A história de luta das mulheres indica grandes avanços em
sua situação social, mas o grau de violência contra elas permanece extremado,
particularmente quando se trata da violência sexual. E, nesses casos, sabemos
que a solução em termos processuais penais está a depender da prova produzida
no processo.
Por Kenarik Boujikian
Pesquisas apontam para a forte discriminação que as mulheres
sofrem quando vítimas de crimes sexuais, no que se refere à valoração que se
faz da prova produzida.
A solução justa para esses crimes depende muito da
compreensão por parte dos operadores do Direito sobre a necessidade de dar
maior proteção ao bem jurídico tutelado: a dignidade sexual, como prisma da
dignidade humana, particularmente a autodeterminação sexual da mulher, nos
aspectos da liberdade e da autonomia.
A Constituição Federal estabelece a dignidade humana como um
dos fundamentos da República. Acrescentem-se os tratados de direitos humanos
ratificados pelo Brasil, que estabelecem direitos das mulheres, além da rede de
direitos e de proteção, de níveis internacional e regional, pelos quais o
Brasil assumiu compromissos.
Para os casos de violência sexual, os princípios vinculantes
da igualdade e não-discriminação são ponto central e foram estabelecidos na
Constituição Federal e em diversos instrumentos que firmam o direito das
mulheres de terem um recurso judicial eficaz e célere (Convenção Americana
sobre Direitos Humanos, Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem,
Convenção de Belém do Pará), sendo que as obrigações assumidas pelo Estado
Brasileiro vinculam os três poderes.
Mas sabemos que há uma grande distância “entre a mão e o
gesto”, pois embora tenhamos um reconhecimento formal sobre a necessidade de
combate à violência sexual, a resposta estatal oferecida não tem nível de
correspondência no Sistema de Justiça.
A baixa punibilidade é um padrão, como consta de relatório
da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH); há pouca utilização do
Sistema de Justiça pelas mulheres vítimas, que não depositam confiança nas
instâncias judiciais, o que acaba por reforçar a insegurança. Perpetua-se,
assim, a naturalização da violência sexual contra as mulheres.
A subnotificação dos crimes sexuais é uma realidade mundial.
O percentual de informação aos órgãos de investigação da ocorrência dos crimes
sexuais, cujas vítimas em sua maioria são mulheres (adultas, adolescentes e
meninas), é infinitamente menor que o real. Entre as razões apontadas por
pesquisadores para que o registro não seja efetuado estão: vergonha, sentimento
de autorresponsabilização, temor em enfrentar o fato perante os tribunais,
carga emocional e física da agressão e desconfiança sobre o sistema,
estimando-se que o procedimento judicial é ineficaz para esclarecer os fatos e
passar por eles acarreta mais danos do que benefícios.
Credibilidade da
palavra da vítima
Os processos de crimes sexuais, sabidamente praticados de
forma clandestina – pois a violação da dignidade da mulher geralmente ocorre em
locais fechados, sem possibilidade de presença de testemunhas -, têm na palavra
da vítima a viga mestra. Por certo ela não está isenta dos requisitos de
verossimilidade, coerência e plausibilidade. Mas, nestes delitos, a declaração
coerente da vítima deve ter valor decisivo.
Por certo que a prova pericial tem grande relevo, mas nem
todos os crimes sexuais deixam vestígio. Nestas situações, a maior atenção deve
ser voltada para as declarações da vítima e, caso ela tenha fornecido dados
coesos e harmônicos, não há razão alguma para afastar de credibilidade referida
prova.
A palavra da vítima tem valor exponencial, desde que não
possua qualquer vício que possa maculá-la. Mas vício não se confunde com
discriminação e com preconceito. Em muitos processos, o que se vê é que a
vítima é quem é julgada na valoração da prova, quando se afirma, por exemplo,
que um homem sozinho não pode agredir sexualmente a mulher; que ela poderia
reagir; que ela despertou o instinto sexual; que ela usou roupas provocativas
etc.
No patamar civilizatório abraçado pelo Estado brasileiro,
que implica o reconhecimento da mulher como sujeito de direitos humanos em
posição igualitária, no qual é inadmissível que tenha a sua autodeterminação
sexual violada, é necessário que “o gesto se aproxime da mão”.
Indispensável que o Estado crie mecanismos para que as
mulheres vítimas de violência sexual sintam-se minimamente fortalecidas para
denunciar o fato à polícia. É preciso um arcabouço de infraestrutura adequada,
para que, desde o primeiro momento, existam estratégias de apoio reais. Nesta
medida, urge a criação de um suporte assistencial, psicológico e jurídico,
desde o primeiro instante e que deve perdurar durante e após o processo.
Aos desgastes emocionais, físicos e econômicos pelos quais
passam as vítimas há que se ter a devida resposta do Estado.
Ainda, necessária a realização de cursos de capacitação para
todos os operadores do Sistema de Justiça (defensores, promotores e juízes),
voltados à compreensão de gênero, da história das mulheres, para que se cumpra
a árdua tarefa que é derrogar a moral determinante, instituída pelo poder
patriarcal e fundamentada na discriminação de gênero.
O Estado tem o dever de adotar os meios apropriados para
prevenir, punir e erradicar a violência sexual contra as mulheres. A
compreensão de que o corpo da mulher é seu solo sagrado, que é o local que
habita a sua liberdade plena, é necessária para que o grau de discriminação
contra as mulheres transmude e passemos a dar-lhes efetivo amparo social e
estatal.
Kenarik Boujikian é cofundadora e presidenta da Associação
Juízes para a Democracia e magistrada no Tribunal de Justiça de São Paulo.
Fonte: Compromisso e Atitude
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