À
esquerda, imagem do filme inspirado em uma obra de Salas. À direita, Edith
Napoleon, a prostituta nigeriana assassinada
Durante um ano e meio, o jornalista Antonio Salas investigou
o tráfico de mulheres e meninas na Espanha. Seu trabalho, convertido em livro e
filme, serviu de base para a instauração de processos judiciais e condenação de
criminosos. Entenda como funciona o tráfico de pessoas.
Antonio Salas é o pseudônimo de um jornalista espanhol de 40
anos. Especialista em reportagens investigativas, ele vem fazendo sucesso como
escritor e documentarista desde o início dos anos 2000. Provas colhidas por
Salas, especialmente com o uso de câmera oculta, serviram de base para a
instauração de processos judiciais e condenações de criminosos envolvidos
principalmente com grupos neonazistas e traficantes de seres humanos. Entre os
livros publicados pelo jornalista, estão: “Diario de un skin” (2003), “El año
que trafiqué con mujeres” (2004) e “El palestino” (2010). A seguir, os
principais trechos da entrevista concedida por Salas à Marie Claire Online.
Marie Claire - Por que você decidiu investigar o tráfico de mulheres e
meninas?
Antonio Salas - Não
houve nenhuma razão especial. Antes de me infiltrar, assim como todos os
homens, eu tinha muitos preconceitos sobre o mundo da prostituição. Mas depois
de um ano e meio vivendo no meio de mulheres e meninas que foram traficadas
para exploração sexual, todos os meus preconceitos desmoronaram. Apesar de
alguns de meus outros trabalhos – como a infiltração no terrorismo
internacional e entre os skinheads – terem sido mais complexos, caros e
perigosos, este foi o mais traumático. Talvez por isso aborde este assunto em
meu próximo livro. Mas a partir de outro ângulo. A prostituição está por trás
de todo o nosso sistema.
MC - Durante as investigações,
você encontrou muitas brasileiras traficadas?
AS - Muitas. O Brasil
é um dos melhores fornecedores de mulheres traficadas para bordéis espanhóis.
Assim como para os italianos, alemães, franceses ou ingleses. Em casos graves
de prostituição, como o de Riviera e Saratoga, ou da Operação Carioca, a grande
maioria das mulheres prostituídas era brasileira. Andrea, a primeira garota que
secretamente ajudei a escapar de uma boate pertencente à ANELA, a infame
federação espanhola de bordéis, era uma modelo de São Paulo.
MC - Por que considera esse o seu trabalho mais traumático?
AS - Confesso que me
sinto envergonhado de ter procurado ficar amigo de prostitutas para que elas me
apresentassem seus cafetões. Cheguei mais longe do que esperava. Hoje, no
entanto, posso dizer que a maioria das minhas melhores amigas foi prostituta.
Conheci suas histórias mais íntimas e pessoais, como quando e por que entraram
na prostituição. Todas as histórias que conheci são brutais, terríveis e
autodestrutivas. Conheci centenas de prostitutas, de acompanhantes de luxo às
de rua, e vi que o que as diferencia basicamente é o preço que cobram. Por trás
da prostituição, cada uma delas tem uma história pessoal brutal.
À esquerda, imagem do filme inspirado em uma obra de Salas.
À direita, Edith Napoleon, a prostituta nigeriana assassinada (Foto:
Reprodução)
MC - Como foi a infiltração?
AS - Primeiro fiz um
treino teórico exaustivo, li muito e participei de conferências e cursos sobre
tráfico de seres humanos. Também fui à polícia, conversei com feministas e
associações de apoio a prostitutas. Depois veio a parte mais difícil: criar a
identidade de um dono de bordel de Marbella e Bilbao que procurava meninas para
trabalhar.
MC - Quanto tempo passou infiltrado?
AS - Cerca de um ano
e meio. Em seguida, forneci as provas que recolhi para a polícia, que fez
algumas prisões. Poder estar presente e registrar a captura de pessoas como o
cafetão e pugilista nigeriano Prince Sonny e toda a rede ele liderava em Múrcia
foi uma gratificação a mais que obtive neste trabalho.
MC - Você chegou a traficar mulheres e meninas?
AS - Este era o meu
disfarce. Um “honesto empresário” dono de dois bordéis que buscava mulheres e
meninas. Cheguei a negociar a compra de uma romena por 8 mil euros na Galícia,
de uma nigeriana e seu filho de 2 anos por 17 mil dólares em Múrcia e até mesmo
de meninas virgens mexicanas em Madrid, por 21 mil dólares cada. Se antes disso
alguém tivesse me dito que na Espanha é possível comprar e vender mulheres e
meninas para exploração sexual, eu não teria acreditado. Se eu não filmasse
minhas infiltrações, compreenderia caso as pessoas não acreditassem em mim.
