“A questão da escolha,
em todas as profissões, é algo muito relativo. Quem, em sã consciência, pode
dizer que uma menina em situação de miséria tenha feito uma boa escolha ao sair
de sua casa para trabalhar em casa de família na cidade grande, longe de seus
pais e sujeita a todo o tipo de abuso? A prostituição está ligada à exploração,
ao abuso infantil e ao tráfico humano, mas há muitas outras atividades ligadas
a isso. E são esses crimes que devem ser combatidos e punidos, não as
atividades extintas”.
Gosto muito de fazer perguntas, e já entrevistei algumas
pessoas aqui no bloguinho. Planejo realizar várias outras.
Sempre quis
entrevistar a Monique. Minha história com ela é a seguinte: pouco depois de eu
entrar no Twitter, em agosto de 2010, passei a ser seguida por uma moça (ok,
mais de uma) inteligente, carinhosa e divertida. Era a Monique. E, lógico,
comecei a segui-la também.
Aí, em setembro de
2011, a YouPix fez uma matéria sobre garotas de programa no Twitter, e perguntou
a alguns blogueirxs o que achavam delas. Eu fui uma das entrevistadas, e
respondi que não via nada de mais, que eram pessoas como todas as outras e
mereciam respeito, embora eu não seguisse nenhuma prostituta no Twitter. Então
a Monique chegou pra mim e quis saber: "Ué, e eu?". E eu, sempre a
última a saber: "Vc é prostituta?".
Desde então, fiquei
morrendo de vontade de entrevistá-la pro blog. Mas a danada sempre fugia das
minhas investidas. Até que ela publicou um excelente guest post no blog da
Cynara Menezes, outra pessoa que eu admiro, e eu fiquei com inveja. Como assim?
O que a Cynara tem que eu não tenho, fora uma reputação a zelar? Daí retomei a
ideia da entrevista com a Monique, e desta vez ela topou, pra minha felicidade.
Claro que a
entrevista ficou gigantesca, e terei que publicá-la em três posts. Este é o
primeiro. Perguntas mais "políticas" (tudo é político!), sobre
legalização da prostituição, ficaram mais pra frente, mas vamos chegar lá.
Não quero falar muito sobre a Monique porque acho que ela
fala (brilhantemente) por si. Basta saber que ela atua como prostituta em Porto
Alegre. Minhas perguntas estão em itálico/negrito, e as respostas dela, na
fonte habitual.
Eu: Como você prefere ser chamada na sua profissão: prostituta, garota
de programa, acompanhante de luxo, profissional do sexo, algum outro termo ou
nenhum desses?
Monique: Acho
agradável e sonoro usar meretriz, mas sempre que preciso falar de mim, e da
minha atividade, uso "prostituta". É interessante: o termo gera
reações fortes, muitos amigos e amigas pedem que eu não use, por que não me
veem "assim"... Não me veem como uma prostituta. O termo em si
carrega um peso imenso, um tom agressivo, de modo que às vezes acabo usando
"acompanhante" mesmo. Dispenso o "de luxo" por uma série de
questões que abordaremos no decorrer da entrevista.
A diversidade de
termos usados para definir nosso trabalho é impressionante. Descobri, semana
passada, que em alguns cantos do Paraná, por exemplo, usa-se
"polaca", em referência às moças polonesas (e de outras
nacionalidades) expulsas de casa e enviadas ao Brasil para a prostituição
(conta-se que das moças "desonradas" tosava-se os cabelos, pendurando-os depois num prego, e isso era
tudo o que a família guardava delas depois da expulsão -- polonesas, alemãs,
judias).
Essa diversidade semântica certamente não contribui para que
nos vejamos como "categoria". A maioria das garotas que atua através
da Internet não se vê como prostituta -- a prostituta seria aquela que exerce
seu trabalho nas ruas, ou em lugares "baratos". Do mesmo modo, a
prostituta de rua mantém certa distância das garotas de site, não as vê como
"putas de verdade". Essa falta de entender-se como grupo, como
classe, atrapalha bastante na hora de brigarmos por direitos e visibilidade.
