Das mais de duas dúzias de veteranas entrevistadas pelo New York Times, 16 disseram que foram atacadas sexualmente em serviço e outra foi perseguida. Um estudo de Donna L. Washington e colegas revelou que 53% das veteranas sem teto tinham algum tipo de trauma sexual militar e que muitas entraram para as forças armadas para fugir dos conflitos e abusos familiares.
Nos recessos de sua memória, Tiffany Jackson lembra-se do
emprego que teve, brevemente, depois de deixar o Exército, quando ela ainda
usava sandálias e blusas elegantes, com colares de borboleta, e trabalhava em
um arranha-céu com uma vista de um milhão de dólares.
Dois anos depois, ela havia desmoronado com revolta, deixado
seu emprego e abraçado o álcool. Ela começou a sair com pessoas que usavam
cocaína e também se viciou, protegendo-se contra o vento na Skid Row.
"Você se sente impotente para parar", disse ela
sobre os eventos em cascata que a fizeram passar do apartamento próprio para
hotéis baratos e depois, por um ano, para as ruas, onde ela entrou para as
fileiras crescentes das veteranas sem teto.
Enquanto o Pentágono suspende a proibição de mulheres em
combate, as mulheres que voltam das missões estão enfrentando um campo de
batalha diferente: hoje, são o segmento que mais cresce da população sem teto,
um grupo muitas vezes invisível que passa as noites em sofás, colchões de ar,
armazéns públicos ou em carros, estacionados de forma discreta perto dos
shoppings, para evitar a violência das ruas.
Em grande parte, os combatentes homens se tornam sem teto
por causa de abuso de substâncias e por doenças mentais. Mas os especialistas
dizem que, além desses problemas, as veteranas têm outros, incluindo a busca
por abrigos que aceitem a família e empregos que paguem bem. Um caminho que
comumente leva as mulheres a essa situação, segundo os pesquisadores e
psicólogos, é o trauma sexual militar, ou TSM, por assédio ou violência sexual
durante seu serviço, que pode levar ao distúrbio de estresse pós-traumático.
O trauma sexual colocou Jackson neste caminho. A princípio
ela achou que ia conseguir deixar para trás "o incidente": aquela
noite fria de agosto na Base Aérea de Suwon na Coreia do Sul, quando um soldado
pegou-a pela garganta no banheiro de um bar e a estuprou selvagemente no chão
todo urinado. Mas durante os sete anos que morou nas ruas e saiu das ruas ela
descobriu que não conseguia se esquecer.
Dos 141.000 veteranos no país que passaram pelo menos uma
noite em um abrigo em 2011, quase 10% eram mulheres, de acordo com o
Departamento de Moradia e Desenvolvimento Urbano. Em 2009, eram 7,5%. Em parte,
isso é um reflexo das mudanças entre os militares americanos, onde as mulheres
hoje constituem 14% das forças da ativa e 18% da Guarda Nacional e dos
reservistas.
As veteranas, contudo, também enfrentam uma complexa
"rede de vulnerabilidade", disse Donna L. Washington, professora de
medicina da Universidade da Califórnia em Los Angeles e doutora do Centro
médico de Assuntos dos Veteranos (AV) de Los Angeles Ocidental, que estudou
como as mulheres chegam a ficar sem teto, inclusive a pobreza e o trauma sexual
militar.
É muito mais frequente as veteranas serem mães solteiras do
que os veteranos serem pais solteiros. Ainda assim, mais de 60% dos programas
de habitação de transição, que recebem bolsas do Departamento de Assuntos dos
Veteranos, não aceitam crianças ou restringem sua idade e número, de acordo com
um relatório de 2011 do Escritório de Contabilidade do Governo.
A falta de empregos para veteranas também contribui para a
falta de teto. Jennifer Cortez, 26, que foi uma excelente sargento do Exército,
onde treinava outros soldados, teve dificuldades em encontrar trabalho desde
que se tornou reservista em 2011. Ela acorda em seu colchão de ar no chão da
sala de estar da casa da mãe, debaixo das 12 medalhas que recebeu em oito anos,
inclusive em duas estadias no Iraque. As
oportunidades de emprego com salário mínimo a deixam espantada. "Uau,
jura?" disse ela. "Servi ao
meu país. Então varrer o chão é um pouco duro".
Sem querer ser um peso para sua família, ela morou
brevemente no carro, o único espaço pessoal que tinha. Alguns veteranos sem
teto têm habilidades de sobrevivência em campo, como Nancy Mitchel, 53, de
Missouri, veterana do exército que passou anos morando em uma barraca.
Dupla traição
Das mais de duas dúzias de veteranas entrevistadas pelo New
York Times, 16 disseram que foram atacadas sexualmente em serviço e outra foi
perseguida. Um estudo de Donna L. Washington e colegas revelou que 53% das
veteranas sem teto tinham algum tipo de trauma sexual militar e que muitas
entraram para as forças armadas para fugir dos conflitos e abusos familiares.
