segunda-feira, 4 de março de 2013

“O Brasil é um dos melhores fornecedores de mulheres traficadas para bordéis espanhóis”

À esquerda, imagem do filme inspirado em uma obra de Salas. À direita, Edith Napoleon, a prostituta nigeriana assassinada
Durante um ano e meio, o jornalista Antonio Salas investigou o tráfico de mulheres e meninas na Espanha. Seu trabalho, convertido em livro e filme, serviu de base para a instauração de processos judiciais e condenação de criminosos. Entenda como funciona o  tráfico de pessoas.


Antonio Salas é o pseudônimo de um jornalista espanhol de 40 anos. Especialista em reportagens investigativas, ele vem fazendo sucesso como escritor e documentarista desde o início dos anos 2000. Provas colhidas por Salas, especialmente com o uso de câmera oculta, serviram de base para a instauração de processos judiciais e condenações de criminosos envolvidos principalmente com grupos neonazistas e traficantes de seres humanos. Entre os livros publicados pelo jornalista, estão: “Diario de un skin” (2003), “El año que trafiqué con mujeres” (2004) e “El palestino” (2010). A seguir, os principais trechos da entrevista concedida por Salas à Marie Claire Online.
  
Marie Claire - Por que você decidiu investigar o tráfico de mulheres e meninas?
 Antonio Salas - Não houve nenhuma razão especial. Antes de me infiltrar, assim como todos os homens, eu tinha muitos preconceitos sobre o mundo da prostituição. Mas depois de um ano e meio vivendo no meio de mulheres e meninas que foram traficadas para exploração sexual, todos os meus preconceitos desmoronaram. Apesar de alguns de meus outros trabalhos – como a infiltração no terrorismo internacional e entre os skinheads – terem sido mais complexos, caros e perigosos, este foi o mais traumático. Talvez por isso aborde este assunto em meu próximo livro. Mas a partir de outro ângulo. A prostituição está por trás de todo o nosso sistema.
 MC - Durante as investigações, você encontrou muitas brasileiras traficadas?
 AS - Muitas. O Brasil é um dos melhores fornecedores de mulheres traficadas para bordéis espanhóis. Assim como para os italianos, alemães, franceses ou ingleses. Em casos graves de prostituição, como o de Riviera e Saratoga, ou da Operação Carioca, a grande maioria das mulheres prostituídas era brasileira. Andrea, a primeira garota que secretamente ajudei a escapar de uma boate pertencente à ANELA, a infame federação espanhola de bordéis, era uma modelo de São Paulo.
MC - Por que considera esse o seu trabalho mais traumático?
 AS - Confesso que me sinto envergonhado de ter procurado ficar amigo de prostitutas para que elas me apresentassem seus cafetões. Cheguei mais longe do que esperava. Hoje, no entanto, posso dizer que a maioria das minhas melhores amigas foi prostituta. Conheci suas histórias mais íntimas e pessoais, como quando e por que entraram na prostituição. Todas as histórias que conheci são brutais, terríveis e autodestrutivas. Conheci centenas de prostitutas, de acompanhantes de luxo às de rua, e vi que o que as diferencia basicamente é o preço que cobram. Por trás da prostituição, cada uma delas tem uma história pessoal brutal.

À esquerda, imagem do filme inspirado em uma obra de Salas. À direita, Edith Napoleon, a prostituta nigeriana assassinada (Foto: Reprodução)

MC - Como foi a infiltração?
 AS - Primeiro fiz um treino teórico exaustivo, li muito e participei de conferências e cursos sobre tráfico de seres humanos. Também fui à polícia, conversei com feministas e associações de apoio a prostitutas. Depois veio a parte mais difícil: criar a identidade de um dono de bordel de Marbella e Bilbao que procurava meninas para trabalhar.

MC - Quanto tempo passou infiltrado?
 AS - Cerca de um ano e meio. Em seguida, forneci as provas que recolhi para a polícia, que fez algumas prisões. Poder estar presente e registrar a captura de pessoas como o cafetão e pugilista nigeriano Prince Sonny e toda a rede ele liderava em Múrcia foi uma gratificação a mais que obtive neste trabalho.

MC - Você chegou a traficar mulheres e meninas?
 AS - Este era o meu disfarce. Um “honesto empresário” dono de dois bordéis que buscava mulheres e meninas. Cheguei a negociar a compra de uma romena por 8 mil euros na Galícia, de uma nigeriana e seu filho de 2 anos por 17 mil dólares em Múrcia e até mesmo de meninas virgens mexicanas em Madrid, por 21 mil dólares cada. Se antes disso alguém tivesse me dito que na Espanha é possível comprar e vender mulheres e meninas para exploração sexual, eu não teria acreditado. Se eu não filmasse minhas infiltrações, compreenderia caso as pessoas não acreditassem em mim.

