Existem problemas enormes, e o principal deles é a concepção patriarcal. Foi criada, em primeiro lugar, uma concepção de que a mulher mente. Então, ela fala e tem que haver uma prova enorme para que sua palavra seja confirmada – e isso coloca a vítima em uma situação muito difícil, porque, além de estuprada, ela pode ser vista como mentirosa. Isso precisa ser mudado.
Em entrevista ao Informativo Compromisso e Atitude, o juiz
José Henrique Rodrigues Torres, do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), avalia
as barreiras decorrentes da ideologia patriarcal nos processos de violência
sexual contra mulheres, sobretudo no que diz respeito às provas mais comuns: o
testemunho da vítima e as informações colhidas na unidade de Saúde que realizou
o primeiro atendimento.
Segundo o artigo 158 do Código de Processo Penal, “quando
uma infração deixar vestígios, será indispensável o exame de corpo de delito,
direto ou indireto”. Nos exames indiretos, é consagrado na jurisprudência [ver
quadro ao fim da entrevista] que as informações do serviço de saúde que prestou
atendimento à vítima podem embasar o laudo do perito.
Muito usual em casos de tentativa de homicídio, o exame
indireto é uma opção bastante importante, uma vez que o exame direto de corpo
de delito deve ser realizado, geralmente, em um prazo curto de tempo, que
muitas vezes se esgota antes que a vítima tenha recebido todo atendimento
médico necessário.
Essa opção pode contribuir ainda para reduzir a chamada
“rota crítica” nos casos de violência sexual contra mulheres – o caminho
fragmentado que a vítima percorre buscando o atendimento do Estado, repetindo
inúmeras vezes o relato da violência que sofreu.
O Decreto nº 7.958, de 13/03/2013, que estabelece diretrizes
para o atendimento às vítimas de violência sexual pelos profissionais de
Segurança Pública e da Rede de Saúde, prevê inclusive que seja feita no SUS
(Sistema Único de Saúde) a coleta de vestígios para, assegurada a cadeia de
custódia, estes sejam encaminhados à perícia oficial.
Para o juiz Torres, a resistência à realização do exame
indireto e à sua aceitação pelo Sistema de Justiça só pode decorrer, assim, de
concepções patriarcais equivocadas. “Não há uma justificativa jurídica, lógica
ou prática para essa resistência”, frisa o juiz, titular da 1ª Vara do Júri em
Campinas (SP).
Confira a entrevista na íntegra:
O exame de corpo de delito, que deve ser elaborado pelo
Instituto Médico Legal, pode ser realizado de forma indireta, com base nas
informações constantes do prontuário da pessoa assistida. Como isso funciona?
Os crimes que deixam lesões, normalmente, precisam ser
submetidos a um exame, que é chamado de corpo de delito. Segundo o Código
Penal, este laudo tem que ser feito por um perito oficial, e o encarregado de
fazê-lo, geralmente, é o Instituto Médico Legal, que é o órgão oficial. Mas há
algumas circunstâncias em que o Código admite que esse exame seja feito de
forma indireta.
Isso ocorre com bastante naturalidade e muita frequência,
por exemplo, nos crimes de tentativa de homicídio, em que as vítimas são, em
geral, encaminhadas ao hospital para atendimento médico. Então, é bastante
comum que seja feito um exame indireto, ou seja, o perito pega os dados que
foram coletados pela assistência médica e, com base nessas informações do
Sistema de Saúde, faz o laudo indireto. E esse laudo é aceito, com toda
naturalidade e normalidade, em todos os processos judiciais nesses casos.
Isso significa que, nos julgamentos de crimes sexuais contra
mulheres, é possível aceitar provas colhidas pelo serviço de saúde que atendeu
a vítima?
O problema é que, nos casos de violência contra as mulheres,
principalmente a sexual, há uma investida indevida de alguns atores do Sistema
de Justiça, que exigem que esse exame seja feito diretamente. Isso cria um
problema muito grande. A mulher, quando é estuprada, tem que ser submetida, em
um primeiro momento, a um tratamento de saúde, tem que ser levada a um
hospital. E a situação é muito semelhante a de uma tentativa de homicídio:
muitas vezes, após esse atendimento, não é mais possível fazer o exame direto.
Então, o que já está se consolidando é que o Sistema de
Saúde deve atender a mulher, deve fazer a coleta de todos os dados, vestígios e
até mesmo, eventualmente, de sêmen etc., e deixar tudo à disposição do perito,
para que ele faça esse exame indireto de forma absolutamente normal. E essa
prova deve ser aceita sem nenhum problema nos julgamentos.
Essa aceitação ocorre sem problemas?
