens como uma ação
para as mulheres. “A partir da denúncia, muitos homens não permanecem no
relacionamento em que estavam, mas vão entrar em um novo relacionamento e podem
cometer novas violências. Nossa expectativa é que, após o grupo, a violência
não seja mais naturalizada”, explica a especialista Rebeca Rohlfs, psicóloga e
coordenadora-geral do Instituto.
A ONG desenvolve, desde 2005, o projeto Andros, pelo qual são realizados 16 encontros de 2
horas de duração com homens que praticaram violência contra mulheres.
Diferentemente de São Paulo, em Minas a adesão ao programa é determinada pelo
Judiciário e não facultativa. “Depois da Lei Maria da Penha, começou uma
articulação com as Varas Especializadas; mas o trabalho demorou um pouco para
tomar corpo, porque ainda não havia uma definição sobre qual seria a melhor
forma de fazer este encaminhamento”, conta a psicóloga.
Com a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que declarou a constitucionalidade do artigo 41
da Lei Maria da Penha, que, por sua vez, afastou a aplicação do artigo 89 da
Lei nº 9.099/95, o Instituto avaliou que um bom caminho seria colocar a
participação no grupo como parte da medida protetiva. “Depois que um homem é
preso preventivamente e passa a responder penalmente pela agressão, a sua
soltura é condicionada a acompanhar o grupo reflexivo”, explica a coordenadora
do Albam.
Os homens que participam atualmente do Programa Monitoração
Eletrônica de Agressores – conhecido pelo uso de tornozeleiras eletrônicas –
promovido pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, por exemplo, passam pelos
grupos de reflexão. “Estamos acompanhando os homens com esse trabalho
reflexivo, porque não sabemos como vai ser quando saírem da tornozeleira”,
destaca a coordenadora da ONG.
Segundo a psicóloga, o foco é fazer com que estes homens
passem a ter consciência da dimensão da violação cometida – já que muitas
vezes, no contexto de uma sociedade marcada pela desigualdade de gênero, o
autor de violência contra as mulheres não enxerga a gravidade do crime que
praticou.
“A maioria que tem vindo passou pelo sistema penitenciário;
então, eles chegam muito fragilizados, queixosos, se sentem extremamente
injustiçados e, para começar o trabalho, é preciso quebrar essa barreira.
Então, a gente trabalha muito a responsabilização, fazemos um trabalho de
desconstrução da desigualdade entre homens e mulheres e de responsabilização
pelo ato de violência”, aponta.
Diretrizes
Outro Estado com experiência no trabalho com homens autores
de agressão é o Rio de Janeiro, onde o ISER (Instituto de Estudos da Religião)
já desenvolvia o Serviço de Educação e Responsabilização dos Homens Autores de
Violência de Gênero (SERH) mesmo antes da implementação da Lei Maria da Penha.
Socióloga que atuou como facilitadora de grupos em Belford
Roxo e São João de Meriti, na Baixada Fluminense , Milena do Carmo explica que
o trabalho era estruturado em até três entrevistas iniciais, que precediam 5
meses de encontros semanais ou quinzenais, de acordo com as normas de cada
Fórum, e variavam, assim, de 10 a 24 encontros aos todos. Dentre os temas
trabalhados estavam: direitos humanos, gênero e violência – e os grupos também
ocorreram em Niterói.
“É um trabalho árduo; esses homens aprenderam a ter relações
violentas. O que procuramos é dar instrumentos para eles reagirem no momento em
que a violência pode se concretizar. Muito mais do que encerrar o ciclo de
violência, esperamos contribuir para uma mudança de cultura – o que sabemos ser
difícil de acontecer – mas, se a partir da reflexão dermos novas ferramentas
para a resolução do conflito, o trabalho funcionou”, avalia.
A socióloga conta que o projeto em que atuava em São João de
Meriti enfrentou dificuldades para manter seu funcionamento quando houve uma
troca na gestão municipal de Nova Iguaçu, com quem o convênio tinha sido
inicialmente firmado - um problema apontado como recorrente por profissionais
da área. “Esse tipo de financiamento ainda está muito difuso, não existe uma
diretriz, uma política pública de financiamento”, aponta.
Diante de dificuldades como esta, apesar da descontinuidade
do Serviço no Rio de Janeiro, o SERH se
tornou uma referência para outros Estados e elaborou um documento base com
parâmetros técnicos para esses serviços (confira o documento na íntegra). O
psicólogo Fernando Acosta, também pioneiro neste tipo de trabalho e um dos responsáveis
pelo SERH, tem prestado consultoria para Estados e municípios que estruturaram
ou pensam em estruturar grupos para atuar com homens autores de agressão, como
em Rio Branco (AC) e Londrina (PR).
