Podemos também afirmar que a prostituição é um fenômeno cujo crescimento é favorecido pelas desigualdades de classe social, gênero e etnia, onde notadamente mulheres e crianças são as maiores vítimas.
Por Isabel C. Brandão ( Psicóloga da Pastoral da Mulher de Bh)
A Globalização neoliberal e o mercado do sexo
Nos
anos 70, com surgimento da ideologia neoliberal novos valores passam a valer em
detrimento dos antigos. Valores tais como dignidade da pessoa humana, direitos
humanos e direitos sociais deixam de serem valores fundamentais, são
relativizados e desqualificados em nome do “politicamente correto”. Um
neologismo para justificar o não envolvimento e descompromisso com as causas
sociais, hipervalorizar o individualismo e responsabilizar individualmente as
pessoas por seus sucessos ou fracassos desconsiderando o contexto
sócio-político-econômico em que vivem. Apoiando-se na ideia de paternalismo, os
que possuem privilégios podem desfrutar destes sem culpa já que as
responsabilidades sociais, antes consideradas responsabilidades do Estado,
foram deslocadas para o campo das competências individuais.
A dinâmica de acumulação capitalista promove a desregulamentação
dos mercados (o capital vai para onde se lucra mais, ou seja, onde há mão de
obra barata e dócil) e a finaceirização do capital (especulação em lugar de
produção) ampliando assimetrias políticas, sociais e econômicas entre os países
desenvolvidos e em desenvolvimento e assimetrias regionais no interior dos
próprios países. Paralelamente assistimos a precarização do mundo do trabalho e
o desmantelamento dos sistemas de proteção social estabelecendo novas
conflitualidades políticas e sociais. A vulneração de direitos primários e
básicos (moradia, alimentação, saúde, educação) terá reflexo direto na vida
familiar e consequentemente na vida emocional e psíquica dos indivíduos. A
falência de relações de afeto e cuidado a que tais indivíduos estão expostos
“irá impedir a transmissão afetiva de valores como disciplina, autocontrole e
pensamento prospectivo, além da carência, em qualquer medida significativa, de
um capital escolar incorporado” [1]que
resultará na constituição de uma subjetividade precarizada, com baixa auto
confiança e estima pessoal.
“O
acirramento social vai proporcionar, dentre outras situações, a fragilização da família por meio
do abandono precoce do “gestor” das responsabilidades paternas, o abandono dos
filhos em relação ao convívio do lar, da escola e de outras relações de
sociabilidade. Vai proporcionar, também, o afastamento da mãe do cotidiano do
lar. Na verdade, as transformações que esse modelo opera no âmbito da família
determinam novas relações. Relações estas difíceis de serem digeridas dentro da
família, especialmente por parte das crianças e dos adolescentes, tais como:
conviver com a troca de parceiros dos pais e o conflito que gera dentro da
família, alcoolismo, drogadição, experiências sexuais precoces e insalubres,
violências sexuais, prostituição e tantas outras relações que vulnerabilizam sociopedagogicamente
esse segmento.“[2]
O sofrimento
social deixa marcas com pouca ou nenhuma visibilidade. Pessoas consideradas descartáveis
buscarão formas para compensar a ferida narcísica aberta pelo sentimento de não
fazer parte. A mesma lógica consumista capitalista que exclui ditará as normas
para o reconhecimento social. Segundo as regras do jogo, “o lugar social” será
determinado pela capacidade de consumo e não pela cidadania. Não é que estejam
excluídos do sistema e sim que a forma de inclusão se dá pela via da injustiça,
desconsiderando-se as relações de desigualdade a que estão submetidos.
O acesso aos bens de consumo se dá pela venda da força
de trabalho, sendo que aqueles que detém “capital escolar incorporado” terão
maior valorização no mercado de trabalho. Àqueles que, pela privação de
direitos primários, foram privados do desenvolvimento de capacidades
básicas para qualificar sua mão de obra,
resta a entrada pela porta dos fundos no sistema produtivo. Realizarão trabalhos
pouco valorizados tanto financeiramente quanto socialmente.
