Grito dos quase incluídos? Flash mob da periferia? Repique
das jornadas de junho? Marcha do desprezo pela cultura democrática? Ou apenas e
tão somente "um rolê"?
Para o sociólogo Jessé de Souza esses fatos são mais um reflexo do apartheid brasileiro que separa, como se fossem dois planetas distintos, o espaço de sociabilidade dos brasileiros "europeizados", da classe média verdadeira, e os brasileiros percebidos como "bárbaros", das classes populares.
Para o sociólogo potiguar Jessé Souza, doutor pela
Universidade de Heidelberg, na Alemanha, e professor da Universidade Federal de
Juiz de Fora, com todas as interpretações que se possam atribuir ao fenômeno
(e, em especial, às reações da sociedade brasileira a ele), uma coisa é certa:
estamos diante de "um reflexo do apartheid brasileiro que separa, como se
fossem dois planetas distintos, os brasileiros ‘europeizados’, da classe média
verdadeira, e os percebidos como ‘bárbaros’, das classes populares".
Autor do já clássico A Ralé Brasileira - Quem É e Como Vive,
publicado em 2009, e de Os Batalhadores Brasileiros - Nova Classe Média ou Nova
Classe Trabalhadora?, em 2012, ambos pela Editora UFMG, Jessé refuta o conceito
de "nova classe média", exaltado no Brasil na última década. A
precarização dessa camada "que trabalha muito e ganha pouco", diz,
não permite definição tão positiva.
Na entrevista a seguir, o sociólogo afirma ver conotação
política (mas não planejada) nos rolês, alerta para o desejo de reconhecimento
desses jovens e critica a visão estreita dos que, à direita ou à esquerda,
concebem os sujeitos sociais "unicamente determinados e explicados por
estímulos econômicos".
Eis a entrevista.
Para a antropóloga Alba Zaluar, o rolezinho 'é uma
brincadeira, não um movimento social'. Para o escritor Paulo Lins, 'uma
manifestação extremamente política e organizada'. Para a cientista social
Rosana Pinheiro-Machado, 'o assunto mais caro à minha sensibilidade acadêmica e
política'. E para o sr.?
Apenas estudos empíricos poderiam dar conta da questão da
origem de classe desses jovens. Contudo, a fronteira entre nossos
desclassificados sociais - que eu chamo provocativamente de "ralé" -
e a nova classe trabalhadora precária, mal rotulada entre nós de "nova
classe média", é muito fluida. O que nos permite falar de classes
populares em sentido geral. Esses fatos são mais um reflexo do apartheid
brasileiro que separa, como se fossem dois planetas distintos, o espaço de
sociabilidade dos brasileiros "europeizados", da classe média
verdadeira, e os brasileiros percebidos como "bárbaros", das classes
populares. Desde que a barbárie fique restrita ao mundo das classes populares,
ela não é um problema real. E a classe média finge que se choca de tempos em
tempos com o que acontece nas prisões - como se todo mundo já não soubesse o
que lá acontece, como os alemães com os campos de concentração na Alemanha
nazista - ou com a violência nas favelas.
Muitos frequentadores se dizem chocados com a falta de segurança
'até no shopping'...
O problema só se torna sério e ameaçador quando se rompe com
as linhas de demarcação implícitas do nosso apartheid real, ainda que não
legal. E as classes populares passam a fazer de conta que não sabem qual é seu
lugar. É isso que confere caráter político a essas aparentes brincadeiras de
jovens da periferia. Eles ameaçam a fronteira de classes, vivida por todos nós
de modo implícito.
Mas essa 'nova classe média', ou 'classe trabalhadora
precária', como o sr. prefere, não se tornou um mercado interessante para o
comércio e as instituições bancárias que oferecem crédito popular?
É verdade e esse é um ponto muito interessante. O mercado se
interessa de modo crescente por essa classe ascendente porque quer saber como
vender para ela. Mas fazer comércio com alguém não significa
"aceitá-lo" ou "compreendê-lo", ainda que seja sem dúvida
um primeiro passo.
Em uma entrevista anos antes das manifestações de junho, um
dos integrantes do Movimento Passe Livre disse que mal podia esperar a chegada
das classes D e E ao Facebook. A capacidade de mobilização via redes sociais
dos jovens de periferia hoje, e seu intercâmbio com filhos de classe média,
muda esse panorama?
Sem dúvida existem novas oportunidades para a comunicação e
a ação política através da mídia digital. Como os meios digitais são mais
difíceis de controlar, eles tendem a ser mais alternativos e plurais.
Praticamente todos os movimentos políticos importantes nos últimos tempos
tiveram participação decisiva da internet. Mas é importante ressaltar que os
meios digitais são apenas "meios", não criam ou produzem uma cultura
política alternativa, ainda que possam fazer circular informações.
A reação dos lojistas, impetrando liminares para impedir
essas reuniões, e triagens nas portas dos shoppings, é legítima?
Os shopping centers no Brasil sempre conviveram com uma
classe que vinha para comprar e outra que vinha para passear e olhar as
vitrines. Especialmente nos fins de semana, o público muda, com pessoas das
classes populares com poucas alternativas de lazer e jovens com consumo
reduzido e concentrado nas praças de alimentação. A novidade agora é que, em
vez da deferência e vergonha das classes que se sabem inferiores, entra em cena
certo "protagonismo de classe popular" - um fenômeno interessante que
parece ter a cidade de São Paulo como epicentro, do tipo "é nóis na fita,
mano". As tentativas de restrição e o medo advêm antes de tudo dessa
mudança de atitude.
Se há mesmo conotação política nos rolês, por que eles
ocorrem basicamente em estabelecimentos periféricos e não nos nobres?
