"Apesar da
seriedade da questão, o tráfico de pessoas é ainda tema pouco conhecido e debatido
na sociedade brasileira... ainda prevalece na população certa ingenuidade a
respeito não somente das raízes dessa chaga social, como também das formas de
erradicá-la. Seguramente, uma das principais razões disso é a indiferença em
torno do assunto", escreve o sociólogo Marcos Vinícios de Araujo Vieira.
Neste ano, a CNBB escolheu como tema da Campanha da
Fraternidade a silenciosa, porém gravíssima e desafiante, questão do tráfico de
pessoas. O lema, que faz alusão à Carta de Paulo dirigida à comunidade dos
Gálatas, chama a atenