"É uma violência de gênero,
machista. A mulher é objeto dessa violência por ser mulher, por seu gênero, por
estar vulnerável na hora do parto".
Em fevereiro de 2015, o HuffPost
Brasil realizou uma reportagem mostrando os índices alarmantes de cesáreas nas
maternidades da rede suplementar em São Paulo. A unidade campeã chegava a 96%
de partos cirúrgicos, contra os 15% recomendados pela OMS.
Nos hospitais públicos, o índice
médio não passa de 30%. Isso pode parecer uma notícia muito boa. Mas não é bem
assim: nem todo parto normal é um parto decente.
Nos 70% de partos realizados no
SUS sem cirurgia, há uma cifra não-contabilizada: a violência obstétrica,
expressão nova para um problema antigo que, segundo pesquisa da Fundação Perseu
Abramo, atinge ao menos 1 a cada 4 mães brasileiras.
"É uma violência de gênero,
machista. A mulher é objeto dessa violência por ser mulher, por seu gênero, por
estar vulnerável na hora do parto", explica Fabiana Dal'Mas Rocha Paes,
promotora do Ministério Público de São Paulo que atua contra a violência
obstétrica.
A violência obstétrica atinge
todas as classes sociais. A mesma pesquisa da Perseu Abramo mostra que 17% das
mulheres que tiveram partos na rede privada já passaram por algum tipo de
agressão, verbal ou física, durante o atendimento. No sistema público, porém, o
absurdo encontra o ambiente ideal para se proliferar.
"No SUS existe uma postura,
por parte dos profissionais, de que a mulher não tem escolha, e que prevalece
apenas a decisão do médico. Na rede suplementar, ao contrário, as mulheres têm
um mínimo poder de escolha, apesar de serem induzidas a escolher o que não
querem. E eles douram a pílula, não há tantas agressões verbais. Já as
violências obstétricas no SUS são bastante morais, as pessoas já entram
esperando ser maltratadas", diz Raquel Marques, presidente da ONG Artemis.
As 27 mães cujos depoimentos
foram colhidos pela ong e analisados pelo HuffPost Brasil com exclusividade
foram submetidas a humilhações físicas e verbais naquele que deveria ser o mais
edificante momento de suas vidas: o nascimento de seus filhos.
Subiram em suas barrigas para
"empurrar" o bebê para fora à força. Tesouraram suas vaginas e
períneos a torto e a direito. Cortaram-nas sem anestesia. Chamaram-nas de
histéricas. Costuraram-nas com o "ponto do marido", sutura extra cujo
objetivo é deixar a vagina mais "apertada" a fim de aumentar o prazer
sexual do homem -- e inviabilizar o da mulher. Largaram-nas sem água e sem
comida por horas. Impediram a presença de seus acompanhantes. Amarraram seus
braços e pernas.
Sabrina, 23, mãe de Kaycky (8) e
Nicolly (7), tinha plano de saúde mas, com medo de ser obrigada a fazer uma
cesariana, preferiu ter seu primeiro filho no Hospital Municipal de Santo
André. É assim que ela narra o que chama de "parto anormal":
"Eu tinha apenas 15 anos, e
aparentemente era uma gravidez saudável. Mas acordei às 6 da manhã sentindo uma
cólica muito forte. Meu filho estava nascendo, de 29 semanas, coroando.
Quando cheguei à maternidade, por
volta de 6h30, meu pai me carregava no colo. Até que chegou uma médica
extremamente grossa... Toda vez que eu reclamava de dor ela repetia "na
hora de abrir as pernas você não gritou, né?". Quando me levaram para o
elevador, de maca, ela gritava: "não faz força, se não vou amarrar suas
pernas!", e dizia que meu neném ia nascer no meio do corredor.
Não me deixaram levar um
acompanhante. Meus pais fizeram um escândalo por causa disso, brigaram com ela.
Na sala de parto, mais humilhação. Lembro exatamente da frase: "meu ouvido
não é penico para eu ficar ouvindo menina mimada".
Me senti completamente indefesa.
Durante o trabalho de parto, que foi em posição ginecológica, com as pernas
para cima, subiram na minha barriga e começaram a empurrá-la, é o kristeller.
Agora tenho incontinência urinária, provavelmente por causa dessa manobra.
E fizeram um corte na minha
vagina sem a menor necessidade. No fim do parto, a médica disse: 'Se fosse
minha filha ia tomar uma surra'. Dessa episiotomia, ficou uma cicatriz enorme.
Depois, fiquei três horas no corredor sozinha, porque não tinha quarto. Meu
bebê foi direto para a incubadora, eu nem o vi.
É um 'parto anormal', totalmente
traumático. Conheço várias mulheres que fizeram parto no SUS e, depois disso,
não querem nem ouvir falar em parto normal. Elas querem 20 filhos e vão fazer
20 cesáreas.
