quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Prostituição feminina e relação social: (não) reconhecimento e construção de subjetividades


 Podemos constatar uma intima relação entre o estagio do direito e da solidariedade, uma vez que a forma como os direitos são (ou não) respeitados sinaliza a forma como a sociedade concebe os cidadãos/as.


Por Lucinete Santos (assistente social da Pastoral da Mulher de Bh)

Na sociedade brasileira a prostituição feminina está situada com um maior índice em relação à prostituição masculina. A partir dessa evidência, podemos situar o quesito gênero enquanto questão social, que expressa estruturas e dinâmicas advindas do modo como emerge e se desdobra a constituição da sociedade moderna, tornando, cada vez mais complexas as relações sociais.  
Conceber que o fator do (não) reconhecimento possa ser para a mulher, que sobrevive da venda de sexo, causa de uma série de outros problemas, entre eles, problemas psicológicos, pode inicialmente parecer sem sentido. Porém, observamos que o cotidiano da mulher que exerce a prostituição não é tão “fácil” quanto o senso comum tende a afirmar. Imaginemos viver num constante estado de alerta e tensão: necessidade de esconder o nome verdadeiro para não ser reconhecida; medo do filho adolescente, irmão, pai ou outro parente encontrá-la num quarto de hotel; pressão de religiões que tendem a afirmar que seu futuro é o “fogo do inferno” ou a condenação eterna; aperto dos gerentes para pagar a diária quando o movimento não corresponde a expectativa para aquele dia; medo da camisinha estourar (DST, gravidez), ... Essas são algumas tensões que muitas mulheres que sobrevivem da prostituição enfrentam no seu dia a dia.
Percebemos que o exercício da prostituição em si não constitui o maior problema para a mulher que exerce essa atividade. O problema, entretanto, se origina de um imaginário social, que tende a penalizar a mulher, através do (não) reconhecimento de tal “trabalho”, que se manifesta através do preconceito, da estigmatização e discriminação.
Por mais que muitas das mulheres não tenham dúvidas que o exercício da prostituição constitui em si um trabalho como outro qualquer, onde elas garantem seu sustento, pagam impostos, como relata Marta[1]: “... é dali que você tira seu sustento, você veste, você calça, paga aluguel, paga luz...”, elas também reconhecem que é um trabalho não reconhecido socialmente, o que influencia na construção de subjetividades marcadas pela degradação pessoal e psíquica. A partir dessa perspectiva, Axel Honneth (2003)[2] nos auxiliará com a teoria do reconhecimento social ao trabalhar as relações que emergem do estabelecimento de padrões de reconhecimento intersubjetivo em que se destacam o amor, o direito e a solidariedade.
Baseado no pensamento de Winnicot, Honneth (2003) concebe o amor como o alicerce de toda relação social, que move o indivíduo nas primeiras fases da vida a partir da relação com a mãe e os familiares próximos, iniciando-se a construção da autoconfiança. A vida de muitas mulheres que exercem a prostituição constitui um desdobramento de uma realidade de pobreza material e subjetiva, o que muitas vezes desencadeia nas relações familiares uma sequência de privações, entre essas, as afetivas. Constatamos um contexto familiar perpassado pelo abandono, exploração e violência, como menciona Marli[3]: “Só do homem ter tirado minha cabaça com doze anos... eu entrei na prostituição. Como é ser estuprada por quem não ama, no interior pobre, de família pobre”.
O estágio do direito vem nessa lógica influenciada pelo estágio do amor, o que dá suporte ao exercício do autorrespeito, isto é, eu respeito o direito alheio porque eu tenho os meus direitos respeitados. É o direito que permite que os sujeitos se reconheçam reciprocamente como seres humanos dotados de igualdade e dignidade. Como assinala Carreteiro (2003)[4]Os indivíduos que compõe o imaginário da inutilidade não encontram uma inscrição positivada nos grandes projetos institucionais (educação, escola, saúde, trabalho). As inscrições oferecidas pelas instituições marcam-lhes de forma negativa, estabilizando lugares sociais considerados inúteis”.
Dessa forma compreenderemos os desafios que a mulher que exerce a prostituição tem que suportar ao recorrer aos aparatos do Estado e às instituições da sociedade de um modo geral para ter seus direitos respeitados.
“Quando a gente precisa da policia, todo o ser humano chega uma hora que precisa, né? Seja por qualquer coisa, e quando chega lá, Ave Maria! Qual é a profissão? Se descobre que a gente é garota de programa a gente não tem direito nenhum. Acho que muito pelo contrário, se a gente tiver certa mesmo contando a nossa história, acham que não, acham que a gente faz tudo pelo contrário. Quer explorar a gente lá dentro sexualmente. Minha colega uma vez falou que foi detida lá no alto da Afonso Pena, porque ela estava na rua fazendo vida, como fica um tanto de policiais lá, eles levaram ela para delegacia. Primeiro ela saiu de lá, porque teve que pagar R$ 100,00 reais ao policial, foi até eu que emprestei o dinheiro a ela”.[5]