Já ouvi mais de uma vez um perito dizer que, se os médicos
fizerem a coleta, isso poderia eventualmente estragar a prova. Em primeiro
lugar, isso não é verdade, porque não se estraga o corpo de delito fazendo-se o
atendimento médico. Ainda que houvesse alguma possibilidade de se estragar a
prova, acredito que é melhor salvar e tratar uma mulher do que tentar preservar
a prova. A saúde da mulher está acima de tudo, por mais importante que seja a
coleta da prova. Mas, na verdade, uma coisa não exclui a outra: o exame médico
não prejudica o exame feito pelo perito, porque o médico pode perfeitamente
registrar todos os dados.
O que pode, e deve ser feito, é uma melhora na capacitação,
para que se aperfeiçoe a forma como o Sistema de Saúde faz esse exame, para
melhorar a disponibilidade de informações para o perito fazer o laudo indireto.
E, inclusive, os Ministérios da Saúde e da Justiça estão fazendo um esforço
para estabelecer um sistema de cooperação, para que esta prova seja feita sem
maiores transtornos, sempre priorizando a assistência à saúde da mulher.
Se o laudo indireto é bem aceito nas tentativas de
homicídio, por que ainda há resistência nos casos de violência sexual contra as
mulheres – justamente nos quais especialistas apontam que a peregrinação entre
os serviços, repetindo o relato da violência, pode se tornar um agravo à
situação da vítima?
Em um primeiro momento, isso é surreal, não é? Porque não há
uma justificativa jurídica, uma justificativa lógica ou prática para essa
resistência. Por isso, na minha avaliação, o problema só pode decorrer de uma
ideologia patriarcal. É uma concepção equivocada.
A coisa chega a um ponto tão surreal que, certa vez, fui a
um debate em que um perito dizia que a mulher estuprada, antes de ser submetida
ao atendimento de saúde, deveria passar pelo IML para fazer o exame. Veja o
absurdo dessa afirmação se compararmos aos casos de tentativa de homicídio:
imagine que uma pessoa é encontrada baleada ou esfaqueada na rua e a polícia
chega ao local. O que se faz numa situação dessas? Leva-se para o IML ou para o
hospital? É evidente que se leva a vítima para o hospital. A comparação deixa
bem evidente o paradoxo: se a pessoa está com uma faca no corpo, não se pode
retirar a faca enquanto o IML não fizer o exame?
Não há justificativa nenhuma para se exigir que se faça o exame
direto antes de fazer a assistência médica. Então, a única explicação que vejo
são os entendimentos equivocados decorrentes da ideologia patriarcal.
É verdade que, muitas vezes, as mulheres são estupradas e
não têm lesão aparente. Isso é bem possível, o estupro pode ser realizado sem
que haja outras violências físicas, basta uma ameaça. Aliás, já há dados
comprovando que uma boa parte dos estupros não deixa marcas visíveis, a mulher
não tem hematomas, ossos quebrados etc., porque a mulher é ameaçada com uma
arma, tem que se submeter e não tem lesão. E isso não quer dizer que ela não
precise de assistência médica, pelo contrário: há o risco das doenças
sexualmente transmissíveis e uma série de necessidades de atendimento médico.
Então, não há o que discutir. Se uma mulher é estuprada –
seja com violência física ou violência psicológica, mediante ameaça ou qualquer
outra condição – ela tem que ser conduzida ao Sistema de Saúde imediatamente,
receber todo o atendimento médico necessário, e os médicos têm que estar
capacitados para fazer a coleta de todos os vestígios e de dados para entregar
ao IML, que fará a prova, o laudo indireto.
E no Poder Judiciário, a aceitação do laudo indireto nos
casos de crime de violência sexual contra mulheres é recorrente?
O que eu tenho visto é que há situações em que não aceitam,
e há situações em que aceitam. De todo modo, essa é uma mentalidade que tem que
mudar. Não é porque o Sistema Criminal, eventualmente, possa não aceitar esse
laudo que vamos deixar a mulher sem assistência.
O que não se pode jamais é colocar o sistema repressivo
acima do sistema sanitário. Mas essa prioridade só precisaria ser discutida se
as duas coisas fossem incompatíveis, e elas não são. É perfeitamente compatível
que seja realizado primeiramente o atendimento de saúde e posteriormente o
exame pelo IML. A discussão não tem nem sentido, não há prejuízo para ninguém,
dá para fazer o atendimento humanizado e a coleta de provas. E os juízes têm
que entender isso.
Segundo norma do Ministério da Saúde, a palavra da mulher
que busca assistência médica afirmando ter sido vítima de um crime sexual tem
de gozar de credibilidade e, pelo menos para o serviço de assistência, deve ser
recebida com presunção de veracidade. O mesmo vale para o Sistema de Justiça?
Sim, a Justiça também dá muita credibilidade à palavra da
mulher. Há muitas decisões nesse sentido, já que o estupro é um crime
praticado, na maioria das vezes, sem testemunhas, às escondidas, sob ameaça.
