Mariana teve um fax esfregado em
seu rosto pela chefe. Adriana foi chamada várias vezes à sala do gerente para
que ele falasse de “seus sentimentos” para ela. Luiza resistiu às investidas do
supervisor e ouviu que ele “poderia acabar com sua carreira”. Marcela foi
apalpada pelo dono do bar onde trabalhava. Gustavo recorreu ao psiquiatra por
causa da pressão excessiva de seu gerente.
Ao buscar relatos de
profissionais que tenham sofrido assédio no trabalho, a reportagem ouviu uma
dezena de pessoas sempre sob a condição de que seu nome e da empresa não fossem
revelados. A quantidade e velocidade com que os depoimentos surgiram indicam
que este é um problema comum no mercado brasileiro, como aponta uma pesquisa
feita pelo site Vagas.com e publicada com exclusividade pela BBC Brasil.
Dos 4.975 mil profissionais de
todas as regiões do país ouvidos no fim de maio, 52% disseram ter sido vítimas
de assédio sexual ou moral. E, entre quem não passou por esta situação, 34% já
presenciaram algum episódio de abuso.
“Sofri assédio em diversas
empresas”, diz Mariana, de 30 anos. A primeira foi quando era estagiária. Até
hoje, Mariana lembra de como a chefe ficou furiosa quando ela não encontrou o
fax que estava caído atrás de uma mesa. Mariana diz que este episódio foi
apenas um de uma série. “Ela me tratava muito mal durante toda a semana e, na
sexta-feira, me dava um presente para compensar.”
Em outro emprego, ela e os
colegas tinham de lidar com os frequentes gritos do acionista da empresa: “Viu
quanta formiga tem no chão? É de tanto doce que você está fazendo!”. Também era
comum ouvir pelo telefone que ela tinha 30 segundos para descobrir o que estava
ruim em seus relatórios, seguido por uma contagem regressiva: “30, 29, 28…”.
No caso mais recente, Mariana
trabalhava em uma grande empresa farmacêutica, sob um executivo conhecido por
pressionar sua equipe e, assim, conseguir bons resultados. “Ouvi de um colega:
‘Não posso mais te elogiar. Seu chefe não gosta. Diz que você vai virar
estrela’.” Ela conta que saía de reuniões chorando “ao menos uma vez por
semana”. Tinha sua performance elogiada na avaliação anual, mas recebia do
chefe um péssimo retorno em particular. “Ele era inteligente. Não fazia nada em
público. Preferia me minar e me diminuir psicologicamente.”
Após quatro anos e fazendo
terapia por causa do trabalho, Mariana decidiu mudar de emprego. “Quando ia
trabalhar, tinha dor de estômago e ânsia de vômito. Pensei em virar dona de
casa para não passar mais por isso. Tenho medo dele até hoje. No tempo que
trabalhei para ele, a equipe toda mudou. Só ele ficou – e acabou promovido.”
‘Você precisa saber de meus sentimentos’
O Vagas.com enviou o questionário
para 70 mil profissionais de sua base de dados, escolhidos entre os que tinham
atualizado seu currículo nos seis meses anteriores e tinham ao menos um emprego
em seu histórico.
O assédio moral foi definido como
“ser motivo de piadas e chacotas, ofensas, agressões verbais ou gritos
constantes, gerando humilhação ou constrangimento individual ou coletivo”,
enquanto o assédio sexual trazia como definição “receber investidas com tom
sexual – cantadas, olhares abusivos, propostas indecorosas”.
Nos resultados, o assédio moral
foi identificado como o tipo de abuso mais comum, apontado por 47,3% dos
profissionais que responderam a pesquisa, enquanto 9,7% disseram ter sofrido
assédio sexual. Entre os entrevistados, 48% disseram não ter sofrido assédio.
Alguns entrevistados declararam ter sofrido os dois tipos de assédio.
Mas os resultados mostram que,
enquanto o assédio moral foi relatado em proporções semelhantes por homens
(48%) e mulheres (52%), o sexual é quatro vezes mais comum entre elas: 80% das
pessoas que disseram ter sido vítimas de abuso são do sexo feminino.
Adriana, de 32 anos, foi pega de
surpresa pelo assédio sexual, após trabalhar por dez anos para o mesmo chefe, a
quem considerava um mentor, na área de tecnologia de uma grande empresa do
setor de petróleo e combustível. “Preciso falar dos meus sentimentos por você”,
disse ele ao chamá-la em sua sala. Segundo Adriana, foi apenas a primeira vez.
“Ele continuou mesmo eu deixando
claro que não tinha interesse. Ele me chamava, e eu não tinha como negar,
porque poderia ser sobre trabalho. Mas, quando eu chegava, ele fechava a porta
e falava que queria me comprar uma joia, me levar para almoçar”, diz Adriana,
que diz ter suportado a situação por dois anos. “Chorava muito de raiva. Fui
para a terapia, fazia massagem, tomava floral, tudo para me acalmar. Chegou a um
ponto em que me via fugindo dele. Só acabou quando ele se aposentou.”
No entanto, assim como 87,5% das
vítimas ouvidas pela pesquisa, Adriana não denunciou seu assediador. “Tinha
medo. Não possuía provas, e ele era responsável por me promover ou me mandar
embora. Também não confiava no RH. Havia muitos casos de assédio na empresa. E,
quando foram denunciados, o RH disse que não podia fazer nada. E a vida da
pessoa virou um inferno.”
