Elas ocupam a posição de “chefe da casa” em quase metade dos
domicílios brasileiros. Elas trabalham e são as responsáveis pelo sustento
dessas famílias. E são essas mesmas mulheres que são alvo de discriminação no
mercado de trabalho, recebendo salários mais baixos que os dos homens.
Nem é preciso pegar a calculadora para fazer as contas: a
desvalorização da mão-de-obra feminina diz muito sobre a pobreza no Brasil. A
conclusão é da socióloga e coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas Sobre
a Mulher da UFMG, Merlise Matos, que critica também a divisão sexista das
profissões no Brasil.
Em comemoração ao Dia
Internacional da Mulher, o Minas Livre traz o tema para a entrevista da semana.
Além da questão do mercado de trabalho, Marlise Matos comenta a violência
contra as mulheres, a exposição delas na mídia e faz uma análise do governo
Dilma Rousseff.
ML - Por que a
violência contra a mulher continua sendo uma realidade ainda tão presente em
nossa sociedade?
MM - A sociedade brasileira é uma sociedade violenta. Eu
trabalhei alguns anos na Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro e vi
que os índices de criminalidade só aumentam ano a ano. Temos um padrão de
interação social em que as pessoas se comportam de maneira agressiva. A gente
expele uma imagem de um povo cordial, alegre, do Carnaval e essa não é a
verdadeira imagem do brasileiro. O que tem me preocupado muito é o crescimento
do assassinato de mulheres. Nós estamos no meio do julgamento do caso Bruno,
pelo assassinato da Eliza Samudio, e essa história em Minas Gerais é
absolutamente recorrente. Em Belo Horizonte não só está aumentando o relato dos
casos de violência contra a mulher, como também tem aumentado o número de
casos. As causas são múltiplas, mas eu destaco fundamentalmente uma cultura
machista, tradicional, conservadora que coloca as mulheres em condição de
objeto e não de sujeito. Isso ainda existe de uma maneira muito severa, muito
permanente e entranhada na cultura brasileira. De acordo com uma pesquisa feita
pelo Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública da UFMG, a cada 15
segundos uma mulher é espancada no Brasil. Nessa pesquisa, mais de 70% das
mulheres disseram que já foram vítimas de algum tipo de violência, não só a física.
A gente precisa de uma mudança de mentalidade. Os homens têm que deixar de agir
como donos dos corpos das mulheres e respeitá-las como ser humano.
ML- Existem outras formas de violência que não seja a física
e que talvez nem a própria mulher se dê conta de que está sofrendo?
MM – Sim. Nenhum um homem chega ao ponto de matar uma mulher
assim de imediato. Começa quando ele proíbe ela de usar uma determinada roupa,
a impede de ela ir em determinado lugar, recrimina porque ela está usando um
batom de uma certa cor. Algumas mulheres entendem isso como “olha como ele se
preocupa comigo, como ele gosta de mim, como ele tem ciúmes de mim”. E acham
que isso é uma coisa positiva, mas não é. Nenhum homem tem o direito de dizer
qual roupa a sua companheira deve ou não usar, porque a mulher tem direito
sobre o seu próprio corpo. Esse é um direito individual e inalienável. A pessoa
pode discordar, mas não pode proibir. Então a violência começa com esse tipo de
constrangimento, que é uma forma de violência simbólica. Outra forma de
violência moral são as humilhações. É muito frequente maridos que degradam as
mulheres na sua condição de mãe, dizendo que ela é uma mãe relapsa, que ela não
cozinha direito. Começa assim nessa violência verbal, moral, psicológica e quando
você vê já está tomando um tapa. Aí, do tapa você passa para uma briga, toma um
soco, uma facada e daí para o homicídio o passo é pequeno. É um processo
cíclico, pois é frequente que esse agressor vire para essa mulher, depois de
tê-la espancado, e diga “eu estou arrependido, por favor me perdoa”. Aí passa
um momento romântico, a relação se estabiliza novamente, passa dois ou três
meses e o ciclo se reinicia. E aí vem a pergunta que todo mundo faz: por que
elas continuam nesses relacionamentos? Boa parte delas tem uma dependência
econômica, mas elas também têm uma dependência emocional dessa relação, às
vezes porque têm filhos e a separação implicaria sofrimento para eles. Outra
questão importante é que a violência contra a mulher é um fenômeno democrático.
Ele não obedece a critérios raciais ou de classe social. As mulheres são
agredidas em todas as classes sociais.
ML – Como você avalia a exposição da mulher na mídia hoje?
MM - Se a gente vive numa cultura que é conservadora,
tradicional, machista e patriarcal, a mídia expressa essa mesma cultura. Ela
não está fora desse contexto. Então é recorrente a gente enxergar na mídia um
olhar estereotipado sobre a mulher. Ou elas são as donas de casa que cozinham,
são perfeitas, mães adoráveis. Ou são as mega-profissionais, ultra-realizadas e
para isso se dedicara, se esforçaram, conseguiram por conta própria. E tem
ainda a mulher corpo, que é essa coisa do peito, da bunda, essa questão do
canibalismo erótico que o Carnaval se incumbe de difundir. Os três estereótipos
são reducionistas daquilo que a mulher realmente é. É uma forma minimalista de
você dar sentido a uma coisa muito maior, muito mais plural, diversa. A mídia
não reflete essa diversidade, ainda está muito amarrada a esses estereótipos.
