Sim, elas podem fazer a festa mais linda e tomar a frente
nas decisões que ditam a folia de BH. Conversamos com algumas das mulheres que assumem a frente de blocos diversos.
Hoje, com o Carnaval crescendo a
cada ano em Belo Horizonte, as mulheres que compõe os blocos assumem, cada vez
mais, a sua voz. Se a primeira imagem que vem à sua cabeça ao ouvir as palavras
'mulher' e 'Carnaval' for a de uma musa sambando semi-nua 'na tela da TV no
meio deste povo', pode ser que o seu conceito esteja um pouco ultrapassado.
Apesar de ainda hoje a imagem sexualizada das mulheres na folia ser reproduzida
insistentemente, nos bastidores, elas continuam atuando ativamente para que a
festa aconteça.
Conversamos com algumas das
mulheres que assumem a frente de blocos diversos, desde àqueles que arrastam
multidões pelas ruas, como o Juventude Bronzeada e o Baianas Ozadas, até o
bloco de estreia pautado pela visibilidade da mulher, o Bruta Flor. Mas elas
estão presentes em todos os outros grupos de rua da capital mineira, seja na
concepção e fundação, seja na bateria ou na coordenação. E com a visibilidade
do movimento feminista pautado desde as redes sociais até como tema da última
prova do Enem, é difícil continuar ignorando a presença delas também na
organização da festa.
De clássicos do axé a marchas
compostas apenas por mulheres, a folia deste ano é um prato cheio de
diversidade, inclusão e democratização.
O bloco Bruta Flor, que estreia
neste Carnaval, nasceu com uma concepção bem sólida: empoderar as mulheres. Por
isto, desde o ano passado, as cantoras Viviane Coelho e Cláudia Manzo abriram
oficinas para que as mulheres que desejam participar da bateria do bloco
pudessem aprender os instrumentos e ensaiar. Da confecção das roupas à
composição das músicas, das harmonias criadas ao som da bateria, tudo é feito
por mulheres. Só para o público que não há critério, homens e mulheres são bem
vindos para acompanhar o bloco nas ruas.
"Todas as composições são de
mulheres, a maioria, mineiras. A gente abriu apenas uma exceção para uma
artista conhecida, que é a Elza Soares, para uma música que fala sobre a
violência contra a mulher", explica Viviane, se referindo a música "Maria
da Vila Matilde", que tem como refrão o mantra "Cê vai se arrepender
de levantar a mão pra mim".
"As mulheres podem estar em
qualquer lugar que elas quiserem, e não necessariamente seguir um estereótipo
de beleza e de corpo, elas podem ser destaques em outras funções no Carnaval,
um espaço que elas também devem ocupar", explica.
A outra fundadora do bloco, a
chilena Cláudia Manzo, relata ainda que a ideia foi também dar espaço às
mulheres na música. "Essa também foi uma forma que encontramos de
empoderar as mulheres que não sabem tocar, mas mesmo assim podiam entrar no
bloco para aprender e integrar a bateria. E também dar espaço a essas
compositoras maravilhosas".
Ela ainda conta que, moradora de
BH há cerca de três anos, decidiu morar na cidade ao perceber a cena cultural.
"No primeiro Carnaval que vi aqui não entendi muito, achei que era só
festa, mas depois entendi. E este ano estou achando mais bonito ainda porque
estou sentindo que os blocos também estão tendo uma posição política muito
forte para um momento como este, o que é muito importante", explica.
O que mais anima as fundadoras é
a procura por mulheres de diversas faixas etárias para integrar o bloco.
"A gente tem meninas adolescentes e meninas com 60 anos. É um bloco que
tem todo tipo de mulher e isso é o mais legal, até para ver esses retratos
sociais", comenta Cláudia.
O bloco Bruta Flor, que toca
apenas músicas compostas por mulheres, se concentra na segunda-feira (8) às
8h30 em frente ao Centro de Referência da Mulher Vítima da Violência na esquina
da rua Hermilo Alves com avenida do Contorno, no Santa Tereza.
Seguindo o caminho inverso de
muitos blocos de Carnaval, que também se desmembram em bandas, o bloco
Juventude Bronzeada nasceu de uma banda, criada por músicos da Fase Rosa com a
ideia de tocar axé dos anos 90. “Com esse movimento de reflorescimento do
Carnaval de BH, surgiu a ideia de a Juventude se transformar em um bloco, em
2014. Este será o nosso terceiro Carnaval”, conta a analista de comunicação e
marketing Marcela Pieri.
