Falta de documentação, dependência econômica, medo diante
das ameaças feitas pelo companheiro, desconhecimento da lei e despreparo dos
agentes públicos contribuem para invisibilidade dos casos de violência
doméstica contra mulheres imigrantes.
“Eu me sinto sozinha,
porque ninguém me ajuda e não posso falar com ninguém. Fico segurando e, de vez
em quando, eu choro sozinha em casa”. Assim tem sido a vida da boliviana Maria*
nos últimos anos. Casada há mais de 15 anos, ela não apanha do marido há oito
meses. Antes, as agressões eram freqüentes. Em uma delas, Maria foi parar no
pronto-socorro. Apesar da violência física ter cessado, outras continuam: ela
só saí de casa acompanhada de um dos filhos e não pode telefonar para a
família, devido ao ciúme e desconfiança do companheiro. Nunca denunciou, por
medo e por, até então, não conhecer seus direitos previstos pela Lei Maria da
Penha (Lei nº 11.340/2006).
O cotidiano vivido por Maria é compartilhado por muitas
imigrantes em São Paulo. A jornalista do Centro de Apoio ao Imigrante (CAMI),
Carmen Rosa Hilari, aponta a falta de documentação, a dependência econômica e o
medo diante das ameaças feitas pelo companheiro como fatores que se colocam
como barreiras para que as imigrantes rompam o ciclo da violência doméstica.
“É muito comum a violência doméstica acontecer no lar, que
também é ambiente de trabalho. O dono da oficina de costura, por exemplo, fica
com o documento da mulher e dos filhos. Quando o documento está com o marido,
ele ameaça colocá-la na rua para que seja deportada pela polícia. Ela tem medo
do marido, porque ele a isola da família de origem. É ele que tem o dinheiro”,
exemplifica.
A procuradora Natasha Rebello Cabral, do Ministério Público
do Trabalho de São Paulo, também aponta que, muitas vezes, a violência
doméstica se conjuga com a situação de cárcere privado de mulheres imigrantes.
“Em algumas situações, a vulnerabilidade, a dependência do
marido e, algumas vezes, a retenção dos documentos impossibilita a pessoa de
sair do local”, explica. Segundo a procuradora, ainda, na maior parte dos
casos, a situação de trabalho é degradante, com jornada estendida e salário bem
abaixo do mínimo, uma vez que o imigrante recebe por peça produzida, nos casos
das oficinas de costura, por exemplo.
Com isso, diante da necessidade de produzir várias peças ao
longo do dia, muitas mulheres desistem da denúncia, realidado constatada também
no dia a dia do CAMI - que, desde 2005, promove palestras e cursos, além de
oferecer atendimento jurídico para resgatar a população imigrante que vive em
situação de vulnerabilidade social. “Elas falam: ‘Vou lá e meu marido vai ficar
preso. Ele que trabalha na oficina... quem vai me ajudar? Vou morrer de fome se
ele não trabalhar comigo’. Tem casos que passaram pela nossa ONG de mulheres
que denunciaram e, no final, retiraram a denúncia pelo prejuízo que tiveram.
Essas são coisas que fazem com que boa parte das mulheres sinta medo de
denunciar, porque ela não é independente”, explica Carmen.
Além dessas barreiras, a mulher imigrante também se depara
com o despreparo das delegacias para receber a denúncia. “Uma parcela dos
delegados, infelizmente, não só não estão preparados, mas não têm paciência
para lidar com a mulher imigrante. A primeira coisa que perguntam é: ‘cadê sua
documentação?’ Muitas vezes, a mulher é tratada como culpada lá”, conta a
jornalista do CAMI.
Para contribuir na resolução do problema, a expectativa é
que o Ministério Público de São Paulo (MPSP) articule ações com o governo
estadual para melhora do atendimento. “Ainda não temos a capacitação das
polícias civil e militar, mas esse é um projeto para este ano. Para isso, temos
feito reuniões com as delegadas das Delegacias das Mulheres, buscando
colher informações e, depois, nos
reuniremos com o Secretario de Segurança para melhorar o atendimento, a
estrutura e fazer a capacitação desses profissionais”, explica a promotora
Silvia Chakian de Toledo Santos, que coordena o Grupo de Enfrentamento a
Violência Doméstica no estado.
Lei Maria da Penha
Para divulgar os direitos assegurados pela Lei Maria da
Penha a todas as mulheres no Brasil, o MPSP, em parceria com o CAMI, lançou no
mês passado a cartilha “Mujer Da Vuelta la Página”, em espanhol, voltada as
mulheres imigrantes de origem latina.
A coordenadora do Gevid relata que ao longo do ano várias
mulheres imigrantes, principalmente bolivianas, buscaram auxílio no MP para
lidar com o problema. Durante os atendimentos, a equipe de promotores também
percebeu as dificuldades enfrentadas por essas mulheres.
“Elas estão num país estranho, lidando com outro idioma,
outras culturas e relações sociais. É evidente que essas mulheres sintam esse
estranhamento. Também não é raro que nós, brasileiros, olhemos para essa
população com indiferença e isso é o pior que pode acontecer com essas
mulheres, porque elas precisam de uma chance. Precisam ser orientadas quanto a
seus direitos na lei, e precisam mesmo ser ouvidas”, destaca.
Trabalho
Em relação à situação irregular, como constatado em algumas
oficinas de costura, a procuradora Natasha informa que, a partir da denúncia
sobre trabalho em situação análoga à escravidão, o órgão, em parceria com o
Ministério do Trabalho e Emprego e o Cami, vai até o local, com o apoio da
Polícia, e resgata as pessoas que estão em situação de indignidade.
Instantaneamente, são pagas as verbas rescisórias e, em geral, com o termo de
ajustamento de conduta, obtém-se o pagamento de indenização por danos morais,
além de ser facilitado o retorno ao país de origem para aqueles que desejarem.
Como os procedimentos são feitos por via administrativa e
são acompanhados por uma Vara de Justiça itinerante da Justiça do Trabalho,
todos os trâmites demoram poucos dias. “Pedimos que seja feita a denúncia pelo
site do MPTR, pelo Disque Denúncia ou pessoalmente. O denunciante pode ser
anônimo, o que torna mais fácil, porque essas mulheres estão em situação de
vulnerabilidade e, muitas vezes, têm medo de buscar apoio”, reforça.
*O nome foi alterado para preservação da identidade da
vítima
Fonte: (Géssica Brandino) Agência Patrícia Galvão
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