Se você tem dinheiro para pagar
uma equipe humanizada, ou toda a sorte de ir a uma maternidade pública
humanizada, consegue um parto decente. Ou eu pago uma equipe ou corro o risco
de passar por tudo de novo.
Hoje queria ter um terceiro
filho, mas não tenho coragem. Enquanto não tiver condições de pagar por um
parto respeitoso, prefiro não ter.
Passar por aquela situação de
medo, fragilidade, sozinha, sem qualquer apoio, as enfermeiras gritando com
você, uma médica que se acha Deus, que te faz passar fome por 10 horas, sede
por 10 horas, é muito traumático. Tem a sensação de felicidade porque seu filho
nasceu, mas também de humilhação e indignação por ter passado por tudo
aquilo."
Quando se pode pagar uma equipe
de assistência humanizada em um hospital privado, o tratamento é o oposto. Mas
custa caro: é preciso desembolsar no mínimo R$ 10 mil por uma equipe completa.
No plano de saúde, é preciso sorte: os níveis de cesárea são estratosféricos, e
é quase impossível ter um parto humanizado ali.
A assistência humanizada começa
muito antes do parto. O acompanhamento de uma doula, por exemplo, inclui
exercícios para fortalecer a musculatura, massagens para aliviar a dor, suporte
emocional e muita informação.
Paty Scano chama de
"anja" a doula que a ajudou a dar à luz seu filho Pedro. Também
contou com a ajuda de um neonatologista e um obstetra de confiança, além de
todo o apoio do marido Paulo, que participou de tudo do começo ao fim.
"Saímos correndo de casa, eu
de camisola, uma blusa por cima, calça de moletom e havaianas. A minha doula
temendo que o bebê nascesse no carro pediu uma toalha. Nesse momento a
"ficha" caiu para o Paulo: nosso bebê estava chegando.
Já no caminho, tivemos a sorte de
encontrar um carro do CET, que ao saber da nossa situação, nos guiou da avenida
até o minhocão, que já estava fechado. Tivemos o minhocão livre para nós.
Chegamos no São Luiz muito rápido. Não fiz ficha, não dei boa noite para o
segurança, apenas saímos todos correndo para a sala de parto, onde já nos
esperavam o Dr. A.J., obstetra, e o Dr. C., neonatologista.
Tirei a roupa rapidamente e logo
entrei na banheira. Fiquei lá com a minha doula ao meu lado, conversando e me
confortando o tempo todo.
Ela colocou uma toalha quente no
meu peito e me senti super confortada, apertando a mão dela nos momentos de
contração intensa. Lembro que a minha doula me dizia a cada contração: "é
menos uma, querida", e de como era bom ouvir aquilo.
Saí da banheira e lembro que o
Dr. A.J. fez outro exame de toque, já estava tudo bem adiantado. Fiquei de
cócoras no banquinho, o Paulo me segurando por trás. Sentia as contrações, mas
ainda não tinha vontade de fazer força. Eu gritava bastante, não conseguia me
controlar.
O Paulo de vez em quando saía e
dava notícias a meus pais, que estavam do lado de fora. Cansei de ficar de
cócoras, tentei ficar de quatro, ficar de lado e acabei me ajeitando na posição
convencional, mas meio inclinada, sentada.
Sentia muito frio e me deram um
cobertor. Eu olhava para todos e pensava que aquele momento era único, estavam
todos lá para me ajudar. O Paulo tentava me confortar, queria contar piadas,
estórias nossas...
Já víamos a cabecinha dele, super
cabeludo, cabelos pretinhos. Foi então que o Dr. A.J. ficou do meu lado e disse
que tudo estava dependendo exclusivamente de mim. E logo senti vontade de fazer
força e trazer meu filho ao mundo. Na minha cabeça tudo acontecia de forma
muito rápida e pensei assim: "agora ele vai chegar, já está tudo
terminando, vou fazer bastante força para ele vir logo".
Quando a cabecinha passou, senti
aquele famoso "círculo de fogo" que falam, é uma quentura e você
sente que está se abrindo, difícil explicar. Depois, os ombros e o corpinho,
que nem senti. Segurei meu filhote nos braços e fiquei atônita, ele era lindo,
perfeito, olhos abertos para mim.
Não consegui chorar, fiquei sem
reação. Contei os dedinhos das mãos, dos pés, vi a pele perfeita, aquele monte
de cabelo pretinho: a minha vida estava ali.
Pedro nasceu à 1h19, do dia
7/6/2006. Mamou por 2 horas seguidas e não queria de jeito nenhum sair do
peito. Não precisei de episiotomia e tive uma laceração que não foi importante.
Dr. A.J. sugeriu alguns pontos,
mas pedi que não o fizesse, quis que fechasse naturalmente e foi assim que
aconteceu.