Com o crescimento exponencial do
bloco - em 2014 foram 500 foliões, em 2015, 7 mil, e a expectativa para 2016 é
de um público de 15 mil pessoas - foi preciso pensar em uma estratégia para
arrecadar fundos e pagar uma estrutura de som que chegasse aos ouvidos dos
foliões posicionados bem atrás da multidão. Por isso nasceu a festa Sonoriza,
realizada no dia 23 de janeiro na Serraria Souza Pinto, com a união dos blocos
“Pena de Pavão de Krishna”, “Baianas Ozadas”, “Então, Brilha” e “Tchanzinho da Zona
Norte”, além do Juventude, na iniciativa chamada “financiamento carnafestivo”.
Administrar os fundos do bloco é
uma das funções de Marcela, que assume ainda o diálogo com o poder público, a
participação na escolha da concepção e da trilha, a organização e coordenação
do bloco, e tudo o mais que for necessário. A novidade desta edição é a
homenagem a Daniela Mercury, ícone do axé, e também inspiração feminina para o
bloco.
“Neste Carnaval eu percebi ainda
uma mudança em como as pessoas me enxergam dentro do bloco. Eu costumava
segurar o estandarte, porque era necessário fazer isso e eu me dispus, além de
continuar na organização disso tudo também. Então eu era a menina que segurava
o estandarte, e agora as pessoas já entendem tudo o mais que eu faço no bloco”,
explica.
Sobre o assédio ainda sofrido
pelas mulheres no Carnaval, Marcela acredita que esse quadro está diminuindo
devido a intensa e atual discussão sobre o assunto.
“Eu espero que o Carnaval sirva
para dar mais visibilidade para a mulher. Temos uma camisa nesta edição que é
um trecho de uma música interpretada pela Daniela Mercury, e que também é uma
forma de manter o nosso posicionamento em relação ao assédio. Eu sinto que isso
está diminuindo, felizmente, mas ainda não é o que queremos. Mesmo se houver
apenas uma mulher sendo assediada no Carnaval, esse assunto deve continuar em
pauta massivamente”, comenta.
O bloco Chama o Síndico, criado
em 2012, nasceu de uma ideia da musicista Nara Torres, que desde então, assumiu
as funções de organizadora e regente. Após conhecer os discos "A tábua de
esmeralda" (1974) e "África Brasil" (1976), do Jorge Ben, e ler
a biografia de Tim Maia, escrita por Nelson Motta, ela percebeu o quanto os
dois artistas tinham em comum, especialmente por serem autodidatas. Mas o
impulso para a criação de um novo bloco nasceu também da percepção dos blocos
que saíam em 2009 e 2010, no ressurgimento da folia na capital, e que já
estavam ficando muito cheios.
Sobre o protagonismo das mulheres
na folia, Nara acredita ser um sentimento coletivo, e não especificamente uma
coisa que nasceu no Carnaval. "Eu vejo isso como um reflexo de um movimento
natural das mulheres estarem cada vez mais presentes no meio da música. Por
muito tempo as mulheres eram mal vistas em locais como este, em certas
profissões e em certos trabalhos. Por isso durante séculos houve esse
protagonismo masculino e acho que historicamente as mulheres estão ocupando
cada vez mais os mesmos lugares que os homens, que na verdade, são os lugares
onde elas querem estar", diz.
O movimento de percepção do
protagonismo das mulheres também já é reconhecido pelos próprios homens,
segundo Nara. "Eu vejo os homens mais abertos a essa discussão, querendo
se inteirar sobre o assunto, conversando com a gente. O machismo ainda existe e
continua forte, assim como a homofobia, mas acho que a melhor forma de combater
isso é a união".
Sobre o assédio, ela acredita que
a união das mulheres tem servido também para combater o machismo cada dia mais.
"Eu percebo essa questão do assédio na relação do músico com a regente
mulher, o que não é o meu caso, mas em conversas com outras mulheres. E também
no público e em festas no contexto mais amplo do Carnaval. Mas as mulheres hoje
já são de uma consciência mais ampla de classes, como se estivessem mais unidas
agora contra o machismo", conclui.
O bloco que reúne canções de Tim
Maia e Jorge Ben sai na quarta-feira (3), às 19h, mas o local ainda será
divulgado na página Chama o Síndico, no Facebook
Criado em 2012, o bloco começou
com a ideia de um grupo de amigos, entre eles a produtora Renata Chamilet, de
se vestir com os trajes típicos da Bahia e levar instrumentos para tocar na
folia da cidade. “Percebemos que quando começávamos a tocar, as pessoas
formavam uma rodinha ao redor. Aí começamos a ensaiar para sair em 2013 com o
bloco mais organizado”, conta a produtora, que hoje é a única mulher entre as
lideranças do bloco.
