Podemos constatar uma intima relação entre o estagio do direito e da solidariedade, uma vez que a forma como os direitos são (ou não) respeitados sinaliza a forma como a sociedade concebe os cidadãos/as.
Por Lucinete Santos (assistente social da Pastoral da Mulher de Bh)
Na sociedade
brasileira a prostituição feminina está situada com um maior índice em relação
à prostituição masculina. A partir dessa evidência, podemos situar o quesito
gênero enquanto questão social, que expressa estruturas e dinâmicas advindas do
modo como emerge e se desdobra a constituição da sociedade moderna, tornando,
cada vez mais complexas as relações sociais.
Conceber que o fator do (não)
reconhecimento possa ser para a mulher, que sobrevive da venda de sexo, causa
de uma série de outros problemas, entre eles, problemas psicológicos, pode
inicialmente parecer sem sentido. Porém, observamos que o cotidiano da mulher
que exerce a prostituição não é tão “fácil” quanto o senso comum tende a
afirmar. Imaginemos viver num constante estado de alerta e tensão: necessidade
de esconder o nome verdadeiro para não ser reconhecida; medo do filho
adolescente, irmão, pai ou outro parente encontrá-la num quarto de hotel;
pressão de religiões que tendem a afirmar que seu futuro é o “fogo do inferno”
ou a condenação eterna; aperto dos gerentes para pagar a diária quando o
movimento não corresponde a expectativa para aquele dia; medo da camisinha
estourar (DST, gravidez), ... Essas são algumas tensões que muitas mulheres que
sobrevivem da prostituição enfrentam no seu dia a dia.
Percebemos que o exercício da
prostituição em si não constitui o maior problema para a mulher que exerce essa
atividade. O problema, entretanto, se origina de um imaginário social, que
tende a penalizar a mulher, através do (não) reconhecimento de tal “trabalho”,
que se manifesta através do preconceito, da estigmatização e discriminação.
Por mais que muitas das mulheres não
tenham dúvidas que o exercício da prostituição constitui em si um trabalho como
outro qualquer, onde elas garantem seu sustento, pagam impostos, como relata
Marta[1]:
“... é dali que você tira seu sustento,
você veste, você calça, paga aluguel, paga luz...”, elas também reconhecem
que é um trabalho não reconhecido socialmente, o que influencia na construção
de subjetividades marcadas pela degradação pessoal e psíquica. A partir dessa
perspectiva, Axel Honneth (2003)[2]
nos auxiliará com a teoria do reconhecimento social ao trabalhar as relações que emergem do estabelecimento de
padrões de reconhecimento intersubjetivo em que se destacam o amor, o
direito e a solidariedade.
Baseado no pensamento de Winnicot,
Honneth (2003) concebe o amor como o
alicerce de toda relação social, que move o indivíduo nas primeiras fases da
vida a partir da relação com a mãe e os familiares próximos, iniciando-se a
construção da autoconfiança. A vida de muitas mulheres que exercem a
prostituição constitui um desdobramento de uma realidade de pobreza material e
subjetiva, o que muitas vezes desencadeia nas relações familiares uma sequência
de privações, entre essas, as afetivas. Constatamos um contexto familiar
perpassado pelo abandono, exploração e violência, como menciona Marli[3]:
“Só do homem ter tirado minha cabaça com
doze anos... eu entrei na prostituição. Como é ser estuprada por quem não ama,
no interior pobre, de família pobre”.
O estágio do direito vem nessa lógica influenciada pelo estágio do amor, o que dá suporte ao exercício do
autorrespeito, isto é, eu respeito o direito alheio porque eu tenho os meus
direitos respeitados. É o direito que permite que os sujeitos se reconheçam
reciprocamente como seres humanos dotados de igualdade e dignidade. Como assinala Carreteiro (2003)[4]
“Os indivíduos que compõe o imaginário da
inutilidade não encontram uma inscrição positivada nos grandes projetos
institucionais (educação, escola, saúde, trabalho). As inscrições oferecidas
pelas instituições marcam-lhes de forma negativa, estabilizando lugares sociais
considerados inúteis”.
