O espetáculo de barbárie da Praça Tahrir é apenas a ponta do
iceberg da violência contra a mulher no Egito - onde a revolução sexual ainda
não aconteceu. Dados de ONGs locais indicam que 83% das mulheres confirmam já
terem sido vítimas de agressões ou de assédio sexual no país.
A sexta-feira, 25 de janeiro de 2013, Dia da Congregação no
mundo muçulmano, marcaria o segundo aniversário da queda do ditador Hosni
Mubarak. Como dezenas de milhares de compatriotas, Hania Moheeb, jornalista de
42 anos, se dirigiu à Praça Tahrir, no centro do Cairo, para o seu segundo
protesto do dia. Estava disposta a lutar pela liberdade e pela democracia no
Egito, mas também por uma bandeira que lhe é cara: a igualdade de gêneros.
"Senti de imediato que havia uma má vibração no ar, que
não havia apenas pessoas que queriam protestar. Decidi ir embora, mas precisava
encontrar uma pessoa e, para não perder tempo, atravessei o centro da
praça", relata. Então Hania viveu o mesmo pesadelo pelo qual 19 outras
mulheres passaram naquela noite.
"Comecei a ouvir gritos na multidão e fui cercada por
um grupo", ela relata. "Não entendia nada, até que dezenas e dezenas
de homens que me apertavam e me impediam de mexer começaram a arrancar minhas roupas."
O longo martírio, de 35 a 45 minutos em que sofreu
violências sexuais em pleno centro do Cairo lotado de manifestantes, se repete.
No Egito, todos os testemunhos convergem para o mesmo tipo de violência vivida
pela jornalista Lara Logan, correspondente da rede de TV CBS, a primeira a
dizer publicamente ter sido atacada em 11 de janeiro de 2011.
Graças ao relato da sul-africana, o mundo começou a
descobrir o horror dos ataques e estupros em massa na Praça Tahrir, que
voltaram a acontecer nos protestos de 30 de junho e 1º de julho e deixaram pelo
menos 91 vítimas, em cálculos da Human Rights Watch.
O que pouco se é diz é que o espetáculo de barbárie da Praça
Tahrir é apenas a ponta do iceberg da violência contra a mulher no Egito - onde
a revolução sexual ainda não aconteceu. Dados de ONGs locais indicam que 83%
das mulheres confirmam já terem sido vítimas de agressões ou de assédio sexual
no país.
Ao longo dos últimos 10 dias, o Estado ouviu vítimas de
estupros na praça Tahrir, feministas, ativistas de direitos humanos, ONGs e
sociólogos para tentar entender o fenômeno. Entre os relatos, estão histórias
de perseguições nas ruas, insultos em público, discriminação constante, maus
tratos e, claro, agressões sexuais.
Não bastasse, o Egito é o recordista mundial de mulheres que
sofrem excisão - a mutilação sexual por amputação do clitóris. Dados da
Organização Mundial da Saúde (OMS) de 2008 indicam que pelo menos 50% das
egípcias com idade entre 10 e 18 anos passaram pela "cirurgia".
Nos arredores de Luxor, a 700 quilômetros ao sul do Cairo,
esse porcentual chega a 99%, tornando epidêmicos problemas como hemorragias
graves, cistos repetidos, riscos de reabertura da cicatriz durante o parto e
dores - em lugar de prazer - no ato sexual.
A discriminação e o menosprezo são tão graves e enraizados
que em 2012 Azza al-Garf, do Partido Justiça e Liberdade, o braço político da
Irmandade Muçulmana, defendeu com todas as letras o fim da proibição legal à
mutilação, sob o argumento de que se trata de uma "cirurgia estética para
embelezamento" da mulher. Detalhe: Azza é mulher, é deputada e uma das
únicas nove exceções entre 479 homens na câmara.
Além de pregar a mutilação feminina, a parlamentar nega que
haja perseguição sexual e defende mais rigor na lei - já draconiana - de
divórcios no país.
De acordo com Madiha El-Safty, socióloga especializada em
questões de gênero da Universidade Americana do Cairo, no Egito, essa situação
vinha se agravando durante o governo do presidente deposto Mohamed Morsi,
representante da Irmandade Muçulmana - movimento islâmico moderado, mas não
tanto assim.
"No governo da Irmandade, não houve nenhum tipo de
condenação e nem mesmo de recriminação aos homens envolvidos em gangues de
estupros, nem estavam assegurados os direitos protegendo mulheres contra
mutilações sexuais praticadas em nome de crenças religiosas", diz a
docente, que apoiou o golpe de Estado.
Para intelectuais e militares feministas, um dos problemas
do Egito é que a violência e a discriminação sexual não são responsabilidade só
de uma religião, mas de toda a sociedade.
Oficialmente, tanto a maior autoridade sunita do mundo,
Al-Azhar, quanto a igreja cristã copta, ambas com sede no Cairo, recriminam a
excisão e, é claro, práticas como os estupros coletivos. Mas tais crimes
continuam se repetindo.
É para lutar contra eles que mulheres como Hania e Yasmine
el-Baramawy, compositora e intérprete de 30 anos, vêm falando de forma aberta
sobre as violências que sofreram na Praça Tahrir.
Segundo elas - e muitas outras vítimas -, os estupros em
praça pública não são só um ato sexual, mas sobretudo político. Seriam
perpetrados por gangues remuneradas por grupos conservadores, com a conivência
da polícia, para tentar amedrontar e dissuadir mulheres da vida política.
"Não foram manifestantes que arrancaram e cortaram as
minhas roupas e me violentaram com mãos e objetos. Foram membros de grupos
pagos para nos retaliar, para controlar mulheres e manter a sociedade como ela
é", diz Yasmine. Sete amigas dela foram violentadas na Tahrir, todas têm a
mesma convicção. "É organizado, é um ato político. No Egito somos criadas
como um objeto qualquer. E os grupos que patrocinam esses atos querem que siga
assim."
A relações públicas Mary Awaballah, de 29 anos, concorda.
Chocada com os relatos de violência, ela criou uma rede de voluntários, a Tahrir
Bodyguards, que tenta fazer a segurança na praça nos dias de protestos.
"Para alguns egípcios, mulheres não devem ter iniciativa política, nem
ação social", diz. "Vai levar anos para mudarmos essa mentalidade,
não há dúvida."
O problema é que até aqui, diz Mozn Hassan, diretora da ONG
Nazra (Olhar), essa é a revolução esquecida no Egito. "Um país que não
reconhece que crimes sexuais são cometidos todos os dias ainda não está pronto
para a revolução feminista."
Fonte: O Estado de SãoPaulo
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