MC - Essas negociações foram concluídas?
 AS - Não. Gravei as negociações, mas não efetivei as compras. Jornalistas investigativos, que fazem infiltrações como eu, podem chegar a um limite legal. Se eu ultrapassasse este limite, não poderia denunciar os crimes.

MC - Os traficantes suspeitaram quando você não efetivou os negócios?
 AS - Percebi que era hora de terminar esta infiltração quando, durante um encontro, um traficante disparou uma pistola 9mm e uma bala me atingiu de raspão. Vi que estava abusando da sorte, que era hora de parar e escrever o livro.

MC - Foi ameaçado de morte?
 AS - Isto é inerente a este tipo de jornalismo. Não se pode participar de um julgamento, como testemunha protegida pela acusação, e achar que os condenados ficarão agradecidos. Ameaças de morte são constantes. De qualquer forma, um jornalista nunca se acostuma com isso. A última que recebi foi há alguns dias e partiu de grupos armados bolivarianos partidários de Hugo Chávez. Eles me condenaram à morte por causa da publicação de “O Palestino”. Durante as últimas eleições na Venezuela, o comandante dos Tupamaros, que é muito próximo das FARC e do ETA, voltou a ratificar minha sentença de morte na imprensa latino-americana.

MC - Como funcionam as redes de tráfico?
 AS - A maioria das meninas é aliciada em seus países de origem. Locais com poucos recursos ou que tenham passado por graves crises econômicas – como Nigéria, Brasil, Romênia, Argentina, Marrocos e Bolívia – são grandes celeiros para os traficantes. Eles se oferecem para pagar passagem e estadia. Em troca, elas assumem uma dívida que vai de 3 mil a 6 mil euros. Só quando chegam à Espanha, descobrem que devem pagar outras despesas, como alimentação e vestuário. Isso faz com que a dívida, em vez de diminuir, só aumente. Elas também são obrigadas a pagar, por exemplo, multas quando chegam atrasadas à boate ou por se recusar a atender um ciente. Os três meses de visto expiram, elas se tornam imigrantes ilegais e ficam totalmente nas mãos de cafetões. Ocorrem espancamentos, extorsões e chantagens. Ou seja: elas entram na prostituição, mas nunca conseguem sair.

MC - As mulheres acham que vão trabalhar em algo que não seja a prostituição?
 AS - A maioria sabe no que vai trabalhar, mas acredita que na Europa dinheiro nasce em árvore e que em poucas semanas poderão quitar a dívida com os traficantes e começar a mandar dinheiro para a família. Quando a mulher não sabe que o trabalho que a espera não tem nada a ver com o de dançarina, garçonete ou empregada domésticas, como lhe haviam prometido, é muito mais traumático. Blanca, uma romena que conheci, acreditava que trabalharia como dançarina. Quando entrou na boate, os cafetões disseram que guardariam seu passaporte para que não o perdesse. Ela percebeu do que se tratava e fugiu pulando a janela. Mas não conhecia ninguém, não falava espanhol e não tinha um euro. Passou semanas nas ruas, pegando comida do lixo e dormindo em parques. Quando a fome e o frio apertaram demais, ela voltou para a boate. Resignou-se.

MC - Como elas são forçadas a se prostituir?
 AS - É necessário fazer uma distinção entre as espanholas, que vivem legalmente, e as estrangeiras, que representam mais de 90% das prostitutas que atuam na Espanha. Antes da crise, período em que estive infiltrado, as espanholas entravam na prostituição por causa de algum vício, depois de sofrer um trauma, desilusão amorosa ou de tentar suicídio. Autodestruição quase sempre está presente nesses casos. Com as mulheres traficadas, há fatores extras. Muitos deixam filhos em seus países de origem e todas têm família. Acreditam que a Europa é um paraíso onde ganharão muito dinheiro e poderão ajudar os parentes com seu sacrifício. A realidade, no entanto, é que elas não sabiam o que as esperava.


