O modo de falar do Papa Francisco é provavelmente um de seus
traços mais originais. Mas, além das coisas ditas há as que foram
deliberadamente caladas. Não pode ser casualidade que após 120 dias de
pontificado não tenham saído ainda dos lábios de Francisco as palavras aborto,
eutanásia e casamento homossexual.
Por Sandro Magister
A viagem simbólica a Lampedusa. A grande popularidade. A
reforma da cúria. O calculado silêncio sobre temas éticos. Mas também o
primeiro erro em uma nomeação para o IOR. O desafio de Francisco para mudar a
Igreja encontra obstáculos e inimigos, inclusive no Vaticano.
Ao entrar em seu quarto mês como papa, Jorge Mario Bergoglio
produziu sua primeira encíclica e realizou sua primeira viagem, dois atos
simbolicamente poderosos, mas de sinal quase oposto.
É verdade que a Lumen Fidei leva a assinatura do Papa
Francisco, mas foi idealizada e escrita quase em sua totalidade por Bento XVI.
Tornando-a sua, Bergoglio quis testemunhar sua plena conformidade com seu
predecessor no desenvolvimento da missão típica dos sucessores de Pedro:
“confirmar a fé”.
A viagem para Lampedusa marca, ao contrário, uma separação
clara. O teólogo Joseph Ratzinger, para expressar de maneira cristã o encontro
e o choque entre civilizações, teria pronunciado com gosto uma douta “lectio
magistralis” na universidade islâmica de Al Azhar. O pastor Bergoglio, ao
contrário, inspirou-se em Francisco e, do mesmo modo que o santo de Assis
começou beijando os leprosos, expulsos das cidades da época, assim o Papa que
tomou seu nome quis ir, antes de mais nada, a uma ilhota perdida, ancoradouro e
naufrágio de milhares de emigrantes e refugiados. Na missa quis que se voltasse
a ouvir as páginas bíblicas de Caim que mata Abel e da chacina dos inocentes.
Uma viagem de penitência.
Não é estranho que depois da viagem a Lampedusa a
popularidade universal de Francisco tenha atingido seu teto mais alto. “Deus
faz as estatísticas”, disse. Mas há uma evidente coincidência entre as palavras
e os gestos deste Papa e os que poderia sugerir um especialista encarregado de
planejar seu sucesso. É difícil que a opinião pública católica e laica conteste
algo do que faz e diz, começando por esse “quanto gostaria de uma Igreja pobre
e para os pobres”, que se converteu no documento de identidade do atual
pontificado.
O infalível paradigma
Um elemento chave da popularidade de Francisco é sua
credibilidade pessoal. Como arcebispo de Buenos Aires vivia em um modesto
apartamento de duas peças. Ele mesmo fazia sua comida. Andava de ônibus e
metrô. Fugia como da peste dos encontros mundanos. Nunca quis fazer carreira;
pelo contrário, afastou-se com paciência quando sua própria Companhia de Jesus,
da qual havia sido durante alguns anos o superior provincial na Argentina, o
depôs e isolou bruscamente.
Também por isto, cada vez que invoca a pobreza para a Igreja
e ataca fortemente o desejo das ambições de poder e a sede de riquezas
presentes no âmbito eclesiástico, nenhuma voz se levanta para criticá-lo. Quem
poderia justificar a opressão do necessitado e fazer apologia das desmerecidas
carreiras? Quem poderia criticar Francisco por pregar uma coisa e fazer o
contrário? Nos lábios do atual Papa, a Igreja pobre constitui um paradigma infalível,
em torno do qual consegue um consenso praticamente universal, tanto entre os
amigos como entre os inimigos mais acérrimos da Igreja, que a queriam tão
depauperada a ponto de desaparecer completamente.
Mas há também outro fator chave da popularidade de
Francisco. Suas invectivas, por exemplo, contra a “tirania invisível” dos
centros financeiros internacionais não atacam um objetivo específico e
reconhecível e, portanto, nenhum dos verdadeiros ou supostos “poderes fortes”
se sente efetivamente atacado ou provocado a reagir.
Também quando suas reprimendas têm como objetivo as más
ações dentro da Igreja, quase sempre se mantém em generalidades. Quando o Papa
Bergoglio, em uma de suas homilias coloquiais matinais, avançou uma dúvida
explícita sobre o futuro do IOR, o Instituto para as Obras de Religião, o
discutido “banco” do Vaticano, os porta-vozes competiram se apressaram para ver
quem conseguia desdramatizar suas colocações. E quando, noutra ocasião,
denunciou a existência de um “lobby gay” no Vaticano - “é verdade, existe” -, a
minimização se disparou em todos os níveis. Inclusive a opinião pública laica,
atualmente mais pródiga que nunca endossando acusações de homofobia, o perdoou
por esta declaração com uma indulgência que provavelmente não teria concedido
ao seu predecessor.