MC - Essas negociações foram concluídas?
AS - Não. Gravei as
negociações, mas não efetivei as compras. Jornalistas investigativos, que fazem
infiltrações como eu, podem chegar a um limite legal. Se eu ultrapassasse este
limite, não poderia denunciar os crimes.
MC - Os traficantes suspeitaram quando você não efetivou os negócios?
AS - Percebi que era
hora de terminar esta infiltração quando, durante um encontro, um traficante
disparou uma pistola 9mm e uma bala me atingiu de raspão. Vi que estava
abusando da sorte, que era hora de parar e escrever o livro.
MC - Foi ameaçado de morte?
AS - Isto é inerente
a este tipo de jornalismo. Não se pode participar de um julgamento, como
testemunha protegida pela acusação, e achar que os condenados ficarão
agradecidos. Ameaças de morte são constantes. De qualquer forma, um jornalista
nunca se acostuma com isso. A última que recebi foi há alguns dias e partiu de
grupos armados bolivarianos partidários de Hugo Chávez. Eles me condenaram à
morte por causa da publicação de “O Palestino”. Durante as últimas eleições na
Venezuela, o comandante dos Tupamaros, que é muito próximo das FARC e do ETA,
voltou a ratificar minha sentença de morte na imprensa latino-americana.
MC - Como funcionam as redes de tráfico?
AS - A maioria das
meninas é aliciada em seus países de origem. Locais com poucos recursos ou que
tenham passado por graves crises econômicas – como Nigéria, Brasil, Romênia,
Argentina, Marrocos e Bolívia – são grandes celeiros para os traficantes. Eles
se oferecem para pagar passagem e estadia. Em troca, elas assumem uma dívida
que vai de 3 mil a 6 mil euros. Só quando chegam à Espanha, descobrem que devem
pagar outras despesas, como alimentação e vestuário. Isso faz com que a dívida,
em vez de diminuir, só aumente. Elas também são obrigadas a pagar, por exemplo,
multas quando chegam atrasadas à boate ou por se recusar a atender um ciente.
Os três meses de visto expiram, elas se tornam imigrantes ilegais e ficam
totalmente nas mãos de cafetões. Ocorrem espancamentos, extorsões e chantagens.
Ou seja: elas entram na prostituição, mas nunca conseguem sair.
MC - As mulheres acham que vão trabalhar em algo que não seja a
prostituição?
AS - A maioria sabe
no que vai trabalhar, mas acredita que na Europa dinheiro nasce em árvore e que
em poucas semanas poderão quitar a dívida com os traficantes e começar a mandar
dinheiro para a família. Quando a mulher não sabe que o trabalho que a espera
não tem nada a ver com o de dançarina, garçonete ou empregada domésticas, como
lhe haviam prometido, é muito mais traumático. Blanca, uma romena que conheci,
acreditava que trabalharia como dançarina. Quando entrou na boate, os cafetões
disseram que guardariam seu passaporte para que não o perdesse. Ela percebeu do
que se tratava e fugiu pulando a janela. Mas não conhecia ninguém, não falava
espanhol e não tinha um euro. Passou semanas nas ruas, pegando comida do lixo e
dormindo em parques. Quando a fome e o frio apertaram demais, ela voltou para a
boate. Resignou-se.
MC - Como elas são forçadas a se prostituir?
AS - É necessário
fazer uma distinção entre as espanholas, que vivem legalmente, e as
estrangeiras, que representam mais de 90% das prostitutas que atuam na Espanha.
Antes da crise, período em que estive infiltrado, as espanholas entravam na
prostituição por causa de algum vício, depois de sofrer um trauma, desilusão
amorosa ou de tentar suicídio. Autodestruição quase sempre está presente nesses
casos. Com as mulheres traficadas, há fatores extras. Muitos deixam filhos em
seus países de origem e todas têm família. Acreditam que a Europa é um paraíso
onde ganharão muito dinheiro e poderão ajudar os parentes com seu sacrifício. A
realidade, no entanto, é que elas não sabiam o que as esperava.
MC - Por que não denunciam os traficantes?
AS - Primeiro por
medo. O medo é a ferramenta de trabalho dos cafetões. Os nigerianos utilizam
vodu, os do Leste costumam espancá-las e os latino-americanos fazem extorsão.
