Ela estava parada, estática, sem reação. A dor era insuportável. Ela
não tinha mais sexo, estava mutilada. Depois, vieram as folhas de cana que
desfiguraram seu rosto, enquanto corria tentando escapar. Talvez a culpa
tivesse sido dela. Por ser mulher. Por ser prostituta.
O trecho acima aparenta ser
ficcional, mas diz respeito ao abuso sofrido por uma colega da prostituta Ana Paula,
a Paulinha, de Ribeirão Preto – SP. Experiências como essa são realidade na
vida de muitas mulheres brasileiras, inclusive as garotas de programa. A
violência contra mulheres e prostitutas é, muitas vezes, invisível. De acordo
com a psicóloga social Mariana Hasse, a dificuldade de as vítimas entenderem
que ser obrigada a fazer sexo, mesmo que com o parceiro, é estupro, está vinculada à ideia de que o sexo é
obrigação da mulher. “De uma forma geral, há um desdém com a violência que é
‘mais leve’. Há uma banalização dessa violência. E, com as prostitutas, isso é
um pouco mais acentuado: ‘como você sofreu violência se o cliente estava
pagando?'”, explica.
O fato de a sociedade fechar os
olhos para a violência sofrida por profissionais do sexo está atrelado à
repressão do comportamento feminino. Fabiana Rodrigues, professora do Centro
Universitário Salesiano de São Paulo (Unisal), estudou como as mulheres se
educam na prática da prostituição. Segundo ela, “o estigma da prostituta não
recai apenas sobre a mulher que exerce essa função, mas sobre todas as
mulheres. Temos medo de sermos taxadas como prostitutas, como se ser prostituta
fosse ser menos. Esse estigma é posto para nos controlar, para que continuemos
sendo comedidas”, comenta.
No Brasil, a agressão às
mulheres, independente da prática profissional, é vista como um problema da
Saúde Pública, devido às consequências geradas à vítima. A sanção da Lei n°
11.340, de 7 de agosto de 2006, mais conhecida como Lei Maria da Penha, criou um
mecanismo de combate à violência contra a mulher. “O agressor é, geralmente,
parceiro íntimo. As vítimas são mulheres economicamente independentes e
costumam ter entre 18 e 49 anos – a faixa etária produtiva”, afirma Hasse. Para
os estudiosos no assunto, o abuso tem relação com uma tentativa de controle da
mulher por parte dos companheiros. “A violência contra a mulher é decorrente
dos padrões tradicionais de gênero e do estabelecimento das relações de poder”,
conclui.
De acordo com o Ministério da
Saúde, o atendimento às mulheres vítimas de agressão, nos serviços de saúde,
deve incluir entrevistas, exames médicos e psicológicos, o uso e acompanhamento
de métodos contraceptivos e, nos casos de abusos sexuais seguidos de gravidez,
a compreensão da necessidade e do desejo da mulher em interromper ou não a
gestação.
De acordo com a pesquisa
“Caracterização da violência física sofrida por prostitutas do interior
piauiense”, realizada por profissionais da área de enfermagem, há um grande
registro de agressões a prostitutas. Os dados dizem respeito a apenas uma
região, mas refletem a realidade de todo o país. (Arte: Paula Reis)
De acordo com a pesquisa
“Caracterização da violência física sofrida por prostitutas do interior
piauiense”, realizada por profissionais da área de enfermagem, há um grande
número de registros de agressões a prostitutas. Os dados dizem respeito a
apenas uma região, mas refletem a realidade de todo o país. (Arte: Paula Reis)
As recorrentes práticas violentas
contra prostitutas motivou as profissionais a alterar o seu horário de trabalho
para o período diurno. Além das novas jornadas, as mulheres passaram a ficar
mais atentas às placas dos veículos, como forma de identificar os agressores.
“Foram muitos estupros, assaltos, espancamentos. Então desenvolvemos um método
para tentar reduzir essa violência. De fato, conseguimos minimizar um pouco,
porque até então todo mundo era puta e não tinha direito a nada”, conta a
garota de programa Paulinha.
Prostituição e segurança pública
“A gente sofria muito com a
violência policial. Eu sempre consegui correr, sempre dei sorte. Nunca apanhei,
mas já vi muitas amigas apanharem. Tínhamos um delegado que costumava fechar as
duas ruas onde era localizado o bar em que trabalhávamos, e quem estivesse ali
ia para a viatura ou dentro de camburões. E havia muita agressão contra as
prostitutas. E nossas queixas da agressividade policial eram frequentes –
aquela eloquência toda deles de ficarem pressionando para tirar a gente dali e
acabar com a prostituição”, relata Paulinha.