Bento XVI, efetivamente, era diferente. Apesar do trato
agradável, muitas vezes era bem explícito e direto quando se tratava de
exprimir suas opiniões e colocar seus ouvintes contra a parede. O terremoto que
seu discurso em Regensburg provocou continua sendo o efeito mais espetacular.
Mas outro de seus importantes discursos ilustra ainda melhor do que se trata.
Foi durante a sua terceira e última viagem à Alemanha, em
setembro de 2011. Em Friburgo, o Papa Joseph Ratzinger quis reunir-se com uma
representação dos católicos alemães “comprometidos na Igreja e na sociedade”. A
eles, assim como também a quase todos os bispos da Alemanha presentes,
dirigiu-lhes serenamente palavras de muita severidade, muito exigentes, todas
elas centradas sobre o dever de uma Igreja pobre que “se despoja” (...) de sua
riqueza terrena”, que deve “afastar-se do mundo”, a fim de poder, “libertada de
fardos e privilégios materiais e políticos”, “dedicar-se melhor e de maneira
verdadeiramente cristã ao mundo inteiro”.
Pois bem, este discurso foi acolhido com frieza e
rapidamente silenciado por aqueles a quem o Papa se havia dirigido em primeiro
lugar. Porque justamente para eles havia olhado com determinação, solicitando
uma mudança dessa Igreja alemã que ele conhecia muito bem: rica, satisfeita,
burocratizada e politizada, mas pobre de Evangelho.
Palavras e silêncio
O modo de falar do Papa Francisco é provavelmente um de seus
traços mais originais. É simples, compreensível, comunicativo. Tem a aparência
da improvisação, mas na realidade é cuidadosamente estudado, tanto na invenção
das fórmulas – a “bolha de sabão” com a qual, em Lampedusa, representou o
egoísmo dos modernos Herodes –, como nos fundamentos da fé cristã que ele mais
gosta de repetir e que ele condensa em um consolador “tudo é graça”, a graça de
Deus que sem cessar perdoa, embora todos continuemos sendo pecadores.
Mas, além das coisas ditas há as que foram deliberadamente
caladas. Não pode ser casualidade que após 120 dias de pontificado não tenham
saído ainda dos lábios de Francisco as palavras aborto, eutanásia e casamento
homossexual.
O Papa Bergoglio conseguiu esquivar-se delas inclusive na
jornada que dedicou à Evangelium Vitae, a espetacular encíclica publicada por
João Paulo II em 1995, no momento culminante da sua épica batalha em defesa da
vida “desde a concepção até a morte natural”.
Karol Wojtyla e, depois dele, Bento XVI se dedicaram pessoal
e incansavelmente a fazer frente ao desafio histórico que representa a hodierna
ideologia do nascer e morrer, como também a dissolução da dualidade “criatural”
entre homem e mulher. Bergoglio não. Parece já comprovado que decidiu silenciar
sobre estes temas que estão presentes na esfera política de todo o Ocidente,
inclusive a América Latina, convencido de que estas intervenções não são da
competência do Papa, mas dos bispos de cada país. Aos italianos disse isso com
palavras inequívocas: “O diálogo com as instituições políticas é coisa de
vocês”.
O risco desta divisão das tarefas é grande para o próprio
Francisco dado o juízo pouco bajulador que parece ter sobre a qualidade média
dos bispos do mundo, mas é um risco que ele quer correr. Seu silêncio é outro
dos fatores que explicam a benevolência da opinião pública laica a respeito
dele.
A cúria
Além disso, há a seu favor a visível vontade de reformar a
cúria romana e, em particular, de extirpar esse tumor que é o IOR.
O Papa confiou o estudo de uma reforma da cúria a um
conselho internacional de oito cardeais, todos nomeados por ele, cada um dos
quais, por sua vez, chamou para consulta especialistas da sua confiança. Há
quem viu nisto o primeiro passo para uma democratização da Igreja, com a
passagem de uma autoridade monocrática a uma oligárquica. Como um perfeito
jesuíta, Bergoglio quer antes aplicar ao seu exercício do papado o modelo
próprio da Companhia de Jesus, no qual as decisões não são tomadas
colegiadamente, mas apenas pelo prepósito geral, em absoluta autonomia, após
ter ouvido separadamente os próprios assistentes e cada pessoa que quiser.
É, portanto, previsível que no começo de outubro, quando
pela primeira vez se reúnam em Roma os oito cardeais conselheiros para colocar
sobre a mesa os projetos recolhidos, os pareceres sejam muito diferentes.
