Acredito que no Brasil não há
mobilização popular para uma marcha como a “Ni una menos”. Não só por estarmos
mergulhados num profundo momento conservador e pelas pessoas ainda não
reconhecerem o problema da violência contra a mulher como responsabilidade de
toda sociedade, mas também porque vivemos um período de grande despolitização,
exclusão social e banalização da violência, para os quais só há ódio gratuito e
soluções encomendadas como receita de bolo.
Dia 03 de junho de 2015, centenas de pessoas saíram as ruas da capital Buenos
Aires para protestar contra o feminicídio ao grito de “Ni una menos”. A marcha
também ocorreu em 110 cidades da Argentina além de Chile, Uruguai e México. “É
pela vida, chega de mortes”, “o machismo mata”,“nem a roupa nem os costumes
podem justificar o abuso”; foram algumas das frases escritas em cartazes.
As imagens são impactantes.
Milhares de pessoas protestando e pedindo a aplicação da lei de proteção
integral contra a violência as mulheres, aprovada em 2009 mas dependente de
regulamentação efetiva. A frase “Ni una menos” viralizou nas redes sociais e
levou multidões às ruas com o apoio de figuras públicas como a presidenta
Cristina Kirchner, o jogador Lionel Messi, a ativista Estela de Carlotto, a
cartunista Maitena, a atriz Érica Rivas, o Papa Francisco, entre outras. Ao ver
tudo isso, me perguntei: é possível que uma marcha parecida aconteça no Brasil?
Como nasceu a marcha contra os feminicídios
O que iniciou o movimento “Ni una
menos” foi a morte da adolescente Chiara Páez na cidade de Rufino, província de
Santa Fé na Argentina. Chiara (14 anos) estava grávida de quatro meses do
namorado Manuel Mansilla (16 anos). Três dias após seu desaparecimento, seu
corpo foi encontrado pela polícia no quintal da casa de Manuel. Chiara foi
enterrada viva e os pais do adolescente são suspeitos de terem ajudado. Havia
traços de uma substância abortiva no corpo da jovem, portanto as investigações
trabalham com a hipótese de que Chiara foi obrigada a tomar a substância,
passou mal e seu corpo foi ocultado. A população argentina ficou chocada com
esse e outros casos recentes de violência contra mulheres. No país, uma mulher
é morta a cada 35 horas.
Após a divulgação do caso de
Chiara Páez, no dia 12 de maio um grupo de jornalistas iniciou via Twitter uma
campanha para pedir a implementação da Lei 26.485 de proteção integral a
mulher.
“Ni Una Menos” é uma frase
atribuída a poeta e ativista mexicana Susana Chávez Castillo, que lutava contra
as mortes de mulheres em seu país. Foi assassinada em 2011 por denunciar crimes
contra as mulheres. A frase é deriva de um poema apresentado em 1995 onde usou
a expressão: “Ni una muerta más”; em protesto pelos crimes que aconteciam em
Ciudad Juarez, considerada a cidade mais violenta do México.
Ao que parece, a Argentina chegou
num momento extremo. O caso de Chiara é visto como a gota d´água. E aqui no
Brasil? Em maio, tivemos o caso do estupro coletivo de quatro adolescentes no
Piauí. Elas foram agredidas, violentadas e arremessadas do alto de um penhasco.
Uma delas, Danielly Rodrigues (17 anos) faleceu no último domingo. O que falta
para que a população brasileira saia as ruas contra o feminicídio no Brasil?
Marcha “Ni Una Menos” em Buenos Aires, Argentina. Junho/2015. Foto
de Natacha Pisarenko / AP.
O movimento feminista brasileiro, a despolitização e a banalização da
violência
Acredito que no Brasil não há
mobilização popular para uma marcha como a “Ni una menos”. Não só por estarmos
mergulhados num profundo momento conservador e pelas pessoas ainda não
reconhecerem o problema da violência contra a mulher como responsabilidade de
toda sociedade, mas também porque vivemos um período de grande despolitização,
exclusão social e banalização da violência, para os quais só há ódio gratuito e
soluções encomendadas como receita de bolo. Pensando sobre o atual momento do
feminismo no Brasil, da política e da sociedade, listo motivos que acredito
serem barreiras para que a questão da violência de gênero avance no debate:
1. Movimento feminista institucionalizado enfraquecido.
A primeira pergunta que me passou
pela cabeça foi: quem poderia lançar a ideia de uma marcha como essa no Brasil?
A verdade é que o feminismo não é tão popular, especialmente para a mídia, que
até tem publicado mais matérias sobre o assunto, mas não abraça suas causas
facilmente. Até quem é feminista as vezes conhece pouco sobre as organizações e
movimentos de mulheres que tentam garantir políticas públicas para o
enfrentamento da violência contra as mulheres.
