Neste conto de fadas para mulheres adultas, uma ruga vale
uma alma.
Por Eliane Brum
Branca de Neve e o Caçador (Rupert Sanders, 2012), em cartaz
nos cinemas, deveria se chamar “Ravenna, a rainha má”. Interpretada pela
maravilhosa Charlize Theron, a mãe-madrasta-bruxa da princesa é o mais
interessante do filme, assim como as questões tão atuais que ela nos traz. E a
bela Charlize faz uma rainha inesquecível. Para não envelhecer, essa vilã dos
contos de fadas ultrapassa todos os limites e quebra todos os interditos. Uma
mulher da era a.CP (antes da cirurgia plástica), Ravenna suga a alma, a
juventude e a beleza das adolescentes e devora corações puros, que arranca com
suas unhas, enquanto chafurda na amargura.
O filme, para quem não sabe e não viu, busca resgatar o
conteúdo terrorífico das origens dos contos de fadas. Tudo o que hoje se
conhece com esse nome foi um dia histórias para adultos, nas quais canibalismo
e incesto eram ingredientes garantidos. Mantidas vivas pela tradição oral dos
camponeses medievais, as histórias eram contadas para entreter, mas não só. Os
contos nasceram e permaneceram como uma forma de lidar com os riscos da vida
real, num tempo em que os lobos uivavam no lado de fora e também no lado de
dentro, menos contidos pela cultura do que hoje.
Depois, a partir do final do século 17, com Charles
Perrault, culminando no século 19, com os Irmãos Grimm, os contos foram
compilados, escritos e depurados como histórias para crianças. Nós, que
nascemos no século XX, fomos alimentados por versões muito mais suaves e
palatáveis a uma época sensível, em que os pequenos são vistos como o
receptáculo tanto da inocência quanto do futuro. E, portanto, precisam ser
protegidos dos males do mundo e de seus semelhantes, assim como convencidos de
que sua “natureza” é boa e pura. Ainda que conheçamos, por experiência própria,
que o pior também nos habita desde muito, muito cedo. E seria melhor para todos
– e também para a vida em sociedade – poder olhar para ele de frente.
Branca de Neve registra algumas variações ao longo dos
séculos, até chegar ao clássico da Disney, de 1937, que se tornou referência
para a maioria de nós. Mas nada tão radical quanto uma versão de sua colega
Bela Adormecida, por exemplo, na qual a princesa é abusada pelo príncipe e
abandonada grávida. Muito menos como Chapeuzinho Vermelho, que talvez seja o
conto que revela com maior clareza a mudança de sensibilidade através dos
tempos.
Em uma das versões mais antigas, o lobo oferece à menina a
carne da avó fatiada numa bandeja como iguaria e o sangue da avó como vinho.
Depois de banquetear-se, Chapeuzinho é convidada a tirar a roupa. A cada peça
que a menina arranca em seu strip-tease, o Lobo grita, todo animado: “Atire-a
no fogo!”. Em seguida, a Chapeuzinho sem chapéu nem calcinha deita-se nua na
cama com o Lobo peludo. E é “devorada”. Nem Lars Von Trier faria melhor. Os
camponeses medievais terminavam a história ali. O final feliz veio muito, muito
depois.
No caso de Branca de Neve e o Caçador, os realizadores do
filme usaram os mais avançados recursos da tecnologia para construir imagens
belíssimas na tentativa de recuperar algo da atmosfera sombria. Mas não se
arriscaram a chegar sequer perto da violência de sentidos dos tataravôs dos
contos modernos, talvez porque o projeto tenha sido pensado como uma franquia.
O filme não perdeu, porém, a oportunidade de atualizar as questões que fizeram
a história sobreviver por tantos séculos e alimentar o imaginário de tantos
filhos de épocas diversas. E essa é a sua força.
Que questões são essas?
A relação entre mãe e filha, com a violência simbólica transposta em atos
concretos, já que a mãe-madrasta passa toda a história tentando matar a
filha-enteada que vai suplantá-la em juventude e beleza. O olhar de desejo do
pai-caçador, que a faz descobrir-se mulher na floresta “negra”, para onde foge
da mãe. Os vários desafios que enfrenta qualquer menina, seja a Branca de Neve
ou uma adolescente de hoje, para se tornar mulher. E que passam,
necessariamente, por se diferenciar da mãe. Quem quiser pensar mais sobre isso
– e vale muito a pena pensar mais sobre isso – pode procurar o excelente Fadas
no divã (Artmed, 2006), dos psicanalistas Diana e Mario Corso – um livro
fundamental para todos, um pouco mais para mães e pais.
Em Branca de Neve e o Caçador, os desafios enfrentados pela
princesa para virar mulher (e continuar viva) ganham soluções um pouco
diferentes das versões anteriores – e bem provocativas. Mas, só dessa vez, vou
deixar Branca de Neve do outro lado do espelho e me concentrar no reflexo da
rainha má. Charlize Theron é uma mãe-bruxa obcecada pela juventude e pela
beleza. Para ela, nenhum ato é horrendo demais se, ao final, ela ganhar uns
anos a mais com pele de pêssego. Assinalada por várias vidas de horror – já que
a bruxaria e o coração das mais jovens garantiu-lhe uma existência prolongada
–, ela não admite ter nenhuma marca do vivido. Toda a violência sofrida e
praticada, as mágoas, as decepções e as traições estão dentro dela. Mas no
corpo, naquilo que se oferece ao olhar do outro, ela é uma mulher sem marcas.