Você pode me falar um pouco da sua experiência na prostituição? Como
você começou, há quanto tempo, quanto você cobra?
Comecei por
curiosidade. Estagiava num escritório de importação e exportação, ganhava menos
de um salário mínimo. Encontrei um anúncio por aí que me oferecia ganhos de um
salário mínimo e meio diários, não tive dúvidas. Cabe ressaltar que naquele
período o poder de compra do salário mínimo era ridículo e o desemprego uma
dura realidade. Mas muito antes disso eu já era fascinada pelo
"meio", pelas histórias que procurava conhecer, e pela ideia de sexo
com desconhecidos. Hoje, posso dizer que conheço bem o meio... Ocupei vários
"papéis" nele, mesmo o de cliente eventual, quando casada (algumas
poucas vezes contratei mulheres acompanhantes para casal. Nunca me interessei
em contratar a companhia de homens, sempre considerei desnecessário, a oferta
de sexo grátis e casual para mulheres é ampla. E não creio que me sentiria bem
pagando).
Estive "fora" por um bom tempo. E voltei. Por
razões bastante pessoais e nem todas ligadas diretamente à necessidade
financeira, voltei a atuar no ramo, desta vez de modo individual, como
prostituta. "Construí" a Monique conforme meu gosto e o que achava
mais adequado para o momento (2009). Teve um impacto extraordinário,
surpreendente. Fazia ensaios "conceituais", amadores mas de extremo
bom gosto, que passaram a ser imitados pelas colegas aqui no RS. Meu blog tinha
um sucesso extraordinário, acabei "ensinando" para muita gente como
tirar partido da internet em seu trabalho, indo muito além do MSN. Toda essa
coisa acabou de forma muito engraçada, com o surgimento de muitas candidatas à
Monique (loucura), que imaginavam que eu ganhava rios de dinheiro (vã ilusão).
No meio disso, tive muitas dúvidas sobre essa minha escolha.
Quem entende o que está fazendo sabe que as coisas não são leves. Procurei
ajuda na psicoterapia e, durante mais de um ano, fiquei meio que
"parada", atendendo apenas a clientes conhecidos. Procurei outros
caminhos, mas sentia essa jornada incompleta. Decidi por ficar "até o fim".
Deste momento em diante, fiz a volta, minhas fotos atuais são as mais clichê
possível, a forma como propagandeio os serviços também. Conheço a importância
da Monique-personagem, mudei o ambiente da coisa -- embora isso tenha sido um
"efeito colateral" não antecipado, não planejado.
Sempre tive dois interesses, o sexo e escrever, e,
atualmente, procuro separar mais as coisas do que fazia no início. Para isso,
passei a usar o Twitter mais como expressão do que eu penso e menos para a
promoção de uma personagem.
Cobro, hoje, menos do que considero adequado, e mais do que
a maioria. Rejeito a ideia de "elite" na prostituição -- é uma ideia
que glamuriza o que, em verdade, não possui glamour algum. O que quer que
pareça luxuoso por aqui é falso: podes frequentar bons hotéis, estar em festas
chiques, acompanhar em viagens maravilhosas -- mas nada daquilo é real, nada
daquilo é teu. Posso, em certo sentido, comparar isso ao trabalho da babá de
uma família de milionários: ela cuida de crianças, deve educá-las, mas não pode
amá-las, não pode se envolver. Tem seu conforto garantido enquanto está
empregada, enquanto é útil, mas pode ser dispensada a qualquer momento. Pode
desfrutar de viagens e algum luxo, mas sempre se mantém "em seu
lugar". Tem uma importância ilusória, seu papel naquela história, embora
pareça muitas vezes importante, é apenas coadjuvante. Nada disso lhe pertence,
essa não é a sua vida.
Para desestimular quem pense em entrar no ramo com a ilusão
do glamour, posso mesmo dizer que os melhores momentos, os de maior luxo, as
viagens mais interessantes, fiz enquanto fora do ramo. Isso que querem nos
"vender" como luxo na prostituição são, na verdade, pequenas
migalhas.
