Às quatro da tarde, com o calorão romano em seus melhores
dias, dois guardas suíços uniformizados e um gendarme ficam na entrada da Casa
Santa Marta, a residência do Papa e de cerca de quarenta bispos, monsenhores e
leigos que trabalham no Vaticano. É um sinal: o “número um” se encontra aí.
A
bandeira branca e amarela com os escudos vaticanos permanece imóvel frente às
janelas do segundo piso deste paralelepípedo anônimo, construído a pedido de
João Paulo II, em meados dos anos 1990, para que os cardeais se hospedassem ali
durante os Conclaves.
A reportagem é de Andrea Tornielli, publicada no sítio
Vatican Insider, 12-07-2013. A tradução é do Cepat.
Trata-se da casa de Francisco. Após se identificar, o
hóspede desce pela escada semicircular, austera e um pouco fria, que conduz ao
hall. Ali, atrás do enorme balcão, um leigo com traços orientais e traje cor
tabaco fica atendendo. Silêncio
absoluto. O verão também é sentido em Santa Marta e, além disso, os hóspedes
sabem quem a qualquer momento pode aparecer no elevador, do outro lado de uma
porta, no refeitório ou numa das salinhas. Quando alguém deixa seu quarto em
Santa Marta, precisa estar bem vestido, é claro.
Lá dentro, no hall, há outro guarda suíço e outro gendarme,
ambos vestidos como civis. “Disseram para esperar numa das salinhas, que tem
poltronas estofadas com tecido verde. O Papa – conta nosso interlocutor,
recebido em audiência privada – chegou de repente, sozinho, sem secretários,
nem mordomos. Estava com um envelope com alguns rosários. Ao final do encontro,
ele mesmo abriu a porta e me acompanhou ao pé da escada”. É uma cena que
descreve muito melhor do que outras as mudanças que estão ocorrendo no
Vaticano.
A Casa Santa Marta é algo entre hotel e casa do peregrino,
razão pela qual é muito difícil que nela se instaure o sentido de corte, tão
evidente no Palácio Apostólico, com sua dignidade renascentista. A decisão de
permanecer na residência em que se hospedou como cardeal durante o Conclave
(tomada “por razões psiquiátricas”, porque não queria o “isolamento”) foi
explicada por Francisco ao seu amigo e sacerdote argentino Enrique Martínez,
“Quique”: “As pessoas podem me ver, levo uma vida normal, como no refeitório
com todos...”. E para o café não há camareiros, mas uma máquina de moedas no
corredor.
O seu quarto fica no segundo piso, é o de número 201. Têm
paredes branquíssimas, uma sala com duas pequenas poltronas e um escritório, um
livreiro, tapetes persas, assoalho de cor clara (e muito lustrado), um espaço
para dormir com uma imponente cama de madeira escura e um banheiro. Esta suíte
estava reservada para os hóspedes importantes do Papa, como o patriarca de
Constantinopla Bartolomeu I. Quando se encontraram, o Papa lhe pediu perdão
brincando: “Desculpe-me se roubei seu quarto...”. “Eu a deixo de muito boa
vontade” foi a resposta do Patriarca ortodoxo.
Nos quartos ao lado do seu vivem dois secretários: o que
Francisco “herdou” de Ratzinger, o maltês Alfred Xuareb, e o que ele próprio
escolheu, o argentino Fabián Pedacchio. Figuras que, sem sombra de dúvidas, são
menos incômodas e poderosas em relação aos seus predecessores. Jorge Mario
Bergoglio, ao continuar se considerando como um sacerdote a serviço de Deus (e,
portanto, ao serviço dos demais) não é um monarca; continua sendo o mesmo que
era antes do dia 13 de março, que mudou a sua vida (e que o impediu de usar a
passagem de volta, que já havia comprado para Buenos Aires).
Desta forma, o papa Francisco decidiu continuar vivendo no
mesmo lugar, embora tenha se mudado de quarto, porque durante o Conclave usava
um no mesmo piso, o 207. Decidiu não ocupar o aposento papal: o “Aposento”,
assim com maiúscula, como se conhece no jargão vaticano essa entidade que
representa o mais estreito círculo de colaboradores. Abriu mão de morar nele,
mas tomou posse e, ao fazer isto, ficou impressionado com suas dimensões: “Aqui
há lugar para 300 pessoas!”. Não se trata de uma vila real, mas é possível
entender a reação de alguém que está acostumado a viver (sendo cardeal) em
alguns quartinhos e a arrumar a cama todos os dias.
As primeiras novidades chegaram durante o Conclave. Assim
que foi eleito, e antes de colocar o hábito branco, Francisco foi abraçar o
cardeal Angelo Scola, seu “adversário” durante os escrutínios. Em seguida, veio
a rejeição em colocar um dos 45 pares de sapatos vermelhos que tinham sido
preparados para a ocasião; melhor os pretos de sempre. Mais do que questão de
preferência, era uma questão de ortopedia, pois o calçado usado serve para
caminhar melhor. Nada de cruz peitoral de ouro, nada de anel papal de 18
quilates. Nada de um enorme carro blindado com matrícula “SCV 1”, o almirante
de uma frota vaticana que desempoeirou seus veículos mais sóbrios. Nada de
escolta, nem de enormes manobras de gendarmes para os deslocamentos, inclusive
mínimos, dentro do minúsculo Estado.
O pequeno mundo vaticano, que para dom Marcinkus parecia
“uma aldeia de lavadeiras”, primeiro levantou a sobrancelha, depois tratou de
se adequar, como foi visto dois dias após a sua eleição, quando todos os
cardeais que saudaram o Papa na Sala Clementina carregavam cruzes de ferro e
haviam deixado as cruzes de ouro e pedras preciosas na gaveta.
Em Santa Marta há dois elevadores e sempre se procura deixar
um livre para o inquilino mais importante. Porém, muitas vezes, Francisco usa o
outro. Dois bispos o encontraram dentro do elevador, justamente antes que as
portas se fechassem. Um pouco envergonhados, foram para o fundo, mas o Papa com
um sorriso disse-lhes: “Não mordo”. As anedotas superabundam. Às vezes, claro,
um pouco exageradas, como a do guarda suíço que fez escala noturna e a quem
Francisco teria levado um sanduíche. Bergoglio se desloca da Casa Santa Marta a
pé. No sábado, 16 de março, rejeitou com um enfático gesto com as mãos (como se
estivesse dizendo: “estão loucos?”) os carros disponíveis para que percorresse
cerca de 50 metros. Em outra oportunidade, ao sair de sua residência,
encontrou-se com um bispo que estava parado na entrada: “E você, o que faz
aqui?”, perguntou-lhe. “Estou esperando que venham me buscar”, foi a resposta
do prelado. “E não pode ir a pé?”, respondeu-lhe Francisco.
Um Papa “normal” e, justamente por esta razão,
extraordinário. Que repete as palavras antiquíssimas e sempre novas do
Evangelho. “Palavras surpreendem muito – diz-nos o professor Andrea Riccardi,
historiador da Igreja -, porque ressoa de forma especial a autenticidade de sua
pessoa”.
Fonte: Ihu
Nenhum comentário:
Postar um comentário