MC - Por que não denunciam os traficantes?
 AS - Primeiro por medo. O medo é a ferramenta de trabalho dos cafetões. Os nigerianos utilizam vodu, os do Leste costumam espancá-las e os latino-americanos fazem extorsão. Todas sabem que suas famílias – filhos, pais, irmãos e etc. – são a garantia de que pagarão a dívida e não denunciarão os criminosos. Elas também não denunciam por vergonha. Prostitutas vivem num mundo de mentiras e segredos, dispostas a fazer qualquer coisa para que suas famílias não descubram o que realmente fazem na Espanha. Esse medo as acompanha durante a vida toda. Tenho amigas que, mesmo anos depois de terem deixado a prostituição, foram extorquidas e chantageadas p ara não terem o passado revelado a vizinhos ou familiares.

MC - Traficantes de pessoas geralmente estão envolvidos com outros crimes?
 AS - Estão. Todos os cafetões que conheci participavam de outros delitos relacionados ao crime organizado. Da corrupção política ao narcotráfico, passando por golpes imobiliários, falsificação de dinheiro e tráfico de armas e de drogas. No final, todo mundo acaba comemorando seus negócios em um bordel. Fornecedores de mulheres para políticos, empresários e criminosos endinheirados terminam estreitando laços e entram no negócio.

MC - Qual é o perfil dos traficantes?
 AS - A maior parte dos traficantes é homem. Há grandes e complexas organizações. Mas também existem muitas quadrilhas compostas por três ou quatro amigos que traficam pequenos grupos de mulheres e meninas, as exploram durante anos antes de aliciar outras vítimas. O mais terrível foi ter conhecido muitas mulheres que foram prostituídas e depois entraram no negócio aliciando primas, amigas e vizinhas.


MC - Por que é tão difícil investigar o tráfico humano?
 AS - Porque a prostituição é uma modalidade de crime organizado socialmente aceita. Ainda existem idiotas que dizem que a prostituição é a profissão mais antiga do mundo. Os clientes que pagam por esse serviço também são culpados pelo tráfico de mulheres e meninas. Por outro lado, a crise econômica fez com que milhares de espanholas e mulheres de outros países europeus recorressem à prostituição por desespero e falta de recursos. Tanto que o número de anúncios de prostitutas nos jornais espanhóis se multiplicou. Há muito mais mulheres prostituídas agora do que antes. Algo, obviamente, comemorado pelos clientes.

MC - Seu trabalho teve impacto na vida das vítimas?
 AS - Depois de fazer um documentário para a TV com as gravações obtidas com câmera oculta e de publicar o livro, recebi cartas de dezenas e dezenas de mulheres que decidiram abandonar a prostituição. Claro que essas cartas foram escritas por espanholas que tinham poder de escolha. Antes da crise, 94% das mulheres prostituídas na Espanha eram estrangeiras e foram traficadas. Não tinham, portanto, opção. De todo modo, acho que o mais importante foi ter recebido dezenas de cartas de homens dizendo que não recorreriam mais a prostitutas.

MC - Quais histórias te impressionaram mais?
 AS - Difícil dizer. Uma delas foi a de Suzy, uma nigeriana de 21 anos que Prince Sonny tentou me vender em Múrcia, junto com o filho de 2 anos. Como todas as nigerianas, Suzy chegou à Espanha pela rota terrestre. Cruzou o Saara a pé, viu muitas colegas morrerem até chegar ao Marrocos. Depois entrou de barco na Espanha. Outra foi a de Blanca, uma romena grávida de 8 meses que trabalhava numa boate em Zaragoza e dizia nunca ter atendido tantos clientes antes. Ou Priscilla, uma bela polonesa, que vi posteriormente em programas de celebridades na TV. Ou Lara, outra romena, que acabou matando seu cafetão. Ou Edit, nigeriana que foi esquartejada por um cliente. Ou Maria, a primeira espanhola que escreveu para me dizer que deixou a prostituição depois de ler meu livro. Essa menina me fez pensar que todo medo, angústia e solidão que vivi valeram à pena. Algumas dessas histórias estão no filme baseado no meu livro e também no documentário.


MC - Quem financia suas investigações?
 AS - Meus leitores, por isso eles são as únicas pessoas a quem devo fidelidade. “Diário de um skin” foi o livro de não-ficção mais vendido em 2002, o que me permitiu total independência para financiar a investigação sobre a escravidão branca. O livro sobre tráfico de mulheres financiou a pesquisa sobre terrorismo internacional. E os ingressos de “O Palestino” financiaram a investigação que estou terminando agora. Isto me permite ter independência e liberdades absolutas.

MC - O que investiga atualmente?
 AS - Seria pouco prudente dar pistas antes de a investigação ser concluída. Mas posso dizer que está relacionada à fonte de todos os problemas que estamos enfrentando atualmente: a corrupção.
Fonte: Marie Claire

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