As pessoas mais próximas a você sabem que você é prostituta? Você já
sofreu algum tipo de discriminação ou risco?
Há uma certa aceitação social bem maior do que eu imaginava
em princípio, mas não suficiente para que eu me exponha excessivamente... Todas
as pessoas que são importantes pra mim sabem o que faço -- e é também para não
acabar prejudicando essas pessoas que eu procuro me preservar. O risco existe,
é constante.
Há uma curiosidade
muito grande sobre o tema também, bem maior do que em outros momentos. A
impressão que me passa é que há um certo desespero em justificar determinadas
atitudes da parte de algumas meninas, ou uma vontade maior de dar o passo... É
preocupante. Pode parecer estranho, mas eu sinto uma certa ilusão de quem está
de fora a respeito de como funcionam as coisas no mundo do sexo pago, e isso me
assusta.
Sobre discriminação,
já sofri, sim. Às vezes, não percebemos, ou deixamos pra lá, mas mesmo nos
motéis, que, em sua maioria, vivem da atividade das acompanhantes, somos
eventualmente discriminadas e tratadas de modo grosseiro. É só um exemplo
daquilo que acontece quotidianamente, mas nem quero me estender muito a esse
respeito. Cansa.
Você é muito ativa na internet,
tem milhares de seguidores no Twitter, e parece se relacionar bem com todo
mundo. Você não tem troll não? Não tem moralista que quer te converter? Como é
isso de participar de uma rede social sendo parte de uma profissão que muitas
vezes é mal vista pela sociedade?
O Twitter é uma plataforma muito rápida nas reações às
opiniões. Tem muita gente que começa a me seguir pensando que vai encontrar
algo tradicional, mulher pelada, twitcam, dancinha sexy... e encontra outra
coisa. E gosta. Ou não. Por outro lado, há muitas pessoas que começam a me
seguir, e interagir, que não se dão conta tão de imediato de que sou prostituta
[Nota minha: conheço alguém assim!].
A ideia da mulher
bonita, autônoma e de opinião embasada é revolucionária no Brasil atual. Pode
parecer loucura essa situação em pleno século XXI, mas não é. Quem dá abertura
para isso é a mídia com a hiper exposição e estereotipia das loiras e
popozudas, as quais não se permite que tenham conteúdo outro que não aquele
esperado. Obviamente existe espaço para algo diferente aí, mas a obtusidade
vigente não enxerga.
Isso me permite surpreender e fazer as coisas ao meu jeito,
moldar a relação com os seguidores de um modo que seja aceitável pessoal e
socialmente. É divertida, e também importante pra mim, essa interação. Foi um
modo de, por assim dizer, "sair do armário". Essa minha presença
virtual constante me tirou do isolamento em que estava, me fez muito bem,
aprendi muita coisa. Por outro lado, só uma pessoa bastante ingênua pensaria
que todos ali estão por admiração, carinho, amizade [Nota minha: também conheço
pessoas assim!]...
Há muita gente que me odeia me seguindo, cuidando meus
passos, ironizando minhas palavras. Aprendi com o tempo a não amplificar o
grito dos trolls, nem dar grande espaço pra quem nada de bom vê em mim. Quanto
ao "bullying" dos religiosos e conservadores, já foi bastante comum
acordar cedo, ligar o telefone e encontrar dezenas de mensagens me ameaçando
com o fogo do inferno ou me prometendo o perdão divino. Inferno e Céu, na minha
visão simplista, são aqui mesmo, e o perdão divino não me interessa. Não o
perdão desse deus deles, punitivo e sádico... Sei muito bem quem sou, o bem e o
mal que faço, e os ignoro.
Como é fazer sexo com alguém por quem você não sente tesão? Você
costuma recusar cliente se não vai com a cara dele?
Não faço sexo sem tesão. A ideia do "encontro às
cegas", onde farei sexo com alguém a quem nunca vi, me excita. Saber que
do outro lado da porta me espera alguém que, dentre as centenas de
acompanhantes que anunciam em sites aqui de Porto Alegre, me escolheu e ME
DESEJA, amplifica essa sensação. É meu modo particular de sentir essas coisas.