             O preconceito, a discriminação, o desrespeito estão também na escola e podem ocorrer tanto pelo fato da própria pessoa que estuda ser prostituta, como foi o caso da colega de Carolina: “[...] a minha colega saiu da sala de aula, porque o menino lá descobriu que ela era garota de programa e contou pra sala inteira, ai ela não voltou mais na sala de aula. Os professores olhavam ela assim atravessado, os colegas começaram a fazer graça com ela, entendeu? O sonho que minha colega tinha era ser advogada. Não concluiu nem o segundo grau, tava ali para concluir o segundo grau, mas ai o rapaz descobriu que ela era garota de programa e contou pra sala inteira e pra os professores.” O mesmo pode acontecer com um/a filho/a na escola ou entre vizinhos, o que aconteceu com Aline[6]. “Teve colegas minhas que comentaram que os vizinhos quando descobriu que ela era prostituta não deixaram as crianças dela brincar com as dele e as criança dele brincar com as dela. Minha filha já foi agredida na rua por eu ser prostituta. Vizinho falar: “xô! Sua mãe é prostituta!”Já aconteceu isso com a minha filha. Preconceito é uma doença. você sente na pele... na pele”.
             A religião, muitas das vezes entra reforçando tal ideologia:
“Virgem Maria! Essa fala que não tem preconceito... Essa daí é a que mais têm professora! Nosso Deus do céu. Têm sim. Teve uma vez que eu fui pedir uma benção ao padre, a senhora está entendendo? e minha colega falou que a gente era garota de programa, os outros ele tava dando a benção sem olhar dos pés a cabeça, pra mim e pra minha colega ele olhou nós assim: dos pés à cabeça. Mas aqui, não só a religião católica não, viu, são todas as igrejas, todas, todas, todas, todas as igrejas, sabia? São assim...” (Carolina).
                O estágio da solidariedade em Honneth se caracteriza pela autorrealização e autoestima. O indivíduo se entende digno do reconhecimento e do respeito que se dá por meio da avaliação coletiva, social e, consequentemente, interpessoal, o que observamos não acontecer à mulher que se prostitui. “Rotulam nós como suja, acham que nós somos um bando de aidéticas, acham que nós somos um bando de garotas cheias de gonorreias. Eles acham que a gente é lixo do lixo. Que a gente serve só pros homens descarregar. Eles acham que a gente é um lava jato dos homens. Que a gente é tudo suja. Nós somos um deposito de esperma que faz os caras aliviar, né?” (Carolina).
               Podemos constatar uma intima relação entre o estagio do direito e da solidariedade, uma vez que a forma como os direitos são (ou não) respeitados sinaliza a forma como a sociedade concebe os cidadãos/as. Quando Carolina exterioriza o que a sociedade pondera ou imagina a seu respeito, simultaneamente há uma introjeção acompanhada por um processo de reconhecimento dela com ela mesma. Nesse aspecto podemos trazer a reflexão de Merleau Ponty[7] através do pressuposto do “corpo vidente visível”.
Constatamos a debilidade na vivência da maior parte das mulheres entrevistadas, dos estágios aferidos por Honneth, o que o autor conceitua como equivalentes negativos do reconhecimento social e cerne de toda a sua teoria. Para Honneth, o desrespeito a algum ou todos os estágios, incentiva no individuo a luta pela conquista do direito violado, o que observamos não acontecer no caso de algumas mulheres, uma vez que ao ter vivenciado tantas violações acabam, muitas vezes, se tornando pessoas psicologicamente doentes e socialmente descrentes do reconhecimento social. A partir dessa constatação, Teresa Cristina Carreteiro (2003), através da apreciação de algumas dimensões do sofrimento social - humilhação, vergonha e falta de reconhecimento - nos auxilia nessa compreensão. A autora trabalha com a hipótese “de que o sofrimento social não tem visibilidade: ele se inscreve no interior das subjetividades sem, no entanto, ser compartilhado coletivamente”. E ressalta que a lógica da invalidação e da depreciação, tende a acontecer muitas vezes em “cenas públicas”, onde além do sujeito experimentar tamanho envergonhamento e desvalorização, na maior parte das vezes a sociedade não oferece suportes adequados para os mesmos/as, pelo contrário, reforça ainda mais a desvalorização por meio da negligencia e discriminação.
Carreteiro trabalha com formas de intervenções possíveis, entre elas o conceito de “confiança”, que se pauta também na teoria de Winnicott, que concebe sua construção desde a relação primeira estabelecida entre o bebê e sua mãe, posteriormente com a família, a sociedade e o mundo. Outra forma de intervenção, citada pela autora, está referida ao conceito de “intermediário”, que compreende a “articulação da diferença”, permitindo o trabalho psíquico que gera modificações na realidade.
Nesta perspectiva, entendemos a importância dos espaços intermediários (organismos governamentais e não governamentais), que possibilitam ao indivíduo sentir-se acolhido (a) em sua singularidade, sem se sentir “desclassificado (a)” ou “culpado (a)”, como é o caso da mulher que se encontra em contexto de prostituição. Ao lançar desafios, Carreteiro (2003) aponta para a importância do trabalho artístico no fortalecimento da autonomia, o que várias instituições desenvolvem para criação de vínculos e autoconhecimento dos indivíduos que procuram esses espaços. Porém, a autora chama a atenção para que essas instâncias não se limitem exclusivamente a essas atividades enquanto proposta que possa contribuir para a concretização de uma cidadania plena. É preciso ir além, pensar em mudanças estruturais. Apesar de todos os desafios que assola a “coisa pública”, com o avanço da ideologia neoliberal, a partir do pressuposto de “Estado Mínimo”, fica uma provocação aos órgãos que constituem esses espaços intermediários impulsionar os gestores públicos na luta a favor dos direitos e dignidade da pessoa humana.