Já foi possível ter um aperitivo dessa divergência de
opiniões na Alemanha, onde também um projeto de reforma da cúria foi solicitado
ao ex-diretor da filial de Munique da Agência McKinsey, Thomas von
Mitschke-Collande. Este pedido lhe foi dirigido pelo poderoso secretário da
Conferência Episcopal da Alemanha, o jesuíta Hans Langerdörfer, sem o
conhecimento do arcebispo de Munique, Reinhard Marx, que é, além disso, um dos oito
conselheiros nomeados pelo Papa; mais, com grande desgosto por sua vez, pois o
arcebispo tem uma opinião bastante negativa sobre von Mitschke-Collande,
sobretudo depois da leitura de seu último livro, com o polêmico título: “Quer a
Igreja eliminar-se a si mesma? Fatos e análises de um consultor empresarial”.
Enquanto isso, outra alta personalidade da Igreja alemã fez
chegar à Congregação para a Doutrina da Fé outro escrito do homem da agência
McKinsey, evidenciando os erros doutrinais dos quais seria portador.
O IOR
Se as iniciativas do Papa Francisco em relação à reforma da
cúria e à seleção mais rigorosa dos candidatos a bispos ainda estão apenas no
nível do anúncio – por outro lado, saudado também este por um consenso geral –,
vários fatos concretos tiveram lugar, ao contrário, no que diz respeito ao IOR.
Mas por obra, no entanto, não tanto do Papa como de diversos atores, às vezes
em conflito uns com os outros, tanto dentro como fora da Igreja, incluindo,
além disso, um desastroso infortúnio que recaiu pessoalmente sobre Francisco.
O ator externo que teve um papel decisivo determinando os
acontecimentos foi a magistratura italiana, que em junho ordenou a prisão de
mons. Nunzio Scarano, que até o mês anterior havia sido responsável pela
contabilidade da Administração do Patrimônio da Sé Apostólica. Está sendo
acusado de tráfico ilegal de dinheiro realizado em 2012, também através de
contas do IOR e com o consentimento dos dirigentes máximos do instituto,
precisamente enquanto o Vaticano estava comprometido com o mundo na adoção de
normas internacionais mais severas contra a lavagem de dinheiro.
Ao mesmo tempo, foi igualmente a magistratura italiana que
concluiu as investigações sobre o diretor e o vice-diretor do IOR, Paolo
Cipriani e Massimo Tulli, respectivamente, ambos acusados de movimentos
suspeitos de dinheiro em 14 operações realizadas entre 2010 e 2011; portanto,
novamente enquanto Bento XVI impulsionava uma obra geral de reordenação e de
limpeza dos escritórios financeiros vaticanos.
A consequência inexorável destes atos da magistratura
italiana foi a demissão de Cipriani e de Tulli, ou seja, precisamente as duas
pessoas que, na primavera de 2012, o então presidente do IOR, Ettore Gotti
Tedeschi, quis que fossem destituídas, considerando-as os verdadeiros responsáveis
pelas malversações de dinheiro do instituto. Mas, ao contrário, o que conseguiu
foi, em 24 de maio, sua própria brutal expulsão do conselho do IOR por ordem do
cardeal secretário de Estado, Tarcisio Bertone.
O escândalo
Sobre este fundo de ruínas, o Papa Francisco tomou, por
iniciativa própria, duas medidas.
Em 15 de junho, nomeou “prelado” do IOR, com plenos poderes,
Mons. Battista Ricca, conhecido e apreciado por ele como diretor da Domus
Sanctae Marthae, onde escolheu morar em vez dos apartamentos pontifícios.
E no mesmo dia 24 do mesmo mês, instituiu uma comissão de
investigação sobre o IOR, que prestará contas exclusivamente a ele e que é
formada por cinco personalidades externas e competentes, entre as quais a
ex-embaixadora dos Estados Unidos na Santa Sé e professora de direito em
Harvard, Mary Ann Glendon.
Contudo, infelizmente, quando o Papa Francisco criou esta
comissão, já havia descoberto que havia se equivocado de maneira clamorosa com
a primeira nomeação, a do “prelado”.
Efetivamente, nos dias imediatamente anteriores ao dia 24 de
maio, ao reunir-se com os núncios vaticanos que chegaram a Roma de todas as
partes do mundo, havia obtido de alguns deles informações incontestáveis sobre
a “conduta escandalosa” demonstrada por mons. Ricca em 2000 e 2001 no Uruguai,
quando prestava serviços na nunciatura deste país, da qual foi bruscamente
afastado para ser, por fim, chamado para Roma.
A causa da cadeira vazia no concerto de 22 de junho
oferecido em sua honra foi, talvez, também a dor que Francisco sentiu ao
descobrir este seu erro ao reunir-se com os núncios naqueles dias. Nenhum Papa
é infalível. Nem sequer o mais amado por todos.
Fonte: domtotal
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