Mas é verdade que no Brasil tem
gente que não levanta para pegar um copo de água?” “É verdade que existe
empregada que não pode sentar na mesa?” Infelizmente, digo para eles, é.
Por Nina Lemos
“Val, me traz um copo de água”,
por favor?
“Val, você pode colocar a mesa,
por favor?”
“Val, você pode tirar a mesa, por
favor?
Val, você pode trazer um sorvete
para a gente?”
Esse tipo de pedido é repetido
sem parar em “Que horas ela volta”, o filme gênio de Anna Muylaert estrelado
com maestria por Regina Casé.
Val, por favor! Val é a empregada
da casa, uma pessoa “praticamente da família”. Val é uma escrava.
A familia de classe média alta
brasileira, sentada na mesa, faz os pedidos, e Val vem e volta. Algumas vezes
eles estão sentados na mesa da cozinha, ao lado da Val, mas pedem para ela:
“você pode pegar água?” Ela abre a geladeira. Os membros da familia, pai
artista, mãe fashionista e filho adolescente gente boa, parecem incapazes. Eles
não se movem. Eles não levantam a porra da bunda da cadeira. No meio do filme a
vontade é entrar na tela e bater neles.
Estou em um cinema em Kreuzberg,
Berlim, e eu sei que é assim na vida real no meu país. A platéia, formada por
brasileiros e alemães, dá risos nervosos. Desconfio que os risos nervosos sejam
mais de brasileiros como eu, que conhecem bem essa situação e sabem que a
escravidão existe no Brasil de uma maneira sinistra. E de uma forma que a gente
ainda não foi capaz de acabar.
Vez ou outra eu falo nervosa para
o alemão: “é assim mesmo”.
Na saída, encontro uma amiga
brasileira, tambem acompanhada de namorado europeu e ela me diz: “deu um pouco
de vergonha”. Concordamos que a vergonha é total.
No café, eu explico para ele. “É
assim, não, não na minha família, não com os meus amigos, mas sim, eu conheço gente
assim.” “Eu sei, se você está dizendo eu acredito. Mas quem na Europa vai
acreditar que essa situação é real? Acho que vão pensar que a diretora é
genial, mas que criou uma historia surrealista muito boa, não que isso seja
real. Porque isso é muito bizarro. Isso é inconcebível.”
Cara de vergonha. E repito, pela
milésima vez em dois anos: “é assim mesmo! É absurdo! Mas é assim mesmo!”
Lembro de um ex de esquerda que
brincava no inicio dos anos 2000: “ é bom morar no Brasil porque aqui temos
escravos”. E gargalhava. Isso antes do politicamente correto chegar e, graças a
deus, acabar com esse tipo de humor podre.
Na minha vida passada recente, eu
tinha empregada duas vezes por semana em São Paulo só para catar a minha
bagunça. Não sou de família rica. Sou de família de classe média média com
momentos de dureza, mas na casa da minha avó sempre teve empregada. Quando eu
era bebê meus pais tiveram empregada que dormiu em casa. Eu tive babás por
alguns momentos.
O alemão fala: lembro que a minha
mãe dizia que o sonho dela, se ganhasse na loteria, era ter uma empregada
domestica.”
Conto para uma alemã mãe de três
filhos que muitas crianças brasileiras não ajudam em casa, não fazem nada,
pedem tudo para a babá. Ela diz: “não acredito, mas elas são muito ricas, não?”.
“Não, são classe media como você”. Ela faz cara de choque e diz: “fulana, vem
aqui ouvir a história que a Nina está contando, você não vai acreditar.”
Uma criança alemã não pede um
copo de água, ela abre a geladeira e pega. Elas não pedem um sanduíche, elas
fazem. Tenho dois enteados alemães, sei do que estou falando.
Há um ano e meio não, não tenho
faxineira. Sim, a minha casa vive uma zona. Sim, eu cozinho. Sim, eu lavo
louça, sim, eu lavo as minhas roupas e as estendo em um varal. Tentem. É muito
fácil. Eu juro.
Esse não é um texto vira lata
falando que, oh, veja bem, a Europa é tão superior. É apenas para dizer que
talvez de longe a gente enxergue melhor certas coisas.
E eu sei mais que nunca que o
jeito que patrões como os da Val vivem é inaceitável.
E eu sei mais que nunca que a
escravidão existe sim no Brasil, onde descolados levam babás vestidas de branco
para brincar com os filhos na praia do Arpoador enquanto eles fumam um e falam
de arte.
Pronto. Falei.
E obrigado Anna Muylaert, por
abrir a porta do armário e mostrar essa realidade para o mundo.
Fonte: Revista Tpm
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