Para aquelas que ingressam nas forças armadas esperando ter
vidas melhores, ser atacada sexualmente ao servirem o país é "uma dupla
traição da confiança", disse Lori S. Katz, diretora da Clínica de Saúde
das mulheres do departamento de saúde do AV de Long Beach e fundadora do Renew,
um programa de tratamento inovador para veteranas com TSM. As reverberações
dessas experiências muitas vezes lançam as mulheres em uma espiral negativa de
abuso de álcool e outras substâncias, depressão e violência doméstica,
acrescentou.
"Simplesmente, arranca sua pele", disse Patricia
Goodman-Allen, terapeuta na Carolina do Norte que foi oficial da Reserva do
Exército e disse que certa vez retirou-se para um trailer no meio do mato
depois de tal ataque.
Jackson recebeu pensão plena por estresse pós-traumático
como uma consequência incapacitante de seu trauma sexual, apesar de, no início,
não ter recebido benefícios militares.
Ela foi criada em uma área violenta de Compton, Califórnia,
e serviu como operadora de equipamentos pesados no Exército, entusiasmada com
sua sensação de controle em um ambiente dominado pelos homens. Mas depois do
estupro –que ela não denunciou, nem contou para sua família- seu comportamento
mudou. Ela atacou um sargento, o que resultou em medidas disciplinares. Em
casa, ela perdeu o emprego em vendas depois que desmaiou, bêbada, no emprego.
"Parecia que eu estava inteira, mas eu estava morrendo por dentro",
disse ela.
Ela passou três anos na prisão por tráfico de drogas e, por
fim, confidenciou seu segredo a um psiquiatra na prisão, que a ajudou a ver que
muitas de suas más decisões tinham tido raiz no trauma sexual.
"Entendi que eu precisava de ajuda", diz ela hoje,
estável, finalmente, aos 32 e aconchegada na casa de sua mãe em Palmdale, ao
Norte de Los Angeles.
A advogada dela, Melissa Tyner, do centro sem fins
lucrativos Inner City Law Center, disse que muitas veteranas como Jackson
associam o atendimento aos veteranos com aquele militar que não as protegeu e
portanto não fazem terapia. Também há casos de mulheres que não serviram fora
do país e não sabem que são veteranas. "Isso as torna muito menos estáveis
e assim têm menos chance de encontrar abrigo", disse ela.
A Califórnia, lar de um quarto dos veteranos do país, também
abriga um quarto de seus veteranos sem teto. Na Grande Los Angeles, uma
pesquisa de 2011 revelou 909 mulheres sem teto, um aumento de 50% desde 2009.
Lauren Felber era uma delas. A decisão de entrar para as
forças armadas tinha sido um instinto de preservação: ela disse que foi
molestada por seu pai em sua juventude. "Ele está morto agora", disse
ela. Ela pensou que o Exército a tornaria forte.
Quando Felber voltou, uma complicação debilitadora de herpes
tornou dolorosas suas tentativas de trabalhar, inclusive servindo em bares e
trabalhos de construção. Ela se viciou em analgésicos, inclusive metadona. Sua
estadia nos sofás dos amigos acabou, e ela se dirigiu à Pershing Square, no
centro de Los Angeles, resplandecente com fontes e palmeiras altas. Ela dormia
nos degraus. Frequentadores ensinaram a ela os prós e contras da comida
gratuita. "Nas ruas, todo mundo está se atropelando, vendendo alguma
coisa, mesmo que seja amizade", disse ela.
Felber passou sete meses na Rotary House, um abrigo
administrado pelos Voluntários da América. Em seu diário, ela escreveu,
"eu ando pelas ruas de Skid Row e me vejo nos rostos dos obsoletos".
Mas a vida está finalmente melhorando: recentemente, ela se
mudou para um apartamento de um programa que fornece abrigo permanente e outros
serviços, chamado Moradia e Desenvolvimento Urbano – programa de apoio aos
veteranos, ou Hud-Vash.
Quando finalmente teve um lugar para morar, aquilo parecia
tão irreal que ela empilhava os cobertores e dormia no chão, como fazia nas
ruas. Gradualmente, andando pelos quartos vazios, ela sentiu "Uma sensação
avassaladora de espanto e gratidão".
"Estou lutando contra o medo de perder tudo isso",
acrescentou, "cada vez que eu adiciono um novo item, tornando o lugar meu
lar".
Complicações de
família
Ao voltarem, os veteranos encontram um problema: o Congresso
autorizou que o AV cuidasse deles, mas não de suas famílias. As mulheres
esperam em média quatro meses para conseguir uma moradia, o que deixa as
mulheres com filhos em risco mais alto de ficarem sem teto. Monica Figueroa,
22, que foi paraquedista do Exército, morou na oficina de um parente na grande
Los Angeles, onde dava banho em seu filho, Alexander, em uma pia usada para
gasolina e solventes até que, com ajuda, ela encontrou um abrigo temporário.