Dessa forma
compreenderemos os desafios que a mulher que exerce a prostituição tem que
suportar ao recorrer aos aparatos do Estado e às instituições da sociedade de
um modo geral para ter seus direitos respeitados.
“Quando
a gente precisa da policia, todo o ser humano chega uma hora que precisa, né?
Seja por qualquer coisa, e quando chega lá, Ave Maria! Qual é a profissão? Se
descobre que a gente é garota de programa a gente não tem direito nenhum. Acho
que muito pelo contrário, se a gente tiver certa mesmo contando a nossa
história, acham que não, acham que a gente faz tudo pelo contrário. Quer
explorar a gente lá dentro sexualmente. Minha colega uma vez falou que foi
detida lá no alto da Afonso Pena, porque ela estava na rua fazendo vida, como
fica um tanto de policiais lá, eles levaram ela para delegacia. Primeiro ela
saiu de lá, porque teve que pagar R$ 100,00 reais ao policial, foi até eu que
emprestei o dinheiro a ela”.[5]
O preconceito, a discriminação, o
desrespeito estão também na escola e podem ocorrer tanto pelo fato da própria
pessoa que estuda ser prostituta, como foi o caso da colega de Carolina: “[...] a minha colega saiu da sala de aula,
porque o menino lá descobriu que ela era garota de programa e contou pra sala
inteira, ai ela não voltou mais na sala de aula. Os professores olhavam ela
assim atravessado, os colegas começaram a fazer graça com ela, entendeu? O
sonho que minha colega tinha era ser advogada. Não concluiu nem o segundo grau,
tava ali para concluir o segundo grau, mas ai o rapaz descobriu que ela era
garota de programa e contou pra sala inteira e pra os professores.” O mesmo
pode acontecer com um/a filho/a na escola ou entre vizinhos, o que aconteceu
com Aline[6].
“Teve colegas minhas que comentaram que
os vizinhos quando descobriu que ela era prostituta não deixaram as crianças
dela brincar com as dele e as criança dele brincar com as dela. Minha filha já
foi agredida na rua por eu ser prostituta. Vizinho falar: “xô! Sua mãe é
prostituta!”Já aconteceu isso com a minha filha. Preconceito é uma doença. você
sente na pele... na pele”.
A religião, muitas das vezes entra
reforçando tal ideologia:
“Virgem
Maria! Essa fala que não tem preconceito... Essa daí é a que mais têm
professora! Nosso Deus do céu. Têm sim. Teve uma vez que eu fui pedir uma
benção ao padre, a senhora está entendendo? e minha colega falou que a gente
era garota de programa, os outros ele tava dando a benção sem olhar dos pés a
cabeça, pra mim e pra minha colega ele olhou nós assim: dos pés à cabeça. Mas
aqui, não só a religião católica não, viu, são todas as igrejas, todas, todas,
todas, todas as igrejas, sabia? São assim...” (Carolina).
O estágio da solidariedade em Honneth
se caracteriza pela autorrealização e autoestima. O indivíduo se entende digno
do reconhecimento e do respeito que se dá por meio da avaliação coletiva,
social e, consequentemente, interpessoal, o que observamos não acontecer à
mulher que se prostitui. “Rotulam nós
como suja, acham que nós somos um bando de aidéticas, acham que nós somos um
bando de garotas cheias de gonorreias. Eles acham que a gente é lixo do lixo.
Que a gente serve só pros homens descarregar. Eles acham que a gente é um lava
jato dos homens. Que a gente é tudo suja. Nós somos um deposito de esperma que
faz os caras aliviar, né?” (Carolina).
Podemos constatar uma intima
relação entre o estagio do direito e da solidariedade, uma vez que a forma como
os direitos são (ou não) respeitados sinaliza a forma como a sociedade concebe
os cidadãos/as. Quando Carolina exterioriza o que a sociedade pondera ou
imagina a seu respeito, simultaneamente há uma introjeção acompanhada por um
processo de reconhecimento dela com ela mesma. Nesse aspecto podemos trazer a
reflexão de Merleau Ponty[7]
através do pressuposto do “corpo vidente visível”.