Na sua avaliação, de fato, muitas vezes as ações nessa
frente ficam reféns da descontinuidade no Poder Público. Ele lembra,
entretanto, que todo município com mais de 200 mil habitantes pode criar esse
serviço, solicitando verbas ao Departamento Penitenciário Nacional (Depen) do
Ministério da Justiça. Outra estratégia importante é sensibilizar o Poder
Judiciário sobre a importância do trabalho e atuar em parceria com a rede de
atendimento às mulheres que sofreram violência doméstica.
“Eu não acredito em nenhuma mudança que não parta de uma
mudança subjetiva; este é um trabalho necessário. A Lei Maria da Penha ajudou
muito, mas esse [trabalho com homens] ainda é um tema tabu”, avalia.
Acosta prestou recentemente uma consultoria para o Estado do
Acre desenvolver seu próprio serviço – o Serviço de Responsabilização para
Homens Autores de Violência Doméstica (Ser Homem), criado por meio da
Secretaria de Estado de Justiça e Direitos Humanos (Sejudh). Até dezembro de
2013, o serviço já havia realizado 21 grupos com homens que foram ou estão
sendo acusados da prática de violência doméstica.
O encaminhamento é realizado pela Vara de Violência
Doméstica e Familiar Contra a Mulher de Rio Branco e incluso nas medidas de
proteção. “Temos uma parceira com a Vara Especializada do Tribunal de Justiça
do Acre (TJAC), que determina que os homens se apresentem na Secretaria de
Direitos Humanos para participar do Ser Homem, onde serão recebidos por uma
equipe multidisciplinar. A intenção é que eles participem das atividades para
que, quando acontecer a audiência do processo criminal, a juíza tenha nosso
relatório técnico em mãos, no qual informamos como se deu o trabalho, como foi
o retorno”, explica a coordenadora do Ser Homem, Luiza Barros.
O serviço do Estado segue as diretrizes elaboradas pela
Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República (SPM-PR)
em um trabalho conjunto com outros Ministérios e profissionais da área:
trabalhar a perspectiva de gênero, atuar de modo integrado com o Sistema de
Justiça, produzir um banco de dados e captar verbas públicas que não venham de
secretarias ou pastas voltadas ao desenvolvimento de políticas para as mulheres
[ver box abaixo].
No caso, o Ser Homem resulta de uma parceira entre o TJAC e
a Sejudh, financiada pelo Depen/MJ, citado por Fernando Acosta como uma fonte
de recursos. “Procuramos fazer uma retrospectiva histórica e cultural dos
papéis de gênero, da figura feminina e masculina, para que eles compreendam o
nível de desigualdade da figura feminina e entendam o momento atual. Usamos
debates, dinâmicas, vídeos – vale tudo para essa reflexão”, conclui a
coordenadora do Ser Homem.
Diretrizes da
SPM/PR trazem conceito, objetivos e caminhos para criação dos serviços
Capa da publicação Rede de Enfrentamento à Violência contra
as Mulheres (SPM-PR, 2011)Em 2011, a SPM-PR publicou um documento para auxiliar
Estados e Municípios na criação dos diferentes órgãos da rede de enfrentamento
à violência contra as mulheres, conforme previsto pela Lei Maria da Penha.
Entre as recomendações estão as Diretrizes Gerais dos Serviços de
Responsabilização e Educação do Agressor.
O documento define que o serviço é responsável pelo
acompanhamento das penas e das decisões proferidas pelo juízo competente e, por
isso, deve estar vinculado aos tribunais de justiça ou aos executivos estadual
e municipal, por meio das secretarias de Justiça ou de órgãos responsáveis pela
administração penitenciária.
Seu objetivo, assim, seria duplo: promover atividades
pedagógicas e educativas para trabalhar a perspectiva de gênero e a
responsabilização junto aos autores de agressão, por um lado, e também
acompanhar as penas e decisões, atuando em conexão com a rede institucional.
Entre suas atribuições, segundo o documento, estão as
seguintes atividades:
- Condução e facilitação de atividades educativas e
pedagógicas em grupo que favoreçam uma conscientização por parte dos agressores
quanto à violência cometida, a partir de uma perspectiva de gênero feminista e
uma abordagem responsabilizante.
- Fornecimento de informações permanentes sobre o
acompanhamento dos agressores ao juízo competente, por meio de relatórios e
documentos técnicos pertinentes.
- Encaminhamento para programas de recuperação, para
atendimento psicológico e para serviços de saúde mental, quando necessário.
- Articulação com os demais serviços da Rede de Atendimento
à Mulher em situação de violência, em especial com o sistema de justiça
(Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, Ministérios
Públicos, Centrais de Medidas Alternativas, Secretarias Estaduais/Municipais de
Justiça, Poder Judiciário, etc.).
- Atualização permanente de banco de dados das atividades
realizadas, com vistas à prestação de contas, periódicas, a quem couber.
- Formação continuada da equipe técnica multidisciplinar,
garantindo a qualidade do atendimento prestado.
- Atualização permanente das informações sobre direitos
humanos, relações de gênero, masculinidades e violência contra as mulheres, a
partir de uma abordagem feminista.
Fonte: (Débora Prado) Compromisso e Atitude
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