Mariana Hasse aponta que a
maioria das garotas de programa, em vez de dirigirem-se à Delegacia da Mulher –
que funciona apenas em horário comercial -, procuram delegacias comuns para
registrar boletins de ocorrência, já que a maioria dos casos ocorrem em outros
períodos. “Elas são, muitas vezes, atendidas por homens. Então, o relato que
temos é de que eles não conseguem entender como uma prostituta pode sofrer
violência sexual”, afirma.
É nesse contexto que surge, em
1998, a ONG Vitória Régia, de Ribeirão Preto, que promove a sensibilização da
Polícia Militar e Civil diante da prostituição. No mesmo ano em que a
instituição foi fundada, a prostituta Selma Heloísa Artigas, conhecida como
Nicole, foi arrastada por 16 km pelas ruas da cidade. A vítima, na época com 22
anos, não sobreviveu. O empresário Pablo Russel Rocha, autor do crime, ainda
está sob julgamento.
A ONG Vitória Régia defende os
interesses das profissionais do sexo por meio da promoção da cidadania e de
atividades de cunho educacional e social. Nesse sentido, são organizadas
palestras para reforçar os direitos e deveres das prostitutas, bem como o papel
da segurança pública. “Prostitutas merecem respeito e têm voz própria”, afirma
a assistente social da ONG, Regina Brito.
Regina Brito, junto à ONG Vitória
Régia, trabalha o estigma da prostituição, o grau de conhecimento sobre Doenças
Sexualmente Transmissíveis (DSTs) e a conscientização a respeito do uso de
preservativos.
Regina Brito, junto à ONG Vitória
Régia, trabalha o estigma da prostituição, o grau de conhecimento sobre Doenças
Sexualmente Transmissíveis (DSTs) e a conscientização a respeito do uso de
preservativos. (Foto: Nayara Kobori)
Atualmente, além de casos de
violência contra as prostitutas, a ONG estimula a conscientização dessas
profissionais e de toda a sociedade. Entre os serviços oferecidos pela
instituição estão a entrega monitorada de preservativos e gel íntimo, oficinas
de sexo seguro e de cidadania, encaminhamento social, psicológico e jurídico e
a promoção de ações de saúde e educação. “Eram as próprias prostitutas que
desenvolviam as palestras, montavam as aulas e passavam com muita propriedade o
que é importante para a categoria. Independente da profissão, todos temos
direito à cidadania”, reforça Regina Brito.
Submissão do feminino ao masculino
Fabiana Rodrigues defende que as
práticas violentas contra as mulheres – concebidas como gênero de construção
social, ou seja, independente de condições biológicas – são frutos do reforço
de modelos, práticas sociais e instituições que estereotipam a figura da
mulher. Na palestra Mulher e a Abolição Inacabada: exploração sexual,
prostituição e racismo, a professora e a historiadora Cidinha da Silva abordam
as relações que moldam a representação da mulher na sociedade.
“As mulheres são, de certa forma,
educadas para agradar ao outro – ao homem principalmente. E esse tipo de
educação vai fazendo com que as mulheres renunciem à autonomia”, comenta
Fabiana a respeito da educação sexista que impõe a passividade à mulher e a
atividade ao homem.
“Nem sempre temos esse silêncio
do corpo: ousamos falar, ou ter uma certa sensualidade própria. E só do fato de
não respondermos a esse estereótipo de gênero que é imposto, as pessoas já
acham que tem algo errado”, comenta Fabiana. (Foto: Nayara Kobori)
“Nem sempre temos esse silêncio
do corpo: ousamos ter uma certa sensualidade própria. E só pelo fato de não
correspondermos a esse estereótipo de gênero imposto, as pessoas acham que tem
algo errado”, comenta Fabiana. (Foto: Nayara Kobori)
A representação do feminino
geralmente é vista pela ótica do outro e, muitas vezes, como desejo sexual
masculino. Fabiana defende que, quando se rompe com essa premissa e a mulher
deseja sentir prazer, é que surge o problema. “A mulher que quer ter prazer é
taxada como prostituta, ou como dotada de sexualidade descontrolada, primitiva,
selvagem. Essa é a visão de muitos sobre a mulher brasileira”, denuncia.
“Corpos silenciados”, termo utilizado por Fabiana, é segundo ela a base da
violência contra a mulher: o feminino estereotipado e calado. Ao atingir sua
independência, as mulheres rompem as barreiras sociais que lhes foram impostas.
Reportagem: Nayara Kobori
Produção: Paula Reis
Edição: Amanda Lima
Fonte: http://www.reporterunesp.jor.br/
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