Multi-fuinção no bloco, é ela a
responsável pela produção e pela comunicação, incluindo as redes sociais. Mas
para botar o bloco na rua, ela também fica por conta de vários outros detalhes,
como a compra dos tecidos para as roupas, a organização dos shows e o diálogo
com os agentes públicos.
“Ser mulher todo dia é uma luta.
Parece que a gente tem que se impôr mais para ser ouvida. Como é preciso ter
uma conversa muito estreita com a Polícia Militar, Bombeiros e BHTrans, que são
órgãos muito masculinos, às vezes, a gente se vê na situação de ser a única
mulher no recinto. Eu prefiro nem perceber isso e seguir”, diz.
A foliã e publicitária Joana
Braga, de 32 anos, acredita que por este e outros motivos, mais mulheres
deveriam integrar a administração da cidade. “A gente precisa ver mais mulheres
na administração pública. Estamos vivendo um momento muito importante na cidade
em relação aos movimentos sociais e a criatividade destas ações, que talvez as
pessoas não estejam se dando conta, mas tem muita mulher por trás disso”,
opina.
O bloco Baianas Ozadas, que é uma
homenagem à Bahia e no repertório só têm compositores baianos como Gilberto
Gil, Caetano Veloso, Terra Samba e Netinho, sai na segunda-feira (8) às 14h
desde a praça da Liberdade até a Savassi.
O bloco Pena de Pavão de Krishna,
criado no final de 2012 com o objetivo de reunir amigos e tocar para pouca
gente, também foi idealizado por uma mulher, a fotógrafa Flora Rajão. No ano
passado ele reuniu um público de 7 mil pessoas e a expectativa deste ano, é de
pelo menos 10 mil.
"Eu acho ótimo ter vários
blocos puxados por mulheres. O Carnaval envolve tanta criatividade e eu
acredito que as mulheres têm essa tendência pelas questões de criação. Acaba
sendo interessante esse movimento de as mulheres aparecerem mais. Principalmente
agora, neste período em que elas estão tomando bastante lugar na música",
diz.
O bloco é pautado pelo candomble
e traz os ritmos do ijexá, que saúda os orixás, além de canções de compositores
como Gilberto Gil e Caetano Veloso.
O Pena de Pavão de Krishna
desfila no domingo (7), às 8h em local ainda a ser divulgado na página Pena de
Pavão de Krishna
A artista Chaya Vazquez, criadora
do Frito na Hora, uma orquestra de improviso, atualmente alterna as funções na
organização, regência e percussão de vários blocos em BH (Peixoto, Tcha Tcha,
Bloco do Alvoca Libertina, Praia da Estação, Blocomum, Bloco da Tetê,
Manjericão, Vira o Santo e Maracatu Pata de Leão - como batuqueira). Em
entrevista ao jornal O TEMPO, ela conta sobre a sua entrada pioneira na
formatação do Carnaval em Belo Horizonte quando o meio era ainda dominado
prioritariamente por homens.
O TEMPO (OT): Como se deu a sua
entrada neste processo do Carnaval em Belo Horizonte?
Chaya Vazquez (CV): Faço parte
dos processos de Carnaval de rua desde 2009, acho que fui a primeira dessas
meninas que agoram puxam os blocos. Sempre fui a única mulher entre muitos
homens pois sou a caçula de seis irmãos, fui criada por um deles, inclusive.
Então vem de berço, sei lidar muito bem com isso, que foi uma luta constante na
minha vida. Foi bem complicado querer estudar uma coisa tão do “macho” no
ínicio.
OT: Como você enxerga esse
movimento de visibilidade e empoderamento da mulher no Carnaval?
CV: Acredito que não é
exclusivamente do Carnaval, mas nas últimas décadas tem acontecido uma enorme
movimentação em todos os sentidos do afloramento da força feminina para além
das vasilhas e das regras ortodoxas dos homens. Acredito que é algo que está se
tornando cada vez mais fortes por razões óvias, como a natural necessidade de
manter o equilíbrio do universo, o Ying e Yang. Essa teoria é histórica e tem
uma força que ainda estamos descobrindo. Os povos, comunidades e grupos
oprimidos estão tendo a união para poder mostrar a força do que é real, e a
humanidade - boa parte dela - está neste despertar da consciência em relação a
isso tudo. O Carnaval é um reflexo disso.
OT: De onde vem a força para
lidar com isso e acompanhar este processo?
CV: Eu já nasci em um espaço onde
foi obrigatório tornar-me forte, pois sofri vários abusos físicos, emocionais e
psicológico, e fui protegida e criada pelos meus irmãos. Aprendi a lutar como
eles e ao mesmo tempo, sendo uma mulher.
Fonte: O Tempo
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