É evidente que nenhuma prova é absoluta, inclusive o
testemunho da mulher, e todas precisam sempre ser analisadas com cautela no
Sistema Criminal, isso é óbvio. Mas a palavra da mulher, em princípio, tem
credibilidade e tem peso sim.
É possível analisar essa prova – o testemunho da vítima –
com cautela no Sistema de Justiça, sem
que haja a inversão da culpa, o que é bastante comum nos casos de violência
contra a mulher, em que ela é apontada como responsável pela agressão que
sofreu?
É possível. Em primeiro lugar, temos que partir do princípio
de que a palavra da mulher tem credibilidade. Agora, isso vai depender de cada
caso, porque o réu também tem o direito de se defender, tem o direito ao
contraditório, tem o direito à presunção de inocência no Sistema Penal, e isso
também tem que ser levado em conta.
Os dados indicam que as mulheres que sofrem violência sexual
ainda procuram pouco o Sistema de Justiça. Na sua avaliação por que ocorre essa
subnotificação?
Aí existem problemas enormes, e o principal deles é a
concepção patriarcal. Foi criada, em primeiro lugar, uma concepção de que a
mulher mente. Então, ela fala e tem que haver uma prova enorme para que sua
palavra seja confirmada – e isso coloca a vítima em uma situação muito difícil,
porque, além de estuprada, ela pode ser vista como mentirosa. Isso precisa ser
mudado.
Em segundo lugar, precisamos mudar essa concepção de que o
sistema repressivo está acima da saúde da mulher. Precisamos fazer com que esse
sistema não seja simplesmente repressivo, mas dê acolhimento à mulher. O
primeiro passo é entender que a mulher estuprada precisa ser assistida pelo
Sistema de Saúde, que deve estar preparado, capacitado com uma equipe
especializada, para dar não só assistência física, mas também prestar assistência psicológica,
assistência social, dar amparo a essa mulher, contribuir para seu
empoderamento. E é evidente que, se ela se sentir mais fortalecida, vai poder
reagir, fazer a denúncia, depor e buscar a Justiça.
Por exemplo, a violência sexual é praticada também no
ambiente doméstico, por pessoas conhecidas, por pessoas da convivência diária.
Então, a mulher tem que estar muito fortalecida e amparada para enfrentar uma
situação dessas. Ela vai sofrer críticas, a palavra dela vai ser questionada e
ela precisa estar com muita disposição para enfrentar tudo isso. E ela não vai
fazer isso sem apoio. Se a mulher estiver sozinha é perfeitamente compreensível
que ela não consiga enfrentar o processo.
Nesse âmbito da violência doméstica, o estupro conjugal,
cometido pelo próprio parceiro da mulher, ainda é um tabu perante a sociedade e
o Sistema de Justiça?
Infelizmente, ainda é. Em termos legais, a questão já foi
superada. Já tivemos um tempo no Brasil em que se admitia a exclusão da
culpabilidade pelo casamento do estuprador com a vítima. Se havia a exclusão da
culpabilidade pelo casamento, imagine então quando a vítima já era casada com o
estuprador – a culpabilidade era praticamente extinta de início.
Mas isso mudou, e hoje, pelo contrário, quando o estupro é
cometido pelo marido ou na relação doméstica, a pena é até aumentada. Então, do
ponto de vista legal, esta proteção à mulher já está acolhida. Mas,
infelizmente, ainda há uma resistência muito grande no sistema judicial e temos
que admitir que, nesses casos, a prova também é mais difícil. Por tudo isso é
que a mulher precisa de muita assistência, precisa estar muito fortalecida e
acolhida pelo Estado para enfrentar a situação. A mentalidade – seja policial,
judicial, social – só vai mudar a partir do momento em que as mulheres
estiverem fortalecidas.
JURISPRUDÊNCIA
Confira algumas decisões sobre a realização do exame
indireto de corpo de delito:
“Por lei expressa o exame de corpo de delito pode ser direto
ou indireto. Assim, ficha de atendimento do ofendido em pronto-socorro
municipal não pode deixar de ser aceita como prova de lesão” (Tribunal de
Alçada Criminal de São Paulo, JUTACRIM–SP 69/443).
“Apresentando-se o laudo de exame de corpo de delito
negativo porque a vítima só foi encaminhada para exame após desaparecidos os
vestígios das lesões, admissível é a condenação com base em perícia
médico-legal fundada em elementos fornecidos por pronto-socorro que atendera a
vítima após a ocorrência delituosa” (Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo,
JUTACRIM-SP 48/379).
“O exame de corpo de delito, em face do desaparecimento de
vestígios, pode ser suprido pela prova testemunhal” (Supremo Tribunal Federal,
RTJ 88/104).
Fonte: Informativo Compromisso e Atitude
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