Adriana ainda ficou mais dois
anos na empresa após a aposentadoria do chefe. Acabou se desligando e mudando
de profissão. Hoje, é terapeuta corporal. “Não queria mais ter chefe.”
Entre os receios mais comuns
entre as vítimas de assédio que não o denunciaram, estão perder o emprego (39%)
e sofrer represália (31,6%). Não se trata de um medo infundado, pois, entre os
que denunciaram, 20,1% afirmaram terem sido demitidos e 17,6% disseram ter
sofrido algum tipo de perseguição.
Exceção
Neste contexto, Gustavo foi
exceção. Ele diz que, após quase um ano sendo “perseguido” por seu supervisor,
decidiu abrir um processo contra a multinacional do setor aéreo para a qual
trabalhou por quatro anos.
Gustavo conta que o comportamento
de seu gerente mudou depois de ele levar ao setor de RH da sede da companhia,
nos Estados Unidos, sua insatisfação com o plano de carreira da subsidiária
brasileira. “Quando ele descobriu, passou a querer minha cabeça”, diz Gustavo.
“Começou a me chamar com
frequência na sua sala para explicar pequenos atrasos e horas extras, algo que
nunca tinha feito. Como todos os funcionários trabalhavam numa mesma sala, as
pessoas começaram me perguntar o que estava acontecendo. Algumas até se
afastaram de mim para não virarem um alvo também.”
Gustavo diz que seu chefe também
passou a sobrecarregá-lo de trabalho ou encarregá-lo de tarefas que ele não
sentia ser capaz de cumprir com a qualidade esperada, como abrir uma nova área
da empresa. “Quando o questionei sobre isso, ele me disse ironicamente: ‘Mas
você não queria crescer profissionalmente?'”, diz Gustavo. “Passei a ter
problemas de saúde e a beber bastante. Fui medicado por um psiquiatra, porque
não conseguia mais dormir direito.”
Em agosto do ano passado, Gustavo
decidiu deixar a companhia e abrir um processo contra ela. A primeira audiência
será em novembro. “Soube que meu ex-chefe foi afastado por um mês e depois
voltou completamente mudado.”
É um desfecho bastante comum nos
casos de assédio que são denunciados, segundo o estudo da Vagas.com: 74,6% dos
profissionais que denunciaram o abuso disseram que o assediador permaneceu na
empresa.
Problema comum
Para os organizadores do estudo,
o alto índice de respostas mostra que este é um assunto urgente no mercado
profissional brasileiro. Dos 70 mil questionários enviados para os cadastros no
site, 7% participaram, bem acima da média de 0,5% registrada em outras
pesquisas. Destes, 98% responderam a todas as perguntas.
“Isso mostra que muitas pessoas
são impactadas pelo assédio no trabalho ou têm algo para contar”, diz Sylvia
Fernandez, que coordenou a realização do pesquisa. “Infelizmente, é um problema
bastante comum. Os profissionais querem que isso seja debatido e que haja
consequências, mas ainda predomina a sensação de impunidade.”
José Carlos Wahle, sócio da área
trabalhista do Veirano Advogados, enxerga uma melhora nesta questão no mercado
brasileiro nos últimos anos, devido à maior presença de multinacionais no país
e à internacionalização de companhias brasileiras.
“Esta maior presença de grandes
empresas, que têm ações em bolsa e prezam por sua imagem, levou a uma maior
adoção de bons valores corporativos e um aumento do número de companhias que
determinam padrões de conduta e orientam seus funcionários quanto a este tipo
de comportamento”, afirma Wahle.
“Também há uma maior percepção
por parte dos funcionários em relação a seus direitos. Antes, havia problemas
mais urgentes, como o trabalho escravo. Hoje, nosso mercado está mais maduro, o
que nos permite discutir o assédio. Isso não quer dizer que é algo raro nem que
está perto de acabar. Vem melhorando, mas ainda há um abismo entre a realidade
e como deveria ser.”
Assédio sexual e moral: o que é?
Não há uma lei específica que
lida com assédio moral no Brasil, como explica José Carlos Wahle, sócio da área
trabalhista do Veirano Advogados. “É um conceito relativamente novo”, afirma o
advogado.
Ele explica que, para que o
assédio seja configurado, é preciso que o assediador seja hierarquicamente
superior ao assediado, em que haja abuso de poder que possa prejudicar o
subordinado. “A secretária não assedia o chefe, mas o chefe pode assediar a
secretária”, exemplifica.
No caso do assédio moral, é
preciso haver uma conduta reiterada, agressiva ou humilhante, por parte do superior
hierárquico. “Uma piada ofensiva ou uma ameaça isolada não são assédio, apesar
de serem condutas possivelmente ilícitas e passíveis de punições”, diz Wahle.
“Mas, se um chefe pedir sistematicamente para que um funcionário realize
tarefas e ameace com demissão caso esta ordem seja descumprida, isso constitui
assédio.”
Já no caso do assédio sexual,
basta uma única investida para ele se configurar como tal. “É quando uma pessoa
usar sua posição de chefia para conseguir uma vantagem sexual que não obteria
de outra forma”, afirma Wahle.
“Este tipo de assédio é mais
difícil de provar, porque são conversas individuais que não costumam serem
registradas por escrito. Mas ainda assim é possível, porque o juiz avalia os
depoimentos, e normalmente o relato de quem mente costuma ser inconsistente.”
Fonte: Geledes
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