A
economia capitalista neoliberal, a globalização e o crescimento da indústria do
sexo são aparentemente fenômenos distintos, entretanto estão estritamente
relacionados. A “liberdade sexual” é doravante “um valor mercadológico e um
elemento dos costumes sociais”. (Richard Poulin). Como o capital
não tem limite ético, porque sua essência é a produção de lucro, tudo pode ser
mercadoria.
“A mercadoria não é apenas uma coisa, embora aparente
ser; ela é essencialmente uma relação social; é a inserção do ser humano em
relações de submissão sexista e subordinação mercantil.[3]
Ampliando
o olhar sobre o contexto prostitucional podemos ver aí materializado o processo
de inclusão injusta a que maiorias sociais discriminadas por gênero, raça e
classe social são submetidas. “Alguém se torna uma pessoa
prostituída em consequência de um itinerário caótico, que fragiliza, vulnerabilidade
e destrói“[4]
Entretanto, o que aparentemente é uma escolha
“constitui-se, na verdade, em uma escolha “pré-escolhida, a partir de
alternativas definidas pelo contexto de vulnerebilidade e precariedade de seu
universo familiar”.
Fatores
facilitadores da entrada no mundo da prostituição
Desde
2009 os Projetos da Rede Oblata do Brasil juntamente com os demais Projetos
Oblatas presentes em 14 países decidiram juntar forças e realizar uma vasta
pesquisa denominada Gritos e Esperanças das Mulheres. Como instituição que
desde o século XIX se dedica ao cuidado da mulher prostituída tínhamos como
objetivo aprofundar nossos conhecimentos sobre esta realidade nos afastando de
ideias preconcebidas e preconceitos. Buscamos lançar luzes sobre o tema através
de pesquisas em revistas, jornais e demais meios de comunicação bem como em
leituras acadêmicas sobre antropologia, história, economia, pedagogia, legalização
da prostituição, tráfico de pessoas para fins de exploração sexual e demais
áreas afins. Além disso, realizamos entrevistas com diversas mulheres nos
diversos países onde estamos presentes buscando saber de onde veem e como são suas famílias de origem, como e com
que idade entram na prostituição, se tem filhos, o que pensam sobre a
prostituição, que dificuldades enfrentavam, quais são seus sonhos e esperanças,
o que as motiva a permanecer na prostituição, dentre outras informações.
Posteriormente
ampliamos essa pesquisa no Brasil aprofundando nossos seus estudos com o
objetivo de saber quem de fato lucra com a indústria do sexo. Assim, nos
dedicamos a pesquisar sobre o assunto através de matérias veiculadas nos meios
de comunicação e de entrevistas com as mulheres que frequentam as unidades
Oblatas e com alguns representantes de
órgãos e entidades públicas e governamentais.
Após minuciosa avaliação do material recolhido pela
pesquisa podemos constatar a coexistência de vários fatores que podemos
considerar como facilitadores para a inserção na prostituição. Destacaremos
alguns: situações de vulnerabilidade e negligência sócio econômica, fragilidade
do tecido familiar e o desejo de reconhecimento social que, conforme citado
anteriormente se dá pela via do consumo. A prática do consumo se torna uma
espécie de afirmação de identidade, quer dizer ter é ser, ou “consumir é
existir”.
“Todos
precisam gastar (consumir) para manterem-se em posições socialmente aceitas. A
vocação consumista se baseia, em última instância, nos desempenhos
individuais.. Aqueles que se recusam a entrar no jogo (da
compra/descarta/compra uma nova versão) são considerados os inválidos ou
consumista falhos e serão excluídos como fracassados por suas faltas
individuais.