Tem um processo em curso de mudança nesse sentido. Por exemplo, é um dos eixos
do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres uma mídia não sexista, mas eu
não acho que estamos andando tão rápido nesse contexto como a gente andou em
termos de políticas públicas para enfrentamento da violência contra a mulher. É
óbvio que você precisa de alguma forma regular aquilo que é exposto para que as
nossas crianças não estejam sujeitas a um processo de socialização
estereotipado, rasteiro, reducionista.
ML – A inserção da mulher no mercado de trabalho melhorou ao
longo dos últimos anos?
MM - São duas grandes conquistas do espaço público que as
mulheres protagonizaram ao longo no século 19 e consolidadas no século 20: a
entrada no mundo da escolarização e no mercado de trabalho. Essas duas coisas
têm afinidade: para que as mulheres possam entrar no mundo do trabalho elas têm
que se escolarizar. Essa foi uma das primeiras bandeiras do Feminismo que
reivindicou o acesso ao processo educacional, que era segredado aos homens.
Portanto, sim, as mulheres entraram para escola e isso significa que elas estão
mais qualificadas para o mundo do trabalho. Mas isso quer dizer que nós
resolvemos todos os problemas? Não, porque essas mulheres vão para a escola e
se formam nas profissões segmentadas. Você tem aquela claríssima divisão sexual
do trabalho e da profissionalização em nível superior. As mulheres estão onde?
Nas profissões vinculadas ao cuidado: psicologia, educação, fisioterapia,
enfermagem, serviço social. E os homens estão onde? Na física, na matemática,
nas engenharias e por aí vai. É um curto-circuito que a gente continua
repetindo: você autorizou a entrada no público? Sim, mas não a qualquer
público. Eu acho que esse é um desafio gigante: você ter mulheres em todos os
segmentos e em todas as profissões.
A maior parte da população economicamente ativa no Brasil é
constituída de mulheres, mas a maior parte dessas mulheres está no trabalho
informal ou no emprego doméstico. Temos discriminação salarial concreta. A
média de salário da mulher negra é de 6 a 7% menor que o salário das mulheres
brancas e a diferença para os salários dos homens brancos é ainda maior. É
curioso observar que hoje você tem quase 40% dos domicílios brasileiros
chefiados exclusivamente por mulheres. Quase a metade dos domicílios são as
mulheres as provedoras, mas são as mesmas mulheres discriminadas no mercado de
trabalho. Isso diz muito ainda da pobreza no Brasil.
ML – De que forma a eleição de Dilma Rousseff marcou a luta
pela valorização da mulher no Brasil?
MM - Sem nenhuma dúvida eu digo que eleger, pela primeira
vez na história política desse país, uma mulher para a presidência da república
tem um valor social, político, econômico e simbólico. Mas eu acho que ela nos
prometeu mais do que cumpriu. Eu tenho acompanhado e é impressionante ver que a
Dilma não avançou da forma como nós acadêmicos, feministas e mulheres
esperávamos. No discurso de posse ela faz um discurso brilhante que deixou todo
mundo emocionado. Ela disse “as mulheres podem, estou aqui para honrar esse
lugar das mulheres brasileiras”, então a gente imaginou que esse fosse ser um
elemento centro de decisão do governo Dilma. Ela prometeu 30% do seu gabinete
constituído por mulheres, mas ela não fez isso. Ela trouxe muitas mulheres, mas
não conseguiu colocá-las em número expressivo. A Dilma colocou a primeira
mulher feminista à frente da Secretaria Especial de Políticas para Mulheres,
que é a Eleonora Menicucci, mas eu não tenho visto um protagonismo específico
dela. A Dilma foi fortemente cerceada por forças muito conservadoras e ela
acabou sendo capturada por isso. Os dois grandes programas da Dilma, Rede
Cegonha e Brasil Carinhoso, trazem à tona essa coisa da mulher reprodutora. Não
tenho nada contra programas de apoio à maternidade porque eu entendo que a
mulher materna. Mas a Dilma poderia ter tido iniciativas de políticas públicas
mais ricas e plurais. Não dá pra ser só isso. Não dá pra ser a primeira mulher
na Presidência da República Brasileira e só ter feito programas
sócio-assistenciais ligados a esse caráter familista e reprodutivista da
mulher.
ML – Qual a importância dos movimentos sociais na luta pela
valorização da mulher?
MM - Eles têm uma importância estratégica. O Estado
Brasileiro é patriarcal, não existe Estado neutro, isso é uma balela, uma
ficção. Portanto, como esse Estado com essas características patriarcais vai
ser transformado? Você tem duas possibilidades: de dentro pra fora, quando os
agentes do próprio Estado, reconhecendo essas características patriarcais,
fazem uma reforma. A outra direção é a pressão feita de fora para dentro. O
Estado tende a ser inercial, a manter-se no tempo e no espaço como sempre foi,
então a mudança de dentro pra fora é muito difícil. Dessa forma, a
transformação vinda dos movimentos sociais é estratégica. Belo Horizonte tem
movimentos muito organizados e as mulheres têm pressionado. No julgamento do
caso Bruno mesmo as mulheres de Contagem estavam lá se manifestando. É
necessário que os movimentos continuem usando essa estratégia de pressionar o Estado
Brasileiro para as transformações.
Fonte: Portal Minas Livre (Thaíne Belissa )
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