Texto critica o fracasso das
negociações internacionais, a privatização da água, e defende ajuda aos mais
pobres.
Em vez de falar aos céus com uma encíclica sobre Deus vociferando
contra os pecados contra a fé e a moral, Francisco desceu até os sete infernos
dos detentores do poder que, com sua ganância em querer dominar a Terra segundo
seus cálculos capitalistas, deixaram para as novas gerações um planeta “de
escombros, desertos e sujeira”.
Por Juan Arias
A primeira encíclica de
Francisco, Laudato Si (Louvado Seja), dedicada à “dívida ecológica” contraída
com nosso planeta, confirmou, se é que era necessário, que a Igreja tem hoje em
sua liderança um Papa que foge de todos os esquemas do passado. Nos
encontramos, de fato, diante do mais diferente bispo de Roma desde os tempos do
apóstolo Pedro.
Sua primeira encíclica coloca do
mesmo lado a fé e a ciência, Deus e a Terra e cria um novo pecado, o ecológico,
poderá fazer estremecer muitos católicos tradicionais.
Em vez de falar aos céus com uma
encíclica sobre Deus vociferando contra os pecados contra a fé e a moral,
Francisco desceu até os sete infernos dos detentores do poder que, com sua
ganância em querer dominar a Terra segundo seus cálculos capitalistas, deixaram
para as novas gerações um planeta “de escombros, desertos e sujeira”.
Francisco, ao melhor estilo dos
teólogos da libertação (condenados ao ostracismo por seus antecessores por
serem considerados teólogos mais do humano do que do divino) se coloca ele
mesmo como a versão mais moderna de “teólogo da ecologia”, na expressão criado
pelo teólogo brasileiro Leonardo Boff.
A nova encíclica quebra
paradigmas na Igreja que um dia condenou Galileu e que viveu um longo divórcio
de séculos com a ciência e os não crentes. Nela se dá voz e credibilidade aos
cientistas modernos mais sérios, não importa se religiosos ou não, empenhados
em demonstrar que somos nós, com nossa cobiça e descuido, os responsáveis pelas
graves mudanças que já ocorrem no planeta.
Lendo com atenção a nova
encíclica fica claro que o Papa, que apostou desde o primeiro momento de seu
pontificado pela periferia pobre e saqueada da Terra, pela escória humana, com
clara e valente visão evangélica, sabe o que está em jogo.
Sabe que a Igreja joga seu
presente e seu futuro, sua credibilidade e a própria fidelidade a sua mensagem
original, não nas velhas teologias e direitos canônicos, mas na defesa do que é
mais nosso como é a Terra. Uma riqueza que é social, que não deve ter donos
definitivos, mas que pertence a todos, especialmente aos que mais sofrem as
consequências de sua exploração pelos que acreditam ser deuses intocáveis do
poder.
Uma encíclica que aborda um tema
fundamental que afeta a todos, crentes, agnósticos e ateus, ricos e pobres, por
seu interesse universal e os perigos que espreitam a humanidade inteira, e é
por sua vez a mais ecumênica de todas as até agora proclamadas por um
pontífice.
Em um mundo órfão de líderes
mundiais capazes de imporem-se por sua força moral e de enfrentarem os tiranos
como fez Jesus com Herodes, a arriscada decisão do papa Francisco de dedicar
sua primeira encíclica não ao céu, mas à Terra, condenando os responsáveis pelo
novo holocausto ecológico, o consagra como uma grande líder mundial não somente
espiritual, mas também social e até mesmo político.
Papa Francisco abraça a teoria científica sobre o aquecimento global
Em sua primeira encíclica, o papa
Francisco fala de anidrido carbônico, de óxidos de nitrogênio, de combustíveis
fósseis contra energias renováveis, de fertilizantes e detergentes que poluem
os rios e mares, de corredores ecológicos... É, definitivamente, uma encíclica
(Laudato Si) carregada de argumentos científicos em que o responsável máximo da
Igreja católica abraça as evidências do vínculo entre o aquecimento global e os
humanos.
"Há um consenso científico
muito consistente", diz o Pontífice, "e indica que nos encontramos
diante de um preocupante aquecimento do sistema climático". "É
verdade que há outros fatores (como a atividade vulcânica, as variações da
órbita e do eixo da Terra ou o ciclo solar), mas numerosos estudos científicos
indicam que a maior parte do aquecimento global das últimas décadas se deve à
grande concentração de gases de efeito estufa (anidrido carbônico, metano,
óxidos de nitrogênio e outros) emitidos sobretudo em decorrência da atividade
humana”, afirma Francisco, que assim isola os negacionistas da mudança
climática. O papa denuncia que “há interesses particulares em demasia, e o
interesse econômico acaba prevalecendo sobre o bem comum muito facilmente, manipulando
as informações para não terem seus projetos prejudicados”.
O último relatório de avaliação
do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), do qual
participam mais de 800 cientistas, concluiu que “as emissões de gases de efeito
estufa e os estímulos antropogênicos foram a causa dominante do aquecimento
observado desde meados do século XX". E mostrou que os efeitos dessa
mudança já são observados em todo o planeta. “Ao que tudo indica, surgem
sintomas de um ponto de ruptura”, disse agora o Papa, "causados pela
grande velocidade das mudanças e da degradação do meio ambiente.” Esses
sintomas se “manifestam tanto em catástrofes naturais regionais como em crises
sociais, inclusive financeiras”.