Organizações, coletivos e redes
com algum grau de institucionalidade funcionam como articuladoras do movimento
feminista. No Brasil, vários grupos se institucionalizaram, especialmente nos
anos 90 pós-Constituinte, para garantir uma ação mais permanente de exigir
ações do Estado. Foi essa rede que conseguiu conquistas como a Lei Maria da
Penha e que poderiam se referências importantes nessa mobilização. Porém, a
situação não anda boa, como lembrou Priscilla Caroline no textoFeminismo em
crise?: “sem recursos para manter equipe e projetos, várias organizações
feministas no Brasil vem travando uma luta árdua para se manterem existindo e
resistindo às inúmeras possibilidades de retrocessos nos direitos das
mulheres”.
Assim como na Argentina, o
movimento poderia ser iniciado por quaisquer grupos de pessoas via internet.
Porém, até que ponto as pessoas no Brasil estão comprometidas em combater a
violência contra a mulher? Há uma ocupação cada vez maior de grupos feministas
na internet. Vejo com alegria o debate feminista sair da academia universitária
e ganhar mais interlocutoras nesse espaço de comunicação e interatividade.
Porém, também tenho a sensação de que falta mais empatia, reciprocidade,
solidariedade e alteridade. Mais ouvir e ampliar a discussão. Na maioria dos
debates na internet não se forma uma opinião, apenas se joga para a torcida.
Não estou cobrando que as
feministas saiam da internet e vão protestar, as pessoas não participam da
militância presencial por diversos motivos. O que quero enfatizar é que na
internet não temos o mesmo diálogo, debate ou construção de ideias que poderia
ser feito pessoalmente. E isso parece fazer muita falta, pois existem
feministas que estão há anos no movimento e que poderiam compartilhar suas
experiências com quem está chegando agora, promovendo mais conversação para
discussões tão polarizadas.
As Marchas das Vadias tem como
pauta principal lutar contra a violência de gênero. Porém, assim como muitos
dos movimentos sociais ativos atualmente, seus núcleos de organização estão
voltados para ações locais. Desde 2011, quando começaram a ser realizadas no
Brasil, apenas uma vez houve uma tentativa de conversar com organizadoras de
todas as Marchas das Vadias e tentar marcar uma data única. Os movimentos
sociais brasileiros parecem estar num momento de integração local e não
nacional.
2. Conservadorismo e despolitização.
Com o Congresso mais conservador
dos últimos anos aprovando de financiamento de empresas para campanhas
políticas até mais isenção de impostos para instituições religiosas, o
movimento feminista luta mais para não perder conquistas do que conseguir
aliados nas batalhas diárias. Vimos as jornadas de junho de 2013 levarem
milhares as ruas, estariam essas pessoas dispostas a marchar contra a violência
de gênero? Os movimentos anticorrupção tem feito muito barulho, mas até que
ponto há propostas concretas para mudar a situação do país?
O que vemos na maioria das vezes
são respostas fast food que sempre agradam o pensamento unilateral. Transformar
a corrupção em crime hediondo. Reduzir a maioridade penal. Criminalizar o porte
de arma branca. Para cada crime que choca a população a solução apresentada
resolve o espaço vazio de indignação. De que adianta transformar corrupção em
crime hediondo se os legisladores atuam para garantir os interesses das grandes
empresas que os financiam? De que adianta reduzir a maioridade penal se as
escolas com classes lotadas são usadas hoje como depósito de crianças e
adolescentes em que professores são carcereiros? De que adianta criminalizar
armas brancas se pode-se matar alguém com um saca rolha ou um saco plástico?
Vejo feministas defenderem o
projeto de castração química para estupradores proposto pelo deputado federal
Jair Bolsonaro como solução. De que adianta castrar quimicamente alguém se
qualquer pessoa pode estuprar de inúmeras maneiras? Passamos anos repetindo que
estupro não é sexo, estupro é poder, para voltarmos atrás e dizer que estupro
ocorre porque o desejo sexual de um pênis é incontrolável? As soluções fast
food angariam apoio facilmente, pois são apresentadas em momentos de comoção,
existem para se dizer que algo está sendo feito, mas quase sempre se perdem nas
limitações de quem acha que o culpado é sempre o outro, de que o inimigo está
lá fora.
3. Banalização da violência e a vítima perfeita.
Quando falamos de comoção pública
há o fator emocional, um elemento imprevisível. O que choca a população
brasileira hoje? Infelizmente, vemos se repetir muitas vezes o estereótipo da
vítima perfeita.
Por exemplo, o menino Eduardo que
morreu no Complexo do Alemão nunca gerará a mesma comoção que o menino João Hélio,
que morreu vítima de um assalto. Isso porque na sociedade brasileira não se
espera que um menino como João Hélio vá morrer de forma brutal. Eduardo, mesmo
tendo imagens explícitas de sua morte divulgadas em vídeo nas redes sociais,
causou comoção mas hoje as pessoas não tem seu nome na memória como tem o de
João Hélio, o garoto morto arrastado por bandidos. Isso ocorre porque Eduardo
morava numa comunidade do Rio de Janeiro e na “guerra contra as drogas” a morte
de uma criança pela polícia é tratada como contingência.