“Eu
vou explicar: lá no meu barraco, pra eu comprar um quilo de sal ou pra eu
comprar meu alimento eu tinha que trabalhar o dia para os outros. Eu tinha que
arrumar uma cozinha, arrumar uma casa, dar umas enxadadas no quintal, cultivar
alguma coisa. Então eu trabalhava. Algumas pessoas pagavam vinte reais o dia
trabalhado. Então, com esses vinte reais eu comprava um quilo de sal, um quilo
de arroz, de feijão, de açúcar. Eu me prostituindo, com o dinheiro que eu estou
aqui eu posso comprar tudo isso... o dinheiro da mulher do campo eu estou com
ele aqui. A prostituta pagou cerveja, pagou isso, aquilo; eu já comi, já
bebi... Isso daqui é caro, minha irmã, é seda. Eu usava era umas camisetas de
malha toda esburacada, um negócio amarrado aqui” (Fala de uma mulher que
frequenta a Pastoral de BH)
Como afirma Jesse de Souza, “existe
uma luta de classes intestina e inegável, que permite que toda uma classe que
não consegue, pelo abandono social e político, incorporar conhecimento útil
para participar no mercado econômico competitivo, possa ser explorada como mão
de obra barata – reduzida a dispêndio muscular pela ausência da incorporação de
conhecimento valorizado pelo mercado competitivo – nas funções de empregada,
faxineira, babá, zelador, prostituta, motoboy, porteiro, e todo tipo de
trabalho, perigoso, sujo ou pesado, de modo a poupar tempo das classes média e
alta para estudo e trabalho de funções prestigiosas e rentáveis”[5].
Podemos
também afirmar que a prostituição é um fenômeno cujo crescimento é favorecido
pelas desigualdades de classe social, gênero e etnia, onde notadamente mulheres
e crianças são as maiores vítimas. A globalização se traduz pela femininização
da pobreza: do 1,3 bilhão de pessoas que vivem na pobreza absoluta, 70% são
mulheres[6].
Em
conjunto, estes fatores favorecem o aliciamento ou mesmo a “entrada espontânea”[7] na
atividade prostitucional. Entretanto, o que aparentemente é uma escolha
“constitui-se, na verdade, em uma escolha
“pré-escolhida, a partir de alternativas definidas pelo contexto de vulnerabilidade
e precariedade de seu universo familiar” [8]
Conforme
os dados abaixo indicam esta é uma atividade que tem apresentado lucro e
crescimento astronômicos nos últimos anos, sendo a terceira maior fonte de
renda dos negócios ilícitos das grandes máfias. Em âmbito global, o número de
mulheres e crianças traficadas anualmente atinge cerca de 4 milhões. A
indústria da prostituição infantil explora 400 mil crianças na Índia, 100 mil
nas Filipinas, entre 200 mil e 300 mil na Tailândia, 100 mil em Taiwan, entre
244 mil e 325 mil nos Estados Unidos. Na China, há entre 200 mil e 500 mil
crianças prostituídas e, no Brasil, entre 500 mil e 2 milhões[9].
Embora
seja uma indústria altamente lucrativa observamos que as pessoas que estão na
linha de frente, ou seja, as prostitutas, raramente auferem grandes lucros,
embora seja fato que muitas vezes consigam maior renda do que a que obteriam em
outras atividades laborais.
Constatações e
denuncias
A
partir da análise destes e outros dados compilados pela pesquisa constatamos
que:
A
prostituição é consequência de um delito inicial já na infância: violação de
direitos básicos, pobreza, falta de cuidados, abusos. Então a prostituição não
é uma transgressão moral, mas uma violação de direitos sociais.
A
exploração sexual e o tráfico de mulheres é uma realidade indissociável das
desigualdades sociais e das desigualdades entre mulheres e homens. Observamos
na sua origem a insegurança econômica, o risco de desemprego e pobreza, assim
como a banalização de práticas vexatórias contra as mulheres.
A
existência de máfias e redes que incentivam e controlam o tráfico, exploração
sexual de mulheres, meninas, meninos e adolescentes, utilizando-se de diversos
meios incluindo o turismo sexual e a conivência de agentes públicos e privados,
cuja perseguição exige uma resposta coordenada entre os Estados.
