Dignificar a prostituição como trabalho não significa
dignificar as mulheres, mas sim "dignificar" ou facilitar a vida da
indústria sexual.
Artigo de Ana Pagu e Raíza Rocha
A prostituição está diretamente relacionada
com a exploração sexual, a mercantilização do corpo feminino e a violência
contra as mulheres. No Brasil, o comércio direto do corpo ocorre à luz do dia,
é estampado nos classificados dos jornais diários e é mais um "atrativo
turístico" para os estrangeiros que visitam o país.
Sem alternativas,
milhares de mulheres são submetidas à escravização dos seus próprios corpos
para sobreviver. Distribuídas pelas ruas das cidades, coagidas por cafetões,
donos de bares e boates, submetidas à humilhação e violência dos "clientes"
e aliciadores, vendem o corpo porque, na maioria das vezes, não conseguem mais
vender ou reproduzir a sua força de trabalho. Estas mulheres são ainda, de
acordo com o Relatório do Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas
(2010), do Ministério da Justiça, os principais alvos do tráfico humano para
exploração sexual.
Regulamentação da exploração sexual
Em 2012, o deputado do PSOL, Jean Wylls, apresentou o
Projeto de Lei N° 4.211 à Câmara dos Deputados, que propõe a regulamentação da
prostituição. O objetivo seria não só "desmarginalizar" a prática
como também aumentar o controle e a fiscalização do Estado sobre o
"serviço", garantindo supostamente proteção às mulheres em situação
de prostituição. No entanto, o PL significa um retrocesso na luta pela
libertação da mulher e contribui para a expansão da indústria do sexo e do
tráfico de mulheres, na medida em que descriminaliza e legaliza a exploração
sexual.
Hoje, no país, o ato de se prostituir não é crime. Pagar
pelo sexo também não. Mas a exploração sexual, ou seja, induzir, aliciar,
facilitar a prostituição ou a exploração sexual, bem como dificultar ou impedir
que alguém a abandone, é criminalmente condenável. As casas de prostituição
também são ilegais. Com o projeto, a exploração sexual estaria
institucionalizada.
Textualmente, o PL deixa claro o que deve passar a ser
entendido por exploração sexual: "1) apropriação total ou maior que 50% do
rendimento de prestação de serviço sexual por terceiro; 2) o não pagamento pelo
serviço sexual contratado; 3) forçar alguém a praticar prostituição mediante
grave ameaça ou violência". De acordo com o projeto, uma terceira pessoa
poderia se apropriar de até 50% do valor do "serviço". Em outras
palavras, com este projeto, a exploração sexual de mulheres estaria legalmente
permitida, os cafetões seriam transformados em homens de negócio, legítimos "empresários
do sexo", e as casas de prostituição em "estabelecimentos" de
compra e venda de corpo de mulheres para fins sexuais.
A justificativa para
a apresentação do projeto segue a mesma lógica mercadológica. Segundo o autor
do projeto, "o Brasil ocupa posição de crescimento econômico e vai sediar
dois grandes eventos esportivos que atraem milhões de turistas. A
regulamentação da profissão do sexo permitirá alto grau de fiscalização pelas
autoridades competentes, além de possibilitar e até mesmo incentivar o Poder Executivo
a direcionar políticas públicas para esse segmento da sociedade (como a
distribuição de preservativos, mutirões de exames médicos e etc.)”. Os
megaeventos seriam, portanto, uma "boa oportunidade" para
regulamentar a prostituição. Para a indústria do sexo, com certeza. A
exploração da prostituição no mundo é a terceira atividade mais rentável do
crime organizado, perdendo apenas para o tráfico de drogas e armas.
O projeto argumenta
ainda que a regulamentação não estimularia a expansão da prostituição, não
promoveria o tráfico de mulheres e nem a prostituição infantil. Ao mesmo tempo,
permitiria aos profissionais do sexo "o acesso à saúde, ao Direito do
Trabalho, à segurança pública e, principalmente, à dignidade humana".
De forma genérica, o projeto prevê que a simples
regulamentação da prostituição como Trabalho garantiria direitos básicos às
"profissionais do sexo". Na simplista equação, o mesmo Estado que
nega emprego, saúde, educação, moradia, transporte, lazer e segurança para as
mulheres trabalhadoras e que tornam, muitas vezes, a prostituição como a única
"opção" possível para elas, garantiria os direitos básicos para
exercer a sua "profissão". Dignificar a prostituição como trabalho
não significa dignificar as mulheres, mas sim "dignificar" ou
facilitar a vida da indústria sexual.
No mesmo sentido, as experiências de países que
regulamentaram a prostituição mostram o contrário do propagandeado pelo
projeto. Na Alemanha e Holanda, o tráfico de mulheres é eufemisticamente
descrito como "imigração facilitada". Na Holanda, por exemplo, o
governo chegou a estabelecer uma cota legal de "trabalhadoras sexuais
estrangeiras". Como a esmagadora maioria dessas mulheres são pobres, é
quase impossível financiar a sua própria imigração, restando-lhes, assim, a ter
que se sujeitarem à intermediação de um "empresário de sexo" para
conseguirem se estabelecer em um "negócio" fora do seu país. Os
passos seguintes são praticamente conhecidos por todos: a mulher assume dívidas
com o cafetão e passa a se subordinar aos seus interesses.