Certamente, não bate com a maneira como outras sentem...
Agora, quanto a recusar atendimento por que "não fui com a cara" do
cliente, considero isso inaceitável para quem tem um mínimo de consciência
sobre a atividade que escolheu exercer. Lida-se muito, e talvez principalmente,
com a auto-estima de PESSOAS. Seria lícito a um psicólogo recusar paciente por
conta de sua aparência, por exemplo? Ou um professor recusar-se a ensinar? Não.
É um compromisso que assumimos. Vejo assim.
No entanto, já recusei atendimento enquanto negociava ao
telefone... Clientes que usam termos chulos, uma conversa onde fica claro que
não haverá entendimento. Eu recuso. Dependendo eu trollo mesmo. Deve ser
surpreendente para eles, pois não acredito que seja algo com que estejam
acostumados.
É possível ter orgasmo com clientes? Você já fingiu? Os clientes
procuram uma estrela pornô na cama? E por que tantas vezes há esse requisito de
"não beijar"? Beijos são mais íntimos que sexo?
Há uma ideia geral
de que a prostituta deve abrir mão de seu prazer em detrimento do prazer do
outro. Isso precisa ser combatido, não é possível que se exija ou estimule que
alguém abra mão de seu prazer. Não entendo o sexo sem a busca do prazer. Sim,
eu tenho orgasmo com clientes. Não tenho orgasmos em todos os encontros, mas
procuro meu prazer em todos os encontros. Nunca fingi, nem pretendo.
Quanto a preferências, não se pode generalizar -- pessoas
são diferentes entre si. Há quem procure garotas com performance de atriz
pornô, há quem procure uma performance mais natural, há quem procure bom
papo...
Quanto a beijo, não há regras, não. Isso é lenda. Tenho
percebido em alguns anúncios e foruns o beijo como diferencial de mercado: as
garotas mais procuradas são as que beijam. Analisando as coisas com calma,
penso que essa ideia tenha tido origem no pensamento masculino, na ideia de que
"beijar puta é chupar pau por tabela, ou à óbvia rejeição em beijar homens
alcoolizados e de mau hálito, além de doenças respiratórias graves como a
tuberculose (lembremos de como a prostituição era exercida antigamente, em
lupanares ou recantos boêmios). Criou-se uma tradição, com um propósito claro.
Eu não vejo, nunca vi, beijo como algo mais íntimo que sexo. Não é.
Quais você diria que são as principais vantagens de atuar como
prostituta? E as desvantagens?
Pra uma pessoa tímida como eu, agendar encontros pela
internet é uma boa possibilidade de conhecer pessoas interessantes. Há quem
argumente que eu poderia, então, fazê-lo de graça. Bom, eu até poderia. Mas
precisaria encontrar outra forma de renda, e isso reduziria substancialmente o
tempo que posso dedicar a esses encontros, assim como minha disposição. Além do
mais, nenhum outro trabalho me daria a renda que me dá a prostituição. Não
tenho formação alguma, começar uma carreira em qualquer área agora seria
complicado pra mim... Tenho planos, estão em marcha, mas não implicam em saída
imediata da atividade. Essa é minha situação pessoal, eu escolhi viver assim.
Agora, isso muda de pessoa a pessoa.
Conheci muita gente nesse meio e sei que muitas escolhem essa
atividade sem avaliar corretamente o peso da opção que está fazendo.
Obviamente, o envolvimento com esse tipo de situação gera muitos problemas, a
maior parte deles criada pelo preconceito e condenação moral, fatores quase
insuperáveis. Há uma tensão constante em relação a serem
"descobertas" (como se fossem criminosas), há o assédio constante das
drogas, há o uso intenso de álcool como instrumento de facilitação das
relações.