Constatamos a debilidade na vivência da
maior parte das mulheres entrevistadas, dos estágios aferidos por Honneth, o
que o autor conceitua como equivalentes
negativos do reconhecimento social e cerne de toda a sua teoria. Para
Honneth, o desrespeito a algum ou todos os estágios, incentiva no individuo a
luta pela conquista do direito violado, o que observamos não acontecer no caso
de algumas mulheres, uma vez que ao ter vivenciado tantas violações acabam, muitas
vezes, se tornando pessoas psicologicamente doentes e socialmente descrentes do
reconhecimento social. A partir dessa constatação, Teresa Cristina Carreteiro
(2003), através da apreciação de algumas dimensões do sofrimento social -
humilhação, vergonha e falta de reconhecimento - nos auxilia nessa compreensão.
A autora trabalha com a hipótese “de que
o sofrimento social não tem visibilidade: ele se inscreve no interior das
subjetividades sem, no entanto, ser compartilhado coletivamente”. E
ressalta que a lógica da invalidação
e da depreciação, tende a acontecer
muitas vezes em “cenas públicas”, onde
além do sujeito experimentar tamanho envergonhamento e desvalorização, na maior
parte das vezes a sociedade não oferece suportes adequados para os mesmos/as,
pelo contrário, reforça ainda mais a desvalorização por meio da negligencia e
discriminação.
Carreteiro
trabalha com formas de intervenções possíveis, entre elas o conceito de “confiança”, que se pauta também na
teoria de Winnicott, que concebe sua construção desde a relação primeira
estabelecida entre o bebê e sua mãe, posteriormente com a família, a sociedade
e o mundo. Outra forma de intervenção, citada pela autora, está referida ao
conceito de “intermediário”, que
compreende a “articulação da diferença”,
permitindo o trabalho psíquico que gera modificações na realidade.
Nesta
perspectiva, entendemos a importância dos espaços intermediários (organismos
governamentais e não governamentais), que possibilitam ao indivíduo sentir-se
acolhido (a) em sua singularidade, sem se sentir “desclassificado (a)” ou
“culpado (a)”, como é o caso da mulher que se encontra em contexto de
prostituição. Ao lançar desafios, Carreteiro (2003) aponta para a importância
do trabalho artístico no fortalecimento da autonomia, o que várias instituições
desenvolvem para criação de vínculos e autoconhecimento dos indivíduos que
procuram esses espaços. Porém, a autora chama a atenção para que essas
instâncias não se limitem exclusivamente a essas atividades enquanto proposta
que possa contribuir para a concretização de uma cidadania plena. É preciso ir
além, pensar em mudanças estruturais. Apesar de todos os desafios que assola a
“coisa pública”, com o avanço da ideologia neoliberal, a partir do pressuposto
de “Estado Mínimo”, fica uma provocação aos órgãos que constituem esses espaços
intermediários impulsionar os gestores públicos na luta a favor dos direitos e
dignidade da pessoa humana.
Um comentário:
As mulheres em geral,não só as prostitutas,são menosprezadas pela sociedade machista na qual vivemos.Quanto às prostitutas o tratamento é ainda mais severo.Os homens as veem como um mero brinquedo para satisfazer seus desejos;um objeto; uma mercadoria.A mulher que se prostitui é mulher como as que não o fazem.Tem sentimento,sonhos,acreditam no amor. Observa-se que as garotas de programa acabam por interiorizar a ideia de que são menos que as outras pessoas.Que não têm direito de serem cidadãs.Os outros dizem que elas são "vagabundas" e elas acreditam nesse conceito preconceituoso.Dizem que elas não prestam e elas acreditam nisso.São vítimas de um sistema perverso que desumaniza as pessoas .Infelizmente,o consumismo é palavra de ordem nos tempos que correm.A mulher ainda não teve o devido valor que lhe cabe.
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