Tenho ouvido várias histórias de
garotas em idade escolar relatando o mesmo fato. Parece ter se tornado uma
tendência generalizada a proibição do uso de certas peças de roupa nas escolas:
shorts, minissaias, bermudas curtas e tudo o que possa “evidenciar” o corpo das
meninas.
Por Marcia Tiburi
As jovens andam estarrecidas e se
questionam sobre o absurdo dessas decisões. Várias vezes querem “manifestar”.
Já perceberam o poder do ativismo. Pensam em “manifestar”, pois sua geração
pegou o sentido da política enquanto coisa que se faz tomando as ruas. Essas
jovens despertaram para o básico elemento da política já na infância. Vivem nos
tempos de Malala Youzafzai e sabem muito bem quem ela é.
Sabem que o poder precisa da voz.
E que é preciso dizer o que se pensa. Assim como é preciso expressar-se por
meio da roupa que se usa.
Elas já sabem, e saberão cada vez
mais que a roupa é política.
Além disso, as garotas proibidas
de usar shorts – e peças do tipo – perceberam o machismo inerente à instituição
escolar. Sabem que o machismo em nossa sociedade é estrutural. Perceberam que
estão sendo tolhidas na sua expressão pessoal, e mais ainda, tem consciência da
injustiça de gênero que sofrem.
Sabem que seus corpos estão sendo
medidos pelos olhares dos meninos, que estão sendo marcados pelo critério da
sexualidade. Elas sabem que a sexualidade dos meninos como “sujeitos” está
sendo incentivada, enquanto elas estão sendo marcadas como “objetos”. Sabem que
o olhar dos homens enquanto olhar de um “predador” sobre as mulheres está
garantido. Mas sabem algo bem grave que até agora está mantido como uma espécie
de segredo: é a instituição escolar que promove este olhar.
A instituição escolar, que teria
o papel de esclarecer sobre questões conflituosas e ideológicas, proíbe que as
meninas usem uma peça de roupa, ensinando que se escondam e sintam vergonha.
Ensina também que sintam culpa, caso surja qualquer questão relativa aos gestos
dos meninos em relação ao corpo feminino.
Ao mesmo tempo, as garotas sabem
muito bem que os garotos estão sendo protegidos. E que elas estão sendo não só
desprotegidas (sob a alegação de estarem sendo protegidas), mas desrespeitadas
e aviltadas. Sabem que o direito de expressão e de conforto físico lhes é
tirado, enquanto se dá aos garotos o direito do preconceito com todo o rol de
atitudes simbólica e fisicamente violentas que dele surgem.
Ensina-se a um menino que ele tem
o “direito” de olhar para o corpo de uma garota sem respeito, enquanto se
ensina às meninas a terem vergonha de seu corpo e a se sentirem culpadas, mas
também a aceitarem o preconceito sem questionar, coisa que elas não estão mais
querendo. Ensina-se a elas que estariam sempre “provocando” o seu próprio
algoz. Provocando o seu ofensor. Cinismo maior, impossível. E elas já
perceberam isso.
É a este cinismo estrutural na
cultura, levado a cabo pela instituição escolar que devemos chamar de Educação
para o machismo.
Ela é ruim para as mulheres pela
violência que provoca em todos os níveis (e por subestimar a inteligência e o
lugar concreto das mulheres na vida pública da qual a escola é um laboratório).
Mas é também ruim para os homens que são reduzidos a algo como “animais
bestiais potencialmente violentos”, a “idiotas sem limites”, cuja violência e
idiotice pode irromper a qualquer momento quando venham a deparar-se com um
shorts pela frente.
Se levarmos a sério o que esta
educação para o machismo nos pede, termos que tomar medidas drásticas. Se a
escola fosse consequente com seus propósitos e atos, colocará os meninos em
jaulas o mais cedo possível.
A coisa toda é tão autoritária
que não é possível que continue vingando. A educação para o machismo é a
educação para a violência que não quer se chamar de violência. Mas esta
violência está cada vez mais visível. Essa educação para o machismo, que é
educação para a violência, é também educação para a burrice, pois em vez de
abrir os olhos, coloca tapumes na ideologia de gênero pensando que as meninas
não vão perceber o que está acontecendo. Subestima a inteligência da população
de meninas e de todos os que combatem o sexismo e o machismo.
Impressionante é que a
instituição escolar que deveria promover a inteligência intelectual e moral,
seja ela mesma tão burra. A burrice estrutural da instituição combina com a
burrice machista. As duas se entrelaçam na estrutura de fundo das instituições
que sempre descartam os indivíduos críticos. Na falta de argumentos
respeitáveis a burrice é a vitória pela violência. O Estado achando que vai
proibir professores de falar em gênero nas escolas desde a retirada da questão
dos planos de educação é apenas a versão formal dessa violência toda…
Ninguém está livre dela. Mas
tanto as vítimas quanto os que combatem a violência não estão nem um pouco
acomodados.
As garotas não se deixam
subalternizar e vitimar e, com a roupa que quiserem, vão à luta, sabendo que a
luta política das mulheres é feminista, e que não tem fim.
Fonte: Revista Cult
Marcia Tiburi é filósofa
Marcia Tiburi é graduada em
filosofia e artes e mestre e doutora em filosofia. Publicou diversos livros de
filosofia, entre eles “As Mulheres e a Filosofia” (Ed. Unisinos, 2002),
Filosofia Cinza – a melancolia e o corpo nas dobras da escrita (Escritos,
2004); “Mulheres, Filosofia ou Coisas do Gênero” (EDUNISC, 2008), “Filosofia em
Comum” (Ed. Record, 2008), “Filosofia Brincante” (Record, 2010), “Olho de
Vidro” (Record 2011), “Filosofia Pop” (Ed. Bregantini, 2011) e Sociedade
Fissurada (Record, 2013). Publicou também romances: Magnólia (2005), A Mulher
de Costas (2006) e O Manto (2009), Era meu esse Rosto (Record, 2012). É autora ainda
dos livros Diálogo/desenho, Diálogo/dança, Diálogo/Fotografia e Diálogo/Cinema
(ed. SENAC-SP).
É professora do programa de
pós-graduação em Educação, Arte e História da Cultura da Universidade Mackenzie
e colunista da revista Cult.
Nenhum comentário:
Postar um comentário