De um modo geral, as mulheres que se aproximaram de Jesus pertenciam ao escalão mais baixo da sociedade do seu tempo. Muitas delas eram doentes e foram curadas por ele. Provavelmente eram mulheres que não tinham vínculo com nenhum homem: eram viúvas indefesas; esposas repudiadas; mulheres sozinhas, sem recursos e difamadas. Havia também prostitutas, que eram consideradas fonte de impureza e de contaminação. E Jesus acolhia a todas com o mesmo respeito e dignidade.
Por Mercedes Lopes
Somente três personagens aparecem neste curto texto de Lc
10,38-42: Jesus, Marta e Maria. Jesus visita as duas irmãs, escuta, questiona
Marta, acolhe a postura de Maria. Marta é a anfitriã, a dona de casa,
preocupada em oferecer um delicioso almoço a Jesus. Com esta preocupação, ela
recebe Jesus e vai continuar seu trabalho, sem curtir a visita amiga. Maria não
fica preocupada com a casa. Não é solidária com a irmã no serviço. Quer somente
estar com Jesus. Sentada aos seus pés, escuta-o atentamente. Ela escolhe algo
inédito para as mulheres de sua época. Torna-se discípula! (8,38; 10,39; At
22,3). Com qual desses três personagens nos identificamos mais?
SITUANDO
Esta narrativa sobre a visita de Jesus à Marta e Maria é
própria de Lucas. O evangelista situa este texto em seguida à parábola do
samaritano (Lc 10,29-37). Lucas deve ter um bom motivo para isso. Um dos
motivos de ligação entre esta narrativa e a parábola do samaritano é que Jesus
se faz próximo. Entra na casa de Marta, conversa, come junto com as duas Irmãs.
Ele se aproxima de duas mulheres, que, como as outras judias da sua época, eram
consideradas impuras. Mas, também podemos supor que Lucas tenha feito outra
relação entre a parábola do samaritano e a narrativa de Marta e Maria. O texto
informa que "Jesus entrou num povoado e certa mulher, chamada Marta o
recebeu em sua casa" (10,38). Diante das críticas e da crescente oposição
a Jesus, narrada no capítulo seguinte (11,14-54), a acolhida prestativa de
Marta e a escuta amorosa de Maria podem ser também uma resposta bem concreta à
pergunta do legista: "Mestre, que farei para herdar a vida eterna?"
(10,25).
Situar o texto de Marta e Maria no contexto das comunidades
helenistas também ajuda na sua interpretação. Nessas comunidades havia um
conflito entre cristãos vindos do judaísmo e os gentios, considerados de origem
pagã. Estes últimos eram tidos como impuros, porque não receberam a circuncisão
e não praticavam os costumes judeus sobre a pureza. Por isso, nas comunidades
cristãs, comer junto com eles foi motivo de muito conflito (At 11,2). A Boa
Nova deste texto é que Jesus entra na casa de Marta e Maria e come com elas.
Elas eram judias, mas eram consideradas impuras por serem mulheres. Transparece
no texto muita amizade e confiança entre eles, pois Marta chega a fazer
reclamações triviais em relação à falta de solidariedade de sua irmã Maria
(10,40).
COMENTANDO
1 - O que é mais importante: a oração ou a missão?
A tradição cristã encontrou neste texto uma amostra de dois
modelos de seguimento de Jesus, considerando um superior ao outro por causa da
palavra de Jesus: "Maria escolheu a melhor parte" (10,42b). Assim, acham que Marta representa um
seguimento de Jesus focado no trabalho, na intensa atividade missionária ou
apostólica. Maria representa um seguimento focado na escuta, na oração, na
contemplação. Mas, este dualismo é falso. Ninguém pode ser somente missionário,
nem somente contemplativo. Cada pessoa que deseja seguir Jesus precisa ser ao
mesmo tempo missionária contemplativa, ou contemplativa missionária. Por isso,
volto ao texto, para comentá-lo:
Lc 10,38 - Marta recebe Jesus em sua casa
Jesus está a caminho e entra num povoado. Não sabemos se ele
está sozinho ou acompanhado dos discípulos. Esta pergunta fica no ar. O que
importa para o evangelista, ou para as comunidades de Lucas é a acolhida de
Marta: ela "o recebeu em sua casa". Na pessoa de Jesus de Nazaré,
Marta recebe a visita de Deus (Lc 1,68.78; 7,16; 19,44)
10,39 - Maria é discípula de Jesus
Maria é livre em relação ao papel tradicional da mulher. Ela
não está preocupada com o que pensam ou dizem. Assume, como mulher, uma nova
postura diante da religião e dos padrões culturais da sua época. Ela
"ficou sentada aos pés de Jesus, escutando sua palavra" (10,39). Esta
era uma expressão ou postura para indicar uma atitude de discípulo/a (At 22,3).