[1] (Marta, 43 anos na prostituição).
[2] HONNETH, Axel. Luta por Reconhecimento. A gramática moral dos conflitos sociais, São Paulo: Ed. 34, 2003.
[3] (Marli, 40 anos na prostituição).  
[4] CARRETEIRO, T. C. Sofrimento social em debate. São Paulo: Psicologia USP, 2003, p. 57-72.

[5] (Carolina, 35 anos na prostituição).
[6] (Aline, 23 anos na prostituição).
[7] CHAUI, Marilena. Experiência do pensamento: ensaios sobre a obra de Merleau-Ponty. São Paulo: Martins Fontes, 2002.


Um comentário:

luciano disse...

As mulheres em geral,não só as prostitutas,são menosprezadas pela sociedade machista na qual vivemos.Quanto às prostitutas o tratamento é ainda mais severo.Os homens as veem como um mero brinquedo para satisfazer seus desejos;um objeto; uma mercadoria.A mulher que se prostitui é mulher como as que não o fazem.Tem sentimento,sonhos,acreditam no amor. Observa-se que as garotas de programa acabam por interiorizar a ideia de que são menos que as outras pessoas.Que não têm direito de serem cidadãs.Os outros dizem que elas são "vagabundas" e elas acreditam nesse conceito preconceituoso.Dizem que elas não prestam e elas acreditam nisso.São vítimas de um sistema perverso que desumaniza as pessoas .Infelizmente,o consumismo é palavra de ordem nos tempos que correm.A mulher ainda não teve o devido valor que lhe cabe.