Só depois pude reparar direito no
clima daquela sala. Estava à meia luz e no teto, luz de cromoterapia na cor
verde, incenso aceso e meu filho tomando banho na tummytub pelas mãos do Dr. C.
e do Paulo. Ao redor, meus pais, meu irmão e minha cunhada. Pedro de olhos
abertos, imerso na água, olhando para todos.
Dias depois, meu pai me contou
que quando entrou naquela sala, ficou arrepiado com a atmosfera de respeito e
paz que reinava ali. E disse que a imagem do neto, de olhos abertos, imerso na
água, foi a cena mais linda que ele já viu na vida."
Por quê?
Sabrina sentiu solidão no parto.
Paty teve o marido, a doula, os pais e mais dois médicos. Sabrina teve o
períneo cortado sem aviso e ficou com uma enorme cicatriz. Paty não recebeu nem
ponto. Sabrina gritou de dor e foi tachada de "histérica". Paty
gritou de dor e recebeu massagens. Sabrina foi xingada. Paty foi elogiada.
Qual a diferença entre essas duas
mães, igualmente dignas de respeito, então? De acordo com Raquel, uma está mais
vulnerável que a outra a problemas que são estruturais:
"Quem materializa a
violência é o profissional. Pode ser o médico, a enfermeira, a auxiliar. Pode
acontecer desde a recepção. Mas a causa, a razão é cultural. Ela está em todos
nós de alguma maneira: machismo, julgamento da vida sexual do outro, uma
moralidade embutida que faz com que mulheres pobres, negras, adolescentes, com
HIV, que sejam presidiárias, sofram mais violência. As pessoas se sentem
autorizadas a puni-las por terem cometido aquele 'erro de engravidar'"
No SUS, o médico é sobrecarregado
e tem pouca incentivo para se atualizar. Por isso, métodos antigos e
universalmente contraindicados como a manobra de kristeller -- empurrar a
barriga para "expulsar" o bebê --, que não é recomendada nem pelo
Ministério da Saúde, nem pelo Conselho Federal de Medicina, são corriqueiros no
sistema público.
Existe, ainda, uma questão de
formação que vai além da técnica. De acordo com Raquel, há um abismo entre a
formação do médico e o cenário que ele encontra na atuação profissional:
"O médico entra muito jovem
na faculdade, na minha avaliação, então quando eles entram em contato com
realidades distintas de vida, não têm bagagem para lidar. E a faculdade também
não dá conta de ampliar esse repertório para atender esses mundos distintos, o
que desemboca lá na frente em julgamento moral", afirma.
Outro lado
Em nota, o Ministério da Saúde
diz que desenvolve uma série de ações para capacitação de profissionais de
saúde, como médicos, enfermeiras obstétricas e obstetrizes:
"O grande marco para o
enfrentamento da violência obstétrica é o Programa de Humanização no Pré-Natal
e Nascimento, lançado em 2000. Dentre as outras iniciativas, destacam-se: a
Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher e o Pacto pela Redução
da Mortalidade Materna e Neonatal (2004); o Programa Trabalhando com Parteiras
Tradicionais (2000) e a estratégia Rede Cegonha (2011). O Ministério da Saúde
também tem estimulado a adoção de práticas que propiciem um atendimento
humanizado, como a abolição da violência obstétrica, inclusive com incentivos
financeiros para hospitais que aderem à estratégia Rede Cegonha e à Iniciativa
Hospital Amigo da Criança (IHAC). O incentivo é condicionado ao cumprimento de
indicadores de qualidade. Por meio da Rede Cegonha, lançada em 2011, o governo
federal tem incentivado o parto normal humanizado e intensificado a assistência
integral à saúde de mulheres e crianças, desde o planejamento reprodutivo,
passando pela confirmação da gravidez, pré-natal, parto, pós-parto, até o
segundo ano de vida do filho. Já a IHAC é um projeto realizado pelo Ministério
da Saúde em parceria com Unicef para garantir incentivos financeiros às
unidades que mantém assistência humanizada e qualificada às mães e aos
bebês."
O Ministério Público de São Paulo
também instaurou Inquérito Civil Público para receber denúncias de violência
obstétrica a fim de fiscalizar as entidades de saúde que desrespeitam mulheres.
O que fazer quando se é vítima de violência obstétrica?
É possível fazer denúncias junto
à ouvidoria do hospital, ao Ministério Público Federal e Ministérios Públicos
Estaduais, à Defensoria Pública, pelo Disque Saúde 136 ou pelo Ligue 180.
"Não há um código específico
ou uma legislação, como a Maria da Penha. Essa questão se enquadra em crime
contra honra, lesão corporal, pode se enquadrar em diversos tipos penais,
dependendo da situação, do caso concreto. E não apenas a legislação penal, como
civil também, como a caracterização de danos materiais e morais", explica
a promotora Fabiana Dal'Mas Rocha Paes.
Fonte: Brasil Post
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