No projeto apresentado no Brasil, esta intermediação é
vista, inclusive, como um "ato de solidariedade". Na proposta de
alteração dos artigos 231 e 231A do código penal, que fala sobre o deslocamento
de prostitutas dentro e para o território nacional, "a facilitação do
deslocamento de profissionais do sexo, por si só, não pode ser crime. Muitas
vezes a facilitação apresenta-se como auxílio de pessoa que está sujeita, por
pressões econômicas e sociais, à prostituição. Nos contextos em que o
deslocamento não serve à exploração sexual, a facilitação é ajuda, expressão de
solidariedade; sem a qual, a vida de pessoas profissionais do sexo seria ainda
pior. Não se pode criminalizar a solidariedade. Por outro lado, não se pode
aceitar qualquer facilitação em casos de pessoas sujeitas à exploração
sexual". Cabe relembrar aqui que a concepção de exploração é modificada
neste novo projeto e se apropriar de até 50% do "rendimento da prestação
de serviço sexual" estaria dentro da lei.
Na Holanda, em 2000, houve a regulamentação da prostituição.
O resultado foi um aumento do faturamento de 25% da indústria do sexo, que
representa hoje nada menos que 5% da economia holandesa.
A prostituição como mercadoria é a escravização do corpo da mulher
O projeto ainda define as atividades da profissional do sexo
da seguinte maneira: “Art. 1º: Considera-se profissional do sexo toda pessoa
maior de dezoito anos e absolutamente capaz que voluntariamente presta serviços
sexuais mediante remuneração. § 1º É juridicamente exigível o pagamento pela
prestação de serviços de natureza sexual a quem os contrata.§ 2º A obrigação de
prestação de serviço sexual é pessoal e intransferível”.
O sexo e a mulher são mercadorias. Rompe-se a ideia da
mulher como sujeito social, substituindo-a por uma mercadoria exposta ao
comércio sexual, cujo valor é resultante de uma relação desigual entre quem
consome a prostituição e a quem a ela tem de se submeter, permeada por uma
naturalização do machismo e da submissão. O que não é o mesmo de uma relação
entre o patrão que explora a força de trabalho do empregado para produzir uma
mercadoria ou um serviço.
Isso porque, é impossível comercializar o sexo sem
comercializar a pessoa. A própria mercadoria (corpo) é o meio de produção (corpo).
Então, não se trata da venda da força de trabalho, mas da escravização do corpo
da mulher que se transforma em próprio objeto mediante pagamento. A
regulamentação da prostituição como profissão corrobora com a degradação do
capitalismo, na busca desenfreada para explorar e obter lucros, onde tudo possa
ser comercializado, inclusive, as relações sociais. Neste caso, na ampla
maioria das vezes, as mulheres sequer têm o direito de escolher, já que a
necessidade de sobrevivência se impõe ao desejo de se prostituir.
Não se trata de uma posição moralista contra quem assim o
deseje. Trata-se de ser contra um sistema que exclui as mulheres, que as joga
em uma situação de pobreza extrema e que, diante da ausência de condições de
vida, escraviza seu corpo, naturaliza o machismo e faz desse comércio um
negócio lucrativo para os grandes capitalistas.
Em um contexto de violência cotidiana a que as mulheres
estão submetidas, o que está colocado é a necessidade de mecanismos de proteção
e defesa das mulheres que estão em situação de prostituição. A solidariedade de
todas as entidades da classe trabalhadora e a luta contra a violência policial
a que estão submetidas são fundamentais. Assim como a cobrança dos governos de
medidas que deem condições reais a estas mulheres de decidirem sobre a sua
própria vida. Isso só é possível com alternativas que lhes assegurem condições
de emprego e renda, educação, saúde, moradia e proteção social.
O projeto 4.211/12,
portanto, é um retrocesso ao legalizar mecanismos que garantam a exploração
sexual e a prostituição como mais um comércio dentro da lógica capitalista. Não
concordamos com ele. Não concordamos que o capitalismo se aproveite do corpo
das mulheres para lucrar. Defendemos as mulheres em situação de prostituição e
queremos que sejam donas de seus corpos. Para isso, no entanto, são necessárias
condições concretas que possam livrá-las não só da violência policial, mas da
violência desse sistema que lhes reserva opressão e exploração.
Fonte: Brasil de Fato
Ana Pagu é psicóloga
e Raíza Rocha é Jornalista. Fazem parte do Movimento Mulheres em Luta (MML),
filiado à CSP Conlutas. O movimento reúne jovens e mulheres trabalhadoras.(
http://mulheresemluta.blogspot.com.br/)
Um comentário:
A pobreza ,a falta de outras oportunidades e perspectivas, são fatores que levam muitas mulheres à prostituição.Na prática, a mulher inserida nesse contexto padece bastante.Torna-se mercadoria, torna-se "coisa".Os homens -clientes ou não- em sua maioria, não a respeitam. O que o Brasil precisa mesmo é de justiça social e políticas mais abrangentes em benefício das mulheres.
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