Placa na Rodovia Santos Dumont
indica o bairro Jardim Itatinga (Foto: Roberta Steganha/ G1)
Local foi criado há 48 anos para
isolar profissionais do sexo dos moradores. 'Olhar essa realidade é se despir
de vários preconceitos', afirma Pastoral.
Uma placa que quase passa
despercebida de quem dirige pela Rodovia Santos Dumont, na entrada de Campinas
(SP), indica um dos locais mais "emblemáticos" do município: o Jardim
Itatinga. O bairro, atualmente uma das maiores áreas de prostituição da América
Latina, foi criado pelo poder público há 48 anos, em plena ditadura militar,
para isolar as profissionais do sexo dos moradores para não "ameaçar a
ordem" na cidade.
De acordo com a arquiteta,
urbanista e professora Diana Helene, que estudou o bairro em sua tese de
doutorado intitulada "Preta, pobre e Puta: a segregação urbana da
prostituição em Campinas", o diferencial do local é ter sido criado
exclusivamente para concentrar, numa área distante da cidade, todas as
atividades ligadas à prostituição.
"No Brasil não existem
outros bairros criados do zero pelo planejamento urbano para esse fim, mas
existem alguns em outros lugares do mundo, como o bairro planejado de
prostituição no Marrocos, o “quartier reservé” de Bousbir, em Casablanca",
ressalta.
Prostituição durante o dia na Rua
Pacaembu no Jardim Itatinga (Foto: Reprodução/ Google Street View)
Santidade x pecado
Para a pesquisadora, a decisão de
confinar a prostituição em uma área afastada do município, entre as rodovias
Santos Dummont e Bandeirantes, foi baseada em conceitos morais e numa divisão
entre dois papéis de mulheres que não poderiam conviver juntas.
"A 'santa' e 'puta', que não
poderiam se misturar, principalmente com o grande crescimento urbano na década
de 1960, devido a onda de industrialização. Lá as prostitutas estão protegidas
para encarnar livremente seu papel, sem entrarem em conflito. Os clientes
também ficam protegidos, de modo a não serem estigmatizados", ressalta a
professora.
"Operação Limpeza"
Por isso, a partir de 1966, com o
apoio da opinião pública, a polícia começou um processo chamado de “Operação
Limpeza”, que consistia em perseguir as prostitutas que trabalhavam de forma
independente nas ruas da cidade e fazer acordos com as casas de prostituição
para se mudarem para o novo terreno.
Nessa "cruzada" contra
a prostituição, as profissionais do sexo foram deslocadas para uma
"ilha" de estrutura precária em uma área na periferia da cidade,
próxima ao Aeroporto Internacional de Viracopos. A região antes abrigava uma
antiga fazenda de café chamada Pedra Branca, Itatinga em tupi-guarani.
Mapa mostra distância do bairro
em relação ao centro de Campinas (Foto: Reprodução/ Google Maps)
"Essa urbanização acarreta
uma divisão entre norte e sul, onde no norte é onde estão os terrenos mais
valorizados, os condomínios e shoppings, a Unicamp, e no sul a maioria das
ocupações informais, favelas, loteamentos populares e também o bairro de prostituição,
demonstrando sua associação na localização urbana com os outros elementos
indesejados", afirma a pesquisadora.
Particularidades do bairro
Após vencer a distância, o
visitante que chega ao Jardim Itatinga logo se depara com um universo onde tudo
gira em torno da prostituição. Há até lojas especializadas para atender as
necessidades das profissionais.
No bairro, os serviços sexuais
são oferecidos todos os dias da semana, 24h por dia. As profissionais ficam
dispostas de duas formas na zona de prostituição: algumas abordam os clientes
nas ruas que chegam de carro, já as demais ficam espalhadas em boates.
Apesar da diversidade das
mulheres do bairro, a maioria é jovem. "Diversas mulheres se iniciaram na
prostituição trabalhando no bairro e grande parte veio de outras cidades do
interior e muitas de outros estados. Ou seja, o bairro é uma localidade de
referência de acolhimento de prostitutas iniciantes", destaca a
pesquisadora.
"A sociedade não está
interessada nessa realidade, porque tem a questão do tabu e da moralidade.
Acham que ela tem vida fácil. Ninguém pensa numa mulher que está aqui por
outras condições. Olhar para essa realidade é se despir de vários
preconceitos". Fabiana Aparecida Ferreira, da Pastoral da Mulher
Marginalizada
Sigilo
Ainda segundo Diana, a escolha de
trabalhar numa “casa” do Itatinga, principalmente para jovens e iniciantes, se
deve a possibilidade de manter a profissão em segredo. "Segregadas da
cidade “normal”, escondidas nas casas especializadas, as garotas podem manter
em segredo seu ofício", explica.
No entanto, nem todos que moram
no bairro vivem da prostituição, por isso ao caminhar pela região é comum
encontrar nas portas das residências que não têm ligação com o mercado sexual
placas de sinalização que dizem "casa de família".
Marginalização
Segundo Fabiana Aparecida
Ferreira, da Pastoral da Mulher Marginalizada, que atende as mulheres em
situação de prostituição, apesar da consolidação do bairro e do
"sigilo" que o confinamento fornece, o preconceito ainda é uma
palavra presente na realidade de cada uma delas. "A discriminação é
inerente. A sociedade não está interessada nessa realidade, porque tem a
questão do tabu e da moralidade. Acham que ela tem vida fácil. Olhar para essa
realidade é se despir de vários preconceitos", explica.
Profissionais do sexo no Jardim
Itatinga (Foto: Reprodução/ Google Street View)
Além da estigmatização, para
Diana, o isolamento tira dessas mulheres o direito à diversidade urbana.
"Seu direito à cidade é constantemente violado, impedindo-as de se apropriarem
da cidade como cidadãs", afirma.
Decadência?
Apesar da concorrência com outros
tipos de serviços sexuais, especialmente depois da internet, a professora não
acredita que a área esteja decadente. "Pelo contrário, existem vários
novos empreendimentos sendo abertos no Jardim Itatinga, acredito que em função
do crescimento das atividades no entorno do bairro, com a expansão do Aeroporto
de Viracopos", destaca.
Para Diana, com a criação do
Jardim Itatinga, o planejamento urbano conseguiu realizar o seu objetivo de
separação, isolamento e confinamento. "Ao mesmo tempo produzindo um
território marginal e estigmatizado: deu nome próprio e um lugar próprio para a
prostituição na cidade, e mais, tornou o bairro um dos destinos da atividade
mais conhecidos do país", finaliza.
Prefeitura
Procurada pelo G1 a prefeitura
destacou que oferece no bairro a mesma estrutura do resto da cidade e que não
há segregação. Além disso, disse que o Centro de Saúde do Jardim Itatinga
fornece testes rápidos de HIV, sífilis e hepatite e que essa unidade é a única
da cidade a disponibilizar além do preservativo masculino, o feminino e o em
gel para a população. No entanto, a prefeitura não soube informar o número de
profissionais do sexo no bairro.
Jardim Itatinga, em Campinas, na
década de 90 (Foto: Reprodução/Arquivo EPTV).
Fonte : G1 Globo
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