No fim das contas,
entra-se para ficar um período, pagar os estudos, quitar dívidas, e acaba-se
ficando por muito tempo, décadas, muitas vezes. Uma minoria consegue atingir
seus objetivos. A prostituição acaba sendo uma "carreira" da qual só
se sai pela "aposentadoria compulsória", por conta da idade ou morte
(assassinatos de prostitutas por seus companheiros não são raridade), ou pela
via do casamento (não que eu acredite em casamento como caminho para
felicidade, mas é o que muitas buscam).
Na sua experiência, por que você acha que tantos homens procuram
prostitutas? Você tem uma opinião sobre boa parte dos seus clientes?
Pra muitos, o sexo
continua sendo aquela coisa misteriosa, aquele doce proibido, o prazer secreto.
É algo lúdico. E tem o fetiche do sexo pago, da profissional, da propaganda, da
novela, de Hollywood... Afinal, qual a racionalidade em se tomar Coca-Cola?
Engordar, ficar doente? Muitas mulheres também procuram isso em acompanhantes
(femininos ou masculinos). Eu entendo que esse lado lúdico do sexo deve ser
estimulado nas pessoas, pode ser visto como uma terapia alternativa. Assim é
com a maior parte de meus clientes.
Há também os deficientes, e os atendo com gosto, entendo
sexo como uma necessidade básica, e é inegável a dificuldade que tem um
deficiente para ter sexo com quem entende suas necessidades e limitações, e
lide bem com elas. Há os que considerem essa fugidinha como "a única
contravenção possível" em um mundo onde são constantemente cobrados. E há
os que querem apenas conversar -- muitos entendem a prostituta como uma
psicoterapeuta e eu, nesses casos, recomendo que procurem um analista, não
gosto dessa "mistura de funções", não me considero apta. Nem
interessada... Mas existem meninas que preferem o cliente falante e
perguntador, preferem matar o tempo do programa com conversa ao sexo em si.
Muita gente diz que prostituta vende o corpo, o que parece uma
afirmação realmente exagerada, já que o corpo continua sendo seu. Outras
pessoas corrigem e dizem que é o "aluguel" do corpo. Mas você afirma,
no excelente post que escreveu, que você não aluga seu corpo, e sim seu tempo.
Você poderia falar mais sobre essa distinção? E você acha que a maior parte dos
seus clientes faz essa distinção?
Consideramos, por evidente, que todo o trabalhador aluga seu
tempo e sua força de trabalho. Temos uma visão diferente em relação à
prostituta. E por quê? Porque ainda temos uma visão romântica do sexo, do
despir-se, do encontro. Porque ainda temos aquela visão arcaica, que eu combato
incessantemente, de que a prostituta deve abrir mão de seu prazer, de seu desejo,
em detrimento do desejo do outro. Mas eu vejo a cada dia mais acompanhantes
dizendo não àquilo que não desejam, enquanto percebo que mulheres que não fazem
sexo pago cedem cada vez mais em suas relações, estáveis ou casuais, para
agradar ao parceiro.
Transito pelos dois meios, recebo relatos todos os dias, e
sei bem do que estou falando. É falha, portanto, a ideia de quem contrata uma
prostituta está comprando um corpo e dele pode dispor como quiser. Para isso,
existem (e não estou ironizando) as bonecas infláveis e, sim, há gente que as
compra. Há um mercado em franca ascensão de bonecas cada vez mais realísticas.
Deste modo, posso dizer que talvez nem todo o homem que contrata uma prostituta
saiba exatamente o que quer, e aos clientes que ainda insistem na ideia de que
a prostituta vende o corpo eu recomendo enfaticamente que comprem uma boneca
dessas. Embora o investimento inicial seja bem maior, vão servir-lhes para uma
vida toda. Vida, a do comprador, sejamos claros. Mulheres de plástico não morrem.
Ainda sobre a ideia de alugar o tempo, lembro que todos os
encontros têm sua duração pré-determinada e que, no meu caso, não ultrapasso as
duas horas jamais. Também sou constantemente convidada para almoços, jantares,
cafés, viagens, shopping... Eu cobro por isso, a não ser nas raras
oportunidades em que eu mesma convido.
Essa é a maior ilusão
na qual caem as prostitutas menos conscientes, a de que irão receber vantagens
dos clientes. Muitas confusões desnecessárias começam assim, para os dois lados.