Michelle Mathis, 30, mãe solteira com três filhos, passou
por vários abrigos temporários desde que retornou em 2005 com traumatismo
craniano. Mathis, que serviu como especialista em químicos no Iraque, depende
de um GPS para se lembrar do caminho para a mercearia e a escola dos filhos.
Ela disse que não se sentia segura em um abrigo com os
filhos, então eles moravam em um quarto alugado de uma amiga que também está
ameaçada de despejo. O único lugar que Mathis disse que se sente
verdadeiramente em casa é com outras veteranas no Centro Médico do AV. Como ela
não pode pagar uma creche, ela vai ao médico com o filho de um ano, Makai, no
colo.
O abrigo de transição tradicionalmente era em dormitórios, o
que funcionava quando aqueles que voltavam eram homens solteiros. Mas um
relatório de março de 2012 do Departamento de Assuntos dos Veteranos do
Inspetor Geral encontrou quartos e banheiros sem trancas.
Susan Angell, diretora executiva da Iniciativa de Veteranos
Sem Teto do AV, disse que cada local era individual e exigia uma abordagem
diferente, às vezes de construir paredes, outras de instalar leitores de cartão
para reforçar a segurança. "Não há uma solução geral", disse ela.
"Tem que se encaixar ao ambiente. Realmente queremos o ambiente melhor e
mais seguro para todo veterano que nos procure".
Prometendo acabar com a falta de moradia entre os veteranos
até 2015, o governo está jogando milhões de dólares em programas permanentes,
como o Hud-Vash, para os veteranos sem teto crônicos. Entre os que recebem as
bolsas, 13% são mulheres, quase um terço delas com filhos, disse Angell.
Um programa mais novo do AV, com US$ 300 milhões de verbas
reservadas pelo Congresso, destina-se à prevenção, fornecendo dinheiro de
emergência de curto prazo para ajudar com questões como prestações, contas de
luz e outras. A motivação do governo, além de patriótica, é financeira: o AV
estima que o custo do atendimento de cada veterano sem teto, incluindo
hospitalizações e reembolsos para abrigos comunitários, é três vezes maior do
que o de um veterano com teto.
O senador Patty Murray, democrata de Washington, membro do
Comitê do Senado de Assuntos dos Veteranos, recentemente apresentou uma lei que
reembolsaria pela primeira vez a creche nos abrigos de transição.
Um batalhão emotivo
Mas as mudanças em Washington às vezes são glaciais. E um
teto sólido nem sempre basta. Nos subúrbios de Long Beach, Califórnia, um grupo
sem fins lucrativos, o US Vets, criou abrigos para famílias em risco em
Villages at Cabrillo, antiga base naval, com um programa especial para
veteranas sem teto.
Os diretores, porém, logo ficaram perplexos com o grande
número de mulheres que estavam tendo dificuldades para se virarem sozinhas.
"Começamos a compreender que muitas delas sofreram de trauma sexual",
disse Steve Peck, presidente do grupo e diretor executivo. "Sua
incapacidade de lidar com esses sentimentos tornava impossível colocarem um pé
na frente do outro".
O resultado foi o Renew, uma colaboração com o centro do AV
de Long Beach. Ele incorpora sessões de psicoterapia, de redação de diários e
práticas de ioga e aceita mulheres com trauma sexual militar. Cada turma de
doze mulheres mora junto por 12 semanas e passa oito horas por dia na clínica
de saúde mental da mulher, "onde você pode chorar e não tem que encontrar
um monte de homens com seu rímel escorrendo", como diz Katz.
Com Katz e outros orientadores, as mulheres formaram um
batalhão emotivo, protegendo-se contra inimigos invisíveis: medo, solidão,
desconfiança, raiva e, o mais pérfido de todos, o coração endurecido.
Em dezembro, na graduação do programa que ocorre em uma sala
de terapia, nove mulheres falaram de forma comovente em escolher a força sobre
a fragilidade. Cindi, oficial da Aeronáutica com mestrado, disse que foi
bolinada e marginalizada por uma superior. Depois de deixar as forças armadas,
ela entrou em um casamento violento e ficou dormindo em sofás por um tempo.
Ela cresceu em uma casa totalmente negligenciada. Em seu
diário, Cindi desenhou uma imagem da água fervendo no fogão, representando seus
traumas, mais poderosos do que sua autoestima.
Depois de anos de desapontamento, Cindi finalmente estava
pronta para avançar.
"Sou mais do que a soma das minhas experiências",
leu de seu diário, parecendo evocar a história de todas as irmãs veteranas sem
teto. "Sou mais do que o meu passado".
Fonte: noticias uol
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