O
silêncio e a omissão das instituições públicas que devem garantir a promoção e
a proteção dos direitos e liberdades das mulheres, particularmente aquelas que
se encontram em uma situação de maior vulnerabilidade.
A revitimização e violência sexual e
institucional (lacuna da Lei Maria da Penha), por parte de órgãos que em
princípio deveriam promover a segurança, quando as mulheres que exercem
prostituição vão denunciar situações de violência, sobretudo física e
psicológica, perpetradas por clientes ou parceiros.
O
descaso e falta de atenção às mulheres de 18 a 60 anos, que se encontram em
alto grau de vulnerabilidade tendo seus direitos violados, quanto a saúde e a
assistência social especializada.
Denunciamos
e repudiamos falta de segurança nos locais de exercício de prostituição,
sobretudo, no horário noturno. Também as condições precárias de alguns locais
como: falta de ventilação, sujeira, superlotação, dentre outras. Repudiamos a
exploração, o desrespeito e a violação
de direitos sistemática em alguns destes locais.
Acreditamos
que a luta pela efetivação e promoção de direitos, a sensibilização dos
diversos setores da sociedade civil, de órgãos e entidades públicas e privadas
e a articulação em redes e parcerias com instituições de promoção humana possam
resgatar e promover a cidadania daqueles que estão vulnerabilizados pelas
estruturas sociais e econômicas opressivas vigentes.
Que
a Saúde e a Educação tenham prioridade na liberação de recursos financeiros
suficientes para atender população sobre tudo, às mulheres mais empobrecidas.
Para atingir esse objetivo faz necessário rever a distribuição dos recursos uma
vez que esses tem sido
prioritariamente direcionados e
investidos em megaeventos.
Ressaltamos
que a marca mais profunda que a mulher em situação de prostituição carrega é o
preconceito e o estigma. Acreditamos que a dignidade da pessoa humana é
inviolável. Reafirmamos nossa luta por justiça e cidadania. Conforme nos disse
uma das mulheres entrevistadas:
“Quero
que me valorizem, me respeitem e falem bem de mim. Quero ter meus direitos, ter
uma vida melhor, boa alimentação, educação, liberdade e respeito, trabalho...
sem violência e discriminação”.
[1] MATTOS,
Patrícia. A dor e o estigma da puta pobre. In JESSE SOUZA, A ralé brasileira,
UFMG, Belo Horizonte, 2009, p. 175-176
[2] LEAL,
Maria Lúcia P., Globalização e
exploração sexual comercial de crianças e adolescentes. Rio de
Janeiro, Save the Children, 2003
[3]
POULIN, Richard, O caso de amor entre a prostituição internacional e o
capitalismo em http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/519672-o-caso-de-amor-entre-a-prostituicao-internacional-e-o-capitalismo-entrevista-especial-com-richard-poulin.
Acesso em 3 de junho de 2013
[4]
Ibid.
[5]
SOUZA, Jessé. A Parte de Baixo da Sociedade Brasileira. Em http://interessenacional.uol.com.br/2011/07/a-parte-de-baixo-da-sociedade-brasileira.
Acesso em 4 de junho de 2013
[6]
Amnistía Internacional. Informe La trampa del género.: mujeres, violencia e
pobreza. Em http://www.portalodm.com.br/la-trampa-del-genero-mujeres-violencia-y-pobreza-em-espanhol--bp--278.html.
Acesso em 4 de junho de 2013
[7] MATTOS,
Patrícia. A dor e o estigma da puta pobre. In JESSE SOUZA, A ralé brasileira,
UFMG, Belo Horizonte, 2009, p. 175
[8] MATTOS, Patrícia. A dor e o estigma da puta
pobre. In JESSE SOUZA, A ralé brasileira, UFMG, Belo Horizonte, 2009, p.
175-176
[9] POULIN,
Richard, Quinze teses sobre o capitalismo e o sistema mundial de prostituição
em http://observatoriodamulher.org.br/site/index.php?option=com_content&task=view&id=37&Itemid=107.
Acesso em 2 de junho de 2013
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