No filme, a rainha má assim é por ter sofrido no passado o
abuso de homens que, nas suas palavras, sugaram tudo dela e, quando ela começou
a envelhecer e a perder a beleza, a trocaram por uma mais jovem. Roteiro
prosaico de nossos dias, mas tanto na vida real como na ficção soa
inconsistente. Uma desculpa meio esfarrapada para justificar tanta destruição –
e autodestruição. Nestes momentos, em que evoca a suposta sina das mulheres e a
suposta voracidade dos homens, a rainha nos constrange com sua superficialidade
de almanaque. Mas não deixa de ser interessante observar que supostamente
também seria para o desejo dos homens que as mulheres do nosso tempo se
submetem ao inimaginável na tentativa de permanecerem jovens e belas. Será?
Um dos momentos mais interessantes do filme se dá no
encontro de Branca de Neve com uma comunidade de mulheres que, para se manterem
a salvo da sanha da rainha, fazem marcas no próprio rosto. Até as crianças têm
a face assinalada por cicatrizes sem história. Numa concepção de beleza em que
as marcas da vida estragam o rosto, essas mulheres só podiam sobreviver se
arruinassem a beleza – e, com ela, o interesse da rainha. É, portanto, no olhar
da rainha que está o desprezo pelo corpo assinalado pela passagem do tempo – e
não (apenas) no olhar dos homens. É só ao incorporar a recusa em envelhecer que
a rainha se torna de fato um objeto.
Alguma semelhança com nossa época? Me parece que toda. O
terror só é terror se houver estranhamento. Estranha-se aquilo que, no fundo, é
familiar. O terror é o conhecido que fingimos desconhecido, é nosso estranho
íntimo. Se fosse totalmente estranho, não captaria nossa atenção. É preciso ser
um estranho que ecoa no que estranhamos em nós. Ou um estranho que reconhecemos
em nós, mesmo sem jamais admitirmos conscientemente. Para isso serviram desde
sempre os contos de fadas, ao nos dar a possibilidade de lidar com nossos
fantasmas e medos através dos personagens, nossos outros arquetípicos. Nesse
sentido, a rainha má é um conto de fadas para mulheres adultas.
É fácil escandalizar-se com a louca obcecada pela juventude
que persegue as mais jovens, prontas a desbancá-la em beleza, como uma serial
killer gótica. Mas é menos fácil escandalizar-se com o número cada vez maior de
mulheres sem nenhum problema de saúde ou deformação que se submetem a uma
cirurgia na tentativa, ao final sempre ilusória, de eliminar as marcas da
passagem do tempo.
Para nós tornou-se corriqueiro, mas para alguém de outra
cultura ou de outro tempo, soaria como um filme de terror ser apagada por uma
anestesia e ser cortada por um bisturi. Sangue, gordura, fluidos. Tira um naco
de um lugar para botar em outro, implanta um corpo estranho em formato de bola
no peito, estica a pele do rosto com fio de ouro. Arrisca-se a morrer, apenas
para submeter-se ao padrão estético do momento ou apagar rugas que voltarão
mais cedo do que tarde. Conforme o lugar de onde se olha para essas cenas, hoje
banalizadas, é um filme dos mais aterrorizantes.
A diferença, com a rainha má, é que ela deu um jeito de que
as outras paguem o preço de sua incapacidade de suportar o envelhecer. Mas só
até certo ponto. Porque nem mesmo a sua mágica é suficiente para eliminar as
marcas dentro dela, não há feitiço capaz de apagar o vivido. E, povoada por
memórias que sangram sem a chance de virar cicatrizes, ela naufraga em
desgosto, a tal ponto que se torna difícil compreender por que, afinal, ela
quer tanto ser jovem e ser bela, se continua tão desgraçadamente infeliz com
sua existência.
Como o belo corpo e o belo rosto da rainha má, parece-me que
os corpos e os rostos flagelados de hoje são mais para serem olhados do que
tocados. Cortados, manipulados e emendados pelo bisturi do cirurgião, em geral
um homem, este corpo não é feito para se fundir com nenhum outro. É mais um
objeto que se oferece como imagem, apenas. Porque o toque sempre deixará uma
marca. O toque é sempre um risco. E, como para a rainha má, para muitas
mulheres é melhor não se arriscar a ser alcançada por um outro que verá além do
que é dado para ver, verá também as marcas que não podem ser apagadas. E fará
outras marcas, que também não poderão ser eliminadas. Viver, afinal, é ser
marcado e marcar.
O corpo e o rosto da rainha má não são para ninguém – nem
para si mesma, como ela parece se iludir. O espelho mágico, aquele que olha e
olha para além do que está na sua frente, é um dos grandes achados dessa
versão. Ao ser invocado, ele desprega-se da parede e materializa-se como uma
entidade masculina. Em vez de refletir a imagem externa da rainha, porém, ou
lhe mostrar o mundo além do castelo, o espelho dá voz à sua imagem interior, ao
avesso da rainha, ao lado de dentro. Vocaliza seus medos mais profundos e, de
certo modo, a autoriza a praticar seus crimes, mas é apenas um eco.
É um diálogo consigo mesma – e não com um outro o que
acontece nesse momento. A rainha má, desesperada por beleza e juventude, movida
por um desejo que ela diz ser do mundo masculino e não dela, não é refletida
nem mesmo pelo espelho. E, sem o olhar de um outro que nos reconheça, não há
como se saber. É assim que ela se perde, porque não há quem a encontre.
É no medo de se perder no outro que a rainha se perde de
fato. E, ao tentar matar Branca de Neve, na cena clássica da maçã envenenada, a
mãe-madrasta vai desferindo conselhos à filha-enteada. “Você sempre se perde
quando se deixa levar pelo amor”. E então, totalmente perdida, grita como uma
louca que não se escuta: “Você tem sorte de morrer antes de envelhecer”.
E fracassa. É claro que fracassa. Nós todos conhecemos o
final.
Fonte: Eliane Brum em Revista Epoca
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