10,40 - Qual é mesmo o papel das mulheres nas comunidades
cristãs?
Ocupada e cansada, agitada com muitos serviços, Marta tenta
envolver Jesus em um problema doméstico de falta de participação de Maria no
serviço da casa. Será que o questionamento de Marta tem a ver com tarefas
caseiras ou por trás de sua frase tem um significado escondido? Marta pode
estar expressando a opinião de alguns círculos cristãos, que pretendiam limitar
a função das mulheres aos serviços privados e internos nas comunidades cristãs.
Não por acaso, se recorrermos ao original grego, encontraremos Marta
"ocupada com muita diaconia".
10,41-42 - Maria escolheu a melhor parte
Jesus escuta Marta, entende seu cansaço, e tenta ajudá-la a
encontrar um sentido maior, mais amplo para sua vida, para o discipulado das
mulheres. "Marta, Marta, tu te preocupas e agitas por muitas coisas, mas
uma só é necessária. Maria, pois, escolheu a melhor parte e esta não lhe será
retirada". Jesus passa do assunto da comida para o sentido da vida. Maria
escolheu a apaixonante aventura de viver na intimidade dele, para entregar-se
totalmente ao seu projeto. Sua escolha é confirmada por Jesus: "e esta não
lhe será retirada" (10,42).
ALARGANDO
Jesus e as mulheres
do seu tempo
De um modo geral, as mulheres que se aproximaram de Jesus
pertenciam ao escalão mais baixo da sociedade do seu tempo. Muitas delas eram
doentes e foram curadas por ele. Provavelmente eram mulheres que não tinham
vínculo com nenhum homem: eram viúvas indefesas; esposas repudiadas; mulheres
sozinhas, sem recursos e difamadas. Havia também prostitutas, que eram
consideradas fonte de impureza e de contaminação. E Jesus acolhia a todas com o
mesmo respeito e dignidade. Elas sentavam-se entre os pecadores e indesejados
para comer junto com Jesus. Embora a comunidade dos essênios não aceitasse
mulheres em sua "mesa santa" e nem os fariseus as aceitassem na sua
"mesa pura", porque observavam a lei da pureza ritual criada pelos
sacerdotes.
Esta comida de Jesus junto com as mulheres, os pecadores e
os indesejados era precisamente um símbolo e uma antecipação do Reino de Deus.
Esta comunhão de mesa com pessoas consideradas impuras mostrava como os
"últimos" do povo santo e as últimas da sociedade patriarcal são os
"primeiros" e as "primeiras" a entrar no Reino de Deus.
Mas, essa presença das mulheres à mesa com Jesus era um escândalo para as boas
famílias. Jesus não se intimida. Ele as acolhe com o amor compreensivo do seu
Abbá. Jesus aproxima-se delas sem medo e as trata abertamente, sem deixar-se
condicionar por nenhum preconceito. Certamente, as mulheres que seguiram o
movimento de Jesus pelos caminhos da Galileia viam nele uma alternativa para
uma vida mais digna.
O jeito especial de Jesus olhar para todas as mulheres, a
partir da sua intimidade com seu Abbá e da sua visão do Reino de Deus, lhe dá
criatividade e autoridade para mudar as situações de opressão e dominação
aparentemente sem saídas. E Jesus o faz de maneira nova, diferente, inesperada.
O texto de Marta e Maria desperta a memória da tradição de Jesus. Ao escrever
este texto, Lucas está apontando para esta Boa Nova que já estava sendo um
pouco esquecida no tempo em que ele escreveu seu evangelho: por volta do ano 85
d.C.
Fonte: Cebi
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