"Foram os hebreus que deram os primeiros passos para a
descoberta do espaço interior onde vejo a distância entre mim e a verdade sobre
mim mesmo, em vez de me preocupar com a verdade política, sofro com a mentira
moral".
Luiz Felipe Pondé
Então, Jesus foi abordado por um grupo de pessoas muito
preocupadas com a retidão da lei. Traziam consigo uma mulher em prantos que
havia sido pega em adultério. Jogada ao chão, ela tremia de medo. O povo pedia
para que Jesus fizesse valer a lei: morte da adúltera por apedrejamento. (João,
8, 1-11. Nota da IHU On-Line).
Isso foi há 2.000 anos, mas ainda hoje, no mesmo Oriente
Médio, tem gente que apedreja mulheres e acha (agora, no Egito) que
violentá-las nas praças seja um "direito da soberania popular
revolucionária", enquanto se matam, nas mesmas praças, pelo modo ocidental
de vida ou por outra forma de lei (o fundamentalismo islamita).
E assim caminha a humanidade, em ciclos, para lugar nenhum,
mas com festas e crenças diferentes no meio, e demagogos a cantar...
Mas voltemos a Jesus. Fatos como esses me fazem achar que
Jesus era um cabra macho. Enfrentar o povo quando este se julga movido pelo
correto modo de viver é algo que exige, como dizem los hermanos,
"cojones". Jesus disse que quem tivesse livre de pecado que atirasse
a primeira pedra. Todos foram embora.
Esta é uma das passagens típicas do mundo bíblico na qual
fica claro o tema da hipocrisia como motivação profunda daqueles que se acham
arautos do bem, moral ou político.
Mas Jesus era um filósofo hebreu e estes filósofos eram
diferentes dos filósofos gregos. O mundo bíblico é diferente da filosofia
grega. Naquele, o "regime da verdade" (ou modo de busca da verdade) é
interno e moral, na filosofia grega é externo e político.
O problema de saber se o que eu digo é verdade ou não,
quando falo ou argumento, inexiste na Bíblia, porque o personagem principal do
diálogo é Deus, e Ele sempre sabe de tudo, não há como mentir para Ele como há
como mentir para outro homem ou para assembleia "soberana", como na
filosofia ou democracia gregas. Segundo o crítico George Steiner, o Deus de
Israel irrita porque está em toda parte e sabe de tudo.
Sabe-se que o advento da democracia grega levou muita gente
a pensar sobre a diferença entre pura retórica, que visa o mero convencimento
dos outros numa assembleia (eu acho que a democracia é 90% isso mesmo), e a
verdade em si do que se fala.
O problema que nasce daí é a relatividade da verdade,
dependendo do ponto de vista de quem fala e de quem ouve. Na Bíblia, o problema
é se minto para mim mesmo ou não. Na esfera pública, é o tema da hipocrisia, na
privada, o da verdade interior. A Bíblia criou o sujeito e as bases da
psicologia profunda.
Na Bíblia, como o poder é sempre de Deus e ele é mais íntimo
de mim do que sou de mim mesmo, o problema é como eu enfrento a mim mesmo. A
preocupação com a lei é sempre acompanhada da atenção para com a falsidade de
quem diz ser justo.
Por isso foram os hebreus que deram os primeiros passos para
a descoberta do espaço interior onde vejo a distância entre mim e a verdade
sobre mim mesmo, em vez de me preocupar com a verdade política, sofro com a
mentira moral.
O crítico Erich Auerbach, no seu "A Cicatriz de
Ulisses", parte da coletânea "Mímesis", reconhece este traço do
texto hebraico: a relação de atenção e agonia entre Deus e seus eleitos molda o
herói bíblico, dando a ele um rosto marcado por uma tensão moral.
Ainda na Bíblia hebraica, o rei David, o preferido de Deus,
em seus belos "Salmos", O encanta justamente porque expõe seu coração
sem qualquer tentativa de mentir para si mesmo.
Santo Agostinho com suas "Confissões" faz eco a
David. A literatura monástica e mística medievais cultivou este espaço até seu
ressurgimento no século XIX no pietismo alemão de gente como J.G. Hamann, o
"mago do norte", ancestral direto do romantismo. Do romantismo e seu
epicentro na verdade interior do sujeito, chegamos à psicologia profunda e à
psicanálise.
A filosofia hebraica funda regimes de verdade que leva o
sujeito a olhar para si mesmo em vez de olhar para os outros. Em lugar de
cultivar uma filosofia política, ela cultiva uma filosofia moral da vida
interior na qual não é barulho da assembleia que importa, mas o silêncio no
qual os demônios desvelam nossa própria face.
Fonte: Folha de São Paulo
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