Afirmar que existe conotação política nesses eventos não é o
mesmo que dizer que sejam politicamente planejados. Se eles vão ou não
desenvolver formas mais organizadas de intervenção no espaço público antes
restrito à classe média verdadeira é uma questão em aberto.
E a polícia, que repetiu o minueto das manifestações de
junho: repressão indiscriminada primeiro e, após a grita nos meios de
comunicação, promessa de coibir crimes e abusos?
O problema real não é, em primeiro lugar pelo menos, nem da
polícia nem das autoridades. É o apartheid social entre classe média
europeizada e classes populares "bárbaras" de que falei. Ele cria
regras não escritas e, por causa disso mesmo, muito eficientes - uma espécie de
"constituição pré-jurídica" para a manutenção do racismo de classe
que é nossa verdadeira lei maior. É esse apartheid que criou o tipo de polícia
e a cultura da violência que temos.
Ainda que a classe média - e suas frações mais conservadoras
- não decida mais eleições majoritárias no Brasil, é ela que detém a hegemonia
política e cultural e influencia não só amplos setores das próprias classes
populares, mas também decide o que é julgado nos tribunais, o que é publicado
nos jornais, dito na TV e o que é discutido nas universidades. Ela domina a
esfera pública que decide o que é certo e errado na prática cotidiana real e é
por isso que temos uma agenda de "políticas públicas informais" que
inclui, por exemplo, matança indiscriminada e violência contra os pobres sem
que ninguém - salvo em exceções dramatizadas pela mídia como o caso de Amarildo
no Rio - seja responsabilizado. A ação do Estado e de seus órgãos é muito mais
decidida por essas leis não escritas da sociedade do que pelos seus estatutos
escritos para inglês ver.
O chamado 'funk ostentação', trilha sonora mais comum nos
encontros, mostra a adesão incondicional desses jovens à cultura do consumo ou
o sr. vê alguma ironia nessa exaltação tão superlativa de símbolos de status?
Não são apenas as classes populares que praticam uma adesão
incondicional ao consumo. As classes do privilégio - tanto os endinheirados que
concentram em poucas mãos a riqueza nacional em proporções grotescas, se
compararmos com as democracias europeias, quanto a classe média verdadeira se
definem e se hierarquizam entre si pelo consumo material, antes de tudo.
É necessária grande incorporação de capital cultural - ou
seja, a apropriação pelo indivíduo de formas de conhecimento útil ou valorizado
socialmente - para fazer frente à força do prestígio social imediato que o
consumo material provoca. Acho que as classes populares só desenvolvem uma
distância crítica em relação ao consumo em circunstâncias excepcionais. Certas
subculturas como a do funk ou do rap podem manter uma postura ambígua, ainda
que em um meio também culturalmente carente.
Defensores dos avanços sociais dos últimos anos argumentam
que algum tipo de inclusão suscita novas reivindicações e avanços. Já os
críticos sugerem correção de rumo urgente, que troque o paradigma do consumo
pelo de cidadania. O que o sr. acha?
Apesar de considerar os avanços sociais dos últimos anos
muito tímidos, eles são relevantes dentro de um contexto de uma sociedade tão
conservadora e socialmente irresponsável como a nossa. Então eu me alinho com
os primeiros, já que é historicamente inegável que o aprendizado político e
social, que pressupõe mudança paulatina de consciência se vem para ficar, segue
a lógica do desenvolvimento passo a passo. De resto, essa separação entre
inclusão social por consumo e inclusão social por direitos é completamente
artificial e retórica. Todas as lutas das classes populares no Ocidente nos
últimos 200 anos têm sido lutas pela redistribuição da riqueza social, material
ou não, as quais, quando vitoriosas e institucionalizadas, se consolidam em
novos direitos.
Que medidas seriam menos tímidas?
Para responder a essa pergunta é preciso falar da extrema
pobreza de nosso debate público. É tanto uma pobreza de ideias quanto uma
pobreza moral e política, que se reforçam mutuamente. Há uma percepção
generalizada do comportamento humano como sendo unicamente determinado e
explicado por estímulos econômicos. Desconhece-se, por exemplo, que sem
autoconfiança, autoestima e reconhecimento social, não existe
"comportamento econômico racional". Boa parte da limitação da política
do atual governo reside aí.
Mas não é só o governo. A sociedade também adere a essa
cegueira economicista do mundo - e culpa as vítimas por seu próprio abandono
social. É o que causa o desprezo visceral de boa parte de nossa classe média
pelos pobres, uma cegueira que impede sentimentos efetivos de solidariedade e
de responsabilidade política pelo destino coletivo. Todas as sociedades que
lograram, com grau variável de sucesso, o resgate social e econômico das
grandes massas empreenderam "revoluções de consciência coletiva", das
quais estamos a anos-luz de distância.
Depoimentos de jovens que participam desses encontros
poderiam ser resumidos na frase: ‘É só um rolê’. Não estaríamos assistindo
apenas à velha e comum inconsequência juvenil de desafiar os pais e as normas
preestabelecidas para se divertir?
Sem dúvida esse aspecto me parece fundamental. Existe um
corte geracional que sugere aspectos da subcultura jovem enquanto rebelião
contra regras sociais e figuras de autoridade. A novidade ameaçadora é que são
jovens das classes populares que se rebelam contra as regras não escritas, mas
"sentidas" e percebidas por todos nós, da divisão classista dos
espaços de sociabilidade. A classe média verdadeira, "europeizada" -
que se percebe como estrangeira na própria terra - se sente ameaçada pelos
"bárbaros" das classes populares, em um fenômeno que tende a ter
diversos novos capítulos no Brasil daqui para a frente.
Fonte: (Ivan Marsiglia) O Estado de S. Paulo
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