Prostitutas, cobrem sempre, que a "paixão" por vocês diminui
rapidinho. É uma maneira de se preservar, em realidade.
Você se assume feminista, certo? Você vê contradições em ser feminista
e ser prostituta, ou você não vê a exploração do corpo da mulher como uma das
características da prostituição? Ou você vê a prostituição como algo
empoderador pra mulher?
Sim, sou prostituta e feminista. Não vejo a prostituição
como a exploração do corpo da mulher, e isso já está claro na resposta
anterior. A publicidade é a exploração do (não apenas) corpo feminino para fins
comerciais, não a prostituição. Sim, é verdade que transito em um meio
extremamente machista, e enfrento muitas dificuldades por tentar impor meu modo
de pensar -- perseguições veladas ou nem tanto em foruns que tratam do assunto,
por exemplo. Não é uma situação fácil, não. Assim como não é fácil convencermos
os homens a dividir tarefas, e, no entanto, não desistimos da ideia do
casamento.
A consciência quanto ao feminismo veio das redes sociais:
comecei a ler sobre o assunto e perceber que minhas posições e ideias eram
claramente feministas. O passo seguinte, assumir meu feminismo, foi algo
bastante complicado. Sentia receio da rejeição dentro do movimento. Em muitos
aspectos, tenho visto que nós, prostitutas, enquanto categoria, vivemos em uma
espécie de limbo: exploradas, subjugadas pelos homens e rejeitadas pelas
mulheres -- feministas ou não. É necessário quebrar essa barreira. Precisamos
abrir espaço para falar de direitos a quem nem sabe que tem direitos. Não
considero a prostituição como algo empoderador da mulher, considero o feminismo
como algo empoderador da prostituta enquanto mulher.
Como você sabe, há muita divergência dentro do feminismo em
relação à prostituição. Algumas feministas crêem que a prostituição é uma
profissão como outra qualquer; outras, que é exploração. Essas últimas
geralmente são chamadas de "abolicionistas".
Sei que a crítica das
prostitutas às feministas abolicionistas é que elas veem vocês como vítimas,
não como agentes das suas próprias escolhas. Por outro lado, a prostituição
está ligada à exploração e ao abuso infantil e ao tráfico de pessoas. Pode-se
dizer que a questão da escolha é muito relativa para inúmeras mulheres,
principalmente as menores de idade e as que estão em situação de miséria. Quais
são seus sentimentos em relação a isso?
A questão da escolha, em todas as profissões, é algo muito
relativo. Quem, em sã consciência, pode dizer que uma menina em situação de
miséria tenha feito uma boa escolha ao sair de sua casa para trabalhar em casa
de família na cidade grande, longe de seus pais e sujeita a todo o tipo de
abuso? A prostituição está ligada à exploração, ao abuso infantil e ao tráfico
humano, mas há muitas outras atividades ligadas a isso. E são esses crimes que
devem ser combatidos e punidos, não as atividades extintas. Ninguém pensaria em
erradicar o trabalho das costureiras, muito embora saibamos que a escravidão
sustenta, torna possível, a existência de muitas das confecções em atividade no
mundo hoje.
Quanto ao abuso
infantil, ele ocorre sob nossos olhos, diuturnamente, sem que seja
necessariamente ligado à prostituição. É sabido que os abusadores são, em sua
maioria, pessoas de confiança da criança e da família. Então, os argumentos
apresentados não são, por si, suficientes para que eu consiga me posicionar
contra a prostituição. Principalmente, levo em conta o fato de que, ao nos
posicionarmos contra a prostituição, acabamos por nos posicionar contra a
mulher prostituta, segregando, discriminando, reforçando a situação de limbo,
de gueto.
É imprescindível a
reinserção da prostituta, da mulher prostituída, na sociedade, e isso não se dá
quando condenamos sua forma de sustento, sua atividade, quando, de certo modo,
a culpamos por sua "vida pecaminosa". Esse posicionamento só colabora
para que elas se afastem mais e mais das "pessoas de vida digna". E
quem sou eu, quem é você, pra julgar a dignidade do meu semelhante, sua sinceridade
de princípios, sua índole?