Ao comparar esses dois casos
vemos que no Brasil as vidas tem diferentes valores. Mas, passados oito anos da
morte de João Hélio, a banalização da violência é cada vez maior. Talvez, mesmo
sabendo que a América Latina tem índices altíssimos de violência contra a
mulher, Argentina, Chile e México ainda sejam capazes de se indignar com a
violência, enquanto no Brasil nada mais parece nos chocar.
A própria Lei Maria da Penha
perde força quando 15 mulheres são mortas por dia no Brasil. Até hoje não temos
sua ampla implementação. As ações de prisão são divulgadas mas faltam
casas-abrigo, centros de referência e delegacias especializadas. Não há
instrumentos de proteção efetiva ou soluções para as mulheres que na maioria
das vezes são obrigadas a abandonarem suas casas e empregos. Que outras
propostas temos para pensar e garantir a proteção efetiva dessas mulheres que
não se resumam ao encarceramento do agressor?
É surpreendente que na internet
se divulgue tão pouco iniciativas como a campanha “Flores Para Elas”, que
pretende prestar auxílio as quatro adolescentes vítimas do estupro coletivo no
Piauí. Por mais que o crime seja de uma brutalidade nauseante e que muitas de
nós não consigam nem mesmo ler sobre o assunto, o espaço da internet é mais profícuo
em discutir sobre personalidades e suas vidas pessoais. A fulanização do debate
nas redes sociais parece muitas vezes nos fazer esquecer das mulheres anônimas,
das mulheres de nossos bairros, mas também é consequência direta da maneira
como enxergamos a violência banalizada e das nossas limitações em avançar além
do punitivismo.
4. Violência contra a mulher é culpa apenas do agressor.
Por mais que tenhamos avançado em
estabelecer medidas para combater a violência de gênero nos últimos anos como:
a Lei Maria da Penha, o Disque 180 e nesse ano a abertura das unidades daCasa
da Mulher Brasileira; percebo que as pessoas ainda não reconhecem essa
violência como um problema estrutural presente e praticado por toda sociedade
brasileira. As soluções apresentadas na maioria das vezes focam apenas na
punição do agressor e não observam as imensas complexidades que envolvem os
relacionamentos interpessoais. De outro lado, o conservadorismo caminha
barrando iniciativas educativas para crianças e jovens discutirem a questão de
gênero nas escolas.
As denuncias de violência feitas
por mulheres ainda são desacreditadas e não há receptividade nem acolhimento em
instituições públicas como delegacias de polícia e órgãos de saúde. Não há
incentivo nem divulgação massiva de propostas de conscientização e reeducação
de agressores. Não há debate sobre que outras medidas podemos tomar, além da
criação de leis, para resolver o problema. Não há responsabilização da
sociedade por cada mulher que morre, não há debate sobre o que nós, pessoas
comuns, poderíamos ter feito para evitar sua morte.
É evidente que não conseguiremos
evitar todas as mortes de mulheres. Porém, ao ler sobre osquatro adolescentes
acusados do estupro coletivo no Piauí, descobrimos que não estudavam, tinham
envolvimento com drogas, passagens na polícia, famílias desestruturadas e
nenhum amparo do Estado além do bolsa-família. Absolutamente nada justifica o
crime que cometeram, mas até que ponto poderíamos ter exigido que tivessem
direitos básicos garantidos pela Constituição? Reduzir a maioridade penal tem
que impacto na vida de um jovem que não considera uma mulher da sua idade digna
de respeito e liberdade?
E por que você não propõe uma Marcha?
É claro que eu, junto com as
mulheres que coordenam esse blog, podemos lançar uma campanha e uma marcha
contra o feminicídio no Brasil. Por que não o fazemos? Por que não levantamos
da cadeira em frente o computador e vamos as ruas? Porque temos nossas
limitações, nossas vidas, nossos compromissos e nossos privilégios. Porque não
há desculpas, mas há também o sentimento de que essa marcha seria muito
pequena, que teríamos que lidar dias com a violência que invade nossas redes
sociais sempre que uma pauta feminista ganha destaque para ter um resultado
pífio. Essa sensação de que estamos cada vez mais distantes de ver mudanças
concretas na sociedade é extremamente imobilizadora e reconheço essa
incapacidade de colocar em prática algo que precisaria da ajuda e mobilização
de muitas pessoas.
As pessoas de Castelo do Piauí
foram as ruas. Esse ano, estão previstas duas grandes marchas de mulheres: a
Marcha das Margaridas (dias 11 e 12 de agosto) e a Marcha das Mulheres Negras
(18 de novembro). São movimentos de mulheres que não costumam ser a voz mais
amplificada do feminismo no Brasil, mas creio que há grandes chances delas
mostrarem que não só as mulheres, mas especialmente cada brasileira e
brasileiro precisa se envolver e se enxergar como parte importante para
mudarmos a forma como tratamos a violência no país.
Fonte: Geledes
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