José Manuel Moreno, catedrático
de Ecologia e membro do IPCC, crê que a encíclica contém “uma mensagem muito
importante advertindo que o homem está transformando o planeta e que existem
evidências científicas disso”.
A encíclica identifica na raiz do
problema do aquecimento ser “potencializado especialmente pelo padrão de
desenvolvimento baseado no uso intensivo de combustíveis fósseis”. O Papa
indica o caminho a seguir: "a tecnologia baseada em combustíveis fósseis
muito poluidores —principalmente o carbono, mas também o petróleo e, em menor
medida, o gás— precisa ser substituída progressivamente e sem demora”.
O Pontífice dá um passo além, ao
vincular a mudança climática com as desigualdades no planeta. “O aquecimento,
originado pelo enorme consumo de alguns países ricos, tem repercussões nos
lugares mais pobres da Terra, especialmente na África, onde o aumento da
temperatura, aliado à seca, causa estragos no rendimento dos cultivos.” José
Manuel Moreno avalia o vínculo que o Papa estabelece entre os problemas
ambientais e a pobreza. Em sua opinião, seria necessário que algumas
organizações, a exemplo da Igreja, se pronunciassem sobre os efeitos nos países
menos desenvolvidos.
Yolanda Kakabadse, presidenta do
Fundo Mundial pela Natureza (WWF), aplaudiu nesta quinta-feira a mensagem do
Papa. “A encíclica inclui uma perspectiva moral muito necessária para o debate
sobre o clima”. O Greenpeace, por sua vez, considerou que as palavras do Papa
devem “tirar os chefes de governo de sua complacência” e “estimulá-los a
aprovar leis estritas em seus próprios países para proteger o clima e entrar em
acordo em torno de um protocolo climático poderoso em Paris”.
A encíclica é publicada num
momento em que o debate sobre o aquecimento está muito presente, já que Paris receberá
no fim do ano a cúpula internacional na qual se deverá aprovar o novo protocolo
de redução de emissões de gases de efeito estufa, que será aplicado a partir de
2020. "As cúpulas mundiais sobre o ambiente dos últimos anos não
corresponderam às expectativas porque, por falta de decisão política, não
chegaram a acordos ambientais globais realmente significativos e eficazes”,
critica o Papa na encíclica.
Francisco vai ao encontro de um
sentimento que parece majoritário. Uma pesquisa recente com 10.000 pessoas em
75 países, o World Wide Views Climate and Energy, mostrou que 70,8% dos
entrevistados acham que as negociações sobre o clima, que a ONU promove desde
1992, não fizeram o suficiente para lutar contra o aquecimento global.
Diante do desafio de tentar deter
esse processo, a encíclica afirma que há “responsabilidades diferenciadas”
frente à mudança climática. “É necessário que os países desenvolvidos
contribuam para saldar essa dívida (ecológica) limitando de maneira relevante o
consumo de energia não renovável e aportando recursos aos países mais
necessitados para apoiar políticas e programas de desenvolvimento sustentável”.
Entra-se assim num dos debates que estão concentrando as atenções nos meses
precedentes à cúpula de Paris: a petição que os países em desenvolvimento estão
fazendo para que as economias mais ricas os ajudem economicamente para lutar
contra a mudança climática.
Biodiversidade e privatização da água
A encíclica do Papa não só aborda
as causas e consequências da mudança climática. Também entra em outros
problemas e os especifica.
Água. Francisco adverte para a
perda de qualidade das águas, para a contaminação dos aquíferos e para os
problemas de acesso a esse recurso na África. Mas vai além. “Enquanto a
qualidade da água disponível se deteriora constantemente, em alguns casos
avança a tendência a privatizar esse recurso escasso, convertido em mercadoria
regulada pelas leis do mercado”. Em sua opinião, “o acesso à agua potável e
segura é um direito humano básico, fundamental e universal, porque determina a
sobrevivência das pessoas, e portanto é condição para o exercício dos demais
direitos humanos”.
Biodiversidade. "A perda de
florestas e bosques implica ao mesmo tempo perda de espécies que poderiam
significar no futuro recursos sumamente importantes não só para a alimentação,
mas também para a cura de doenças e outros múltiplos fins”. O Papa fala do
“alerta” dado pela extinção de um mamífero ou de uma ave, por sua maior
visibilidade. Mas acrescenta: "para o bom funcionamento dos ecossistemas
também são necessários os fungos, as algas, os invertebrados, os insetos, os
répteis e a inumerável variedade de micro-organismos”. Também critica o desmate
dos “pulmões do planeta”, como a Amazônia ou a bacia fluvial do Congo.
Oceanos. "O problema
crescente das águas contaminadas e da proteção das áreas marinhas, acima das
fronteiras nacionais, continua representando um desafio importante”, afirma o
Papa. “Temos que entrar em acordo para criar modelos de governança para o
conjunto do que se costuma chamar de patrimônios mundiais”, propõe. Ele também
alerta na encíclica para os problemas das barreiras de coral, que “hoje já
estão ou estéreis ou em estado contínuo de declínio”.
Fonte: El Pais
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