Todas sabem que suas famílias – filhos, pais, irmãos e etc. – são a garantia de
que pagarão a dívida e não denunciarão os criminosos. Elas também não denunciam
por vergonha. Prostitutas vivem num mundo de mentiras e segredos, dispostas a
fazer qualquer coisa para que suas famílias não descubram o que realmente fazem
na Espanha. Esse medo as acompanha durante a vida toda. Tenho amigas que, mesmo
anos depois de terem deixado a prostituição, foram extorquidas e chantageadas p
ara não terem o passado revelado a vizinhos ou familiares.
MC - Traficantes de pessoas geralmente estão envolvidos com outros
crimes?
AS - Estão. Todos os
cafetões que conheci participavam de outros delitos relacionados ao crime
organizado. Da corrupção política ao narcotráfico, passando por golpes
imobiliários, falsificação de dinheiro e tráfico de armas e de drogas. No
final, todo mundo acaba comemorando seus negócios em um bordel. Fornecedores de
mulheres para políticos, empresários e criminosos endinheirados terminam
estreitando laços e entram no negócio.
MC - Qual é o perfil dos traficantes?
AS - A maior parte
dos traficantes é homem. Há grandes e complexas organizações. Mas também
existem muitas quadrilhas compostas por três ou quatro amigos que traficam
pequenos grupos de mulheres e meninas, as exploram durante anos antes de
aliciar outras vítimas. O mais terrível foi ter conhecido muitas mulheres que
foram prostituídas e depois entraram no negócio aliciando primas, amigas e
vizinhas.
MC - Por que é tão difícil investigar o tráfico humano?
AS - Porque a
prostituição é uma modalidade de crime organizado socialmente aceita. Ainda
existem idiotas que dizem que a prostituição é a profissão mais antiga do
mundo. Os clientes que pagam por esse serviço também são culpados pelo tráfico
de mulheres e meninas. Por outro lado, a crise econômica fez com que milhares
de espanholas e mulheres de outros países europeus recorressem à prostituição
por desespero e falta de recursos. Tanto que o número de anúncios de
prostitutas nos jornais espanhóis se multiplicou. Há muito mais mulheres
prostituídas agora do que antes. Algo, obviamente, comemorado pelos clientes.
MC - Seu trabalho teve impacto na vida das vítimas?
AS - Depois de fazer
um documentário para a TV com as gravações obtidas com câmera oculta e de
publicar o livro, recebi cartas de dezenas e dezenas de mulheres que decidiram
abandonar a prostituição. Claro que essas cartas foram escritas por espanholas
que tinham poder de escolha. Antes da crise, 94% das mulheres prostituídas na
Espanha eram estrangeiras e foram traficadas. Não tinham, portanto, opção. De
todo modo, acho que o mais importante foi ter recebido dezenas de cartas de
homens dizendo que não recorreriam mais a prostitutas.
MC - Quais histórias te impressionaram mais?
AS - Difícil dizer.
Uma delas foi a de Suzy, uma nigeriana de 21 anos que Prince Sonny tentou me
vender em Múrcia, junto com o filho de 2 anos. Como todas as nigerianas, Suzy
chegou à Espanha pela rota terrestre. Cruzou o Saara a pé, viu muitas colegas
morrerem até chegar ao Marrocos. Depois entrou de barco na Espanha. Outra foi a
de Blanca, uma romena grávida de 8 meses que trabalhava numa boate em Zaragoza
e dizia nunca ter atendido tantos clientes antes. Ou Priscilla, uma bela
polonesa, que vi posteriormente em programas de celebridades na TV. Ou Lara,
outra romena, que acabou matando seu cafetão. Ou Edit, nigeriana que foi esquartejada
por um cliente. Ou Maria, a primeira espanhola que escreveu para me dizer que
deixou a prostituição depois de ler meu livro. Essa menina me fez pensar que
todo medo, angústia e solidão que vivi valeram à pena. Algumas dessas histórias
estão no filme baseado no meu livro e também no documentário.
MC - Quem financia suas investigações?
AS - Meus leitores,
por isso eles são as únicas pessoas a quem devo fidelidade. “Diário de um skin”
foi o livro de não-ficção mais vendido em 2002, o que me permitiu total
independência para financiar a investigação sobre a escravidão branca. O livro
sobre tráfico de mulheres financiou a pesquisa sobre terrorismo internacional.
E os ingressos de “O Palestino” financiaram a investigação que estou terminando
agora. Isto me permite ter independência e liberdades absolutas.
MC - O que investiga atualmente?
AS - Seria pouco
prudente dar pistas antes de a investigação ser concluída. Mas posso dizer que
está relacionada à fonte de todos os problemas que estamos enfrentando
atualmente: a corrupção.
Fonte: Marie Claire
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