Em resumo, a exploração tem que ser combatida sempre, a
utopia de uma sociedade sem explorados têm de ser perseguida sempre, mas não
acredito que a negação da realidade seja um bom caminho rumo a esses objetivos.
No Brasil, a prostituição não é crime. Mas explorar a prostituição, é.
Portanto, prostíbulos são ilegais. Como o projeto do deputado federal Jean
Wyllys (PSOL-RJ), que propõe a regulamentação da prostituição, afetaria a sua
vida? Você pode falar um pouco sobre o que acha do projeto?
Enquanto prostituta independente, o projeto do deputado Jean
não afeta em nada a minha vida. O projeto é positivo justamente por que afeta
diretamente a vida das prostitutas que atuam em outros nichos, menos
favorecidos, pois determina claramente o papel das casas de prostituição,
estabelece limites, define direitos para as trabalhadoras. Os prostíbulos,
queiramos ou não, estão aí, em plena atividade. Ainda que fossem
verdadeiramente proibidos, o que, na prática, não acontece, funcionariam na
clandestinidade, criando suas próprias regras, fugindo à fiscalização. Toda a
semana, recebo emails e telefonemas de meninas com interesse de trabalhar
"para mim", de modo que entendo ser a mão-de-obra farta para este
tipo de trabalho. Dispenso-as, não tenho interesse em agenciar, mas não posso
negar que ainda seja procurada para este fim.
Durante muito tempo, entendia que mulheres procuravam pela
prostituição como último recurso, devido ao desemprego. Em época de pleno
emprego, o que percebo é o fenômeno oposto: os sites de anúncios estão lotados,
as agências funcionam a pleno vapor e, em visita recente a algumas casas do
ramo, percebo um bom aumento no número de mulheres dispostas a atuar no ramo.
Também sei dos abusos e por isso defendo a regulamentação. Elas terão um
instrumento mais efetivo, embora não perfeito, contra a exploração.
Algumas feministas
criticam que o projeto do deputado não prevê melhorias pras prostitutas, apenas
“visa suprir uma necessidade da indústria sexual, que juntamente com as grandes
corporações, buscam utilizar o corpo das mulheres para faturar altos montantes
em grandes eventos como a Copa do Mundo." Como você rebateria essas
críticas?
O projeto, a partir do momento em que define o que seria
"exploração", já prevê melhorias. Hoje em dia não há percentual
definido e as casas cobram o que bem entendem, estabelecem "multas"
absurdas para as trabalhadoras e, em muitos locais, sequer a função da
prostituta fica bem estabelecida, sendo muitas responsáveis inclusive pela limpeza
do ambiente e pela reposição do material de trabalho (preservativos,
lubrificantes, sabonetes).
Você tem contato com outras prostitutas? Há muita competitividade, ou
há bastante cooperação entre as prostitutas? Você participaria de uma
cooperativa?
Tenho contato com
outras prostitutas, sim, procuro ter. Tenho amigas, tenho carinho verdadeiro
por muitas dessas meninas de quem acabo por conhecer a luta, os sonhos, a
vida... conheço muita gente! A competitividade nesta atividade é tão forte
quanto na maioria das outras. A cooperação é pouca e sei que sou mal vista por
muitas colegas por minhas tentativas de interação, e mesmo por falar tanto e
tão abertamente do assunto. Mas já chegamos a obter avanços, já chegamos a
conseguir manter por curto período um forum próprio, nosso, para nossa
proteção...
Parei de agitar esse
espaço por falta de tempo e necessidade de cuidar da minha própria agenda. E,
não nego, por receios diversos e bem reais. Chegamos a ser, aqui em Porto
Alegre, acusadas de "formação de cartel" e de estarmos nos
organizando mais do que os homens clientes -- ainda que nossa organização fosse
incipiente, não tivesse mais do que alguns meses, a organização fosse pouca e
tenha se dado dentre um número bem restrito de acompanhantes.
A reação machista foi impressionante: eu tirei uma semana de
férias, começo de 2011, e, na volta, algumas colegas apavoradas me procuravam
por medo, já que tinham sido ameaçadas por MSN de processo judicial (!) por
conta de termos aumentado o valor do cachê. A ideia era de que teríamos nos
combinado e isso daria aos clientes direito de reclamar ao CADE, de que
estávamos cometendo crime contra a economia.
Absurdo, mas as moças
pouco sabiam de leis, e precisei acalmá-las. A cópia que me enviaram das
conversas era assustadora e dava uma boa medida do quanto, e de como, há
interesse em manipulá-las, manipular-nos, de modo vil. Não bastaria a quem
tenha ficado insatisfeito com o aumento contratar outra acompanhante? Era
necessário amedrontá-las? Que perigo, verdadeiramente, representamos? Que risco
se corre quando prostitutas se organizam para sua defesa, sua proteção? A que
forças estamos ameaçando?
A Suécia adota, desde 2009, medidas que punem a exploração da
prostituição e o cliente. Esse modelo também existe na Noruega e na Islândia, e
é um dos assuntos do momento na França, já que a ministra dos Direitos das
Mulheres anunciou querer abolir a prostituição. Com o projeto do deputado, o
Brasil não estaria indo na contramão desses países mais preocupados com os direitos
humanos? Pra você, querer erradicar a prostituição seria uma utopia? Como você
veria um mundo sem que as pessoas trocassem sexo por dinheiro?
Bom, não há dúvidas de que a Suécia é um país muito mais
avançado do que o Brasil no que tange aos direitos dos trabalhadores. Mas a
realidade sueca EM GERAL é distinta da nossa. A proteção social, os salários,
os impostos, vamos copiar a Suécia em tudo então (óbvio que é brincadeira, pois
todos sabemos que as coisas não funcionam assim e que vimos avançando muito
recentemente). O que vale para eles não necessariamente vale para nós no
contexto atual. Além do mais, prostituição e tráfico humano estão intrinsecamente
ligados na Suécia. É a estrangeira que sai de seu país para se prostituir na
Suécia -- muitas vezes sem sequer falar a língua local.
Num mundo ideal,
talvez as pessoas não trocassem sexo, cuidados médicos ou mesmo conhecimento
por dinheiro. São necessidades humanas essenciais... Esse não é o mundo em que
vivemos, mas isso não me impede de sonhar com ele.
Entretanto, não há imoralidade em trocar sexo por dinheiro.
Precisamos parar de ver o sexo exclusivamente sob esta ótica romântica e
conservadora. Sexo e romantismo, sexo e envolvimento, nem sempre estão ligados.
Eu entendo assim. E esse entendimento me leva a crer que é possível que a
prostituição como a vemos, como a temos hoje, possa estar com os dias contados.
É possível lutar por essa outra visão, em que a profissional do sexo deixe de
ser vista como um ser pernicioso, e entenda-se sua função como, quem sabe,
verdadeiramente, uma espécie de terapeuta que auxilia na descoberta e na
relação de cada um com sua sexualidade. Em época de "personal qualquer
coisa" nem se trata de uma ideia muito revolucionária. Claro que isso
exigiria maior preparo e profissionalismo...
Por outro lado,
olhando as coisas sem a ótica da utopia, com olhos de hoje: dá pra imaginar
algum homem sendo perseguido no Brasil por conta de contratar os serviços de
uma prostituta? E alguma prostituta desistindo da atividade por conta de lei
desta natureza? Eu, sinceramente, considero absurda, na prática, a ideia
difundida pela mídia romântica de que só existe traficante por conta da
existência de drogados eventuais, um paralelo possível e mais conhecido dentre
nós. Essa é uma maneira escapista e ingênua de racionalizar as coisas, fugindo
do debate essencial, fingindo que estamos nos preocupando e fazendo algo para
mudar a realidade que nos incomoda sem ir ao âmago das questões.
Fonte: http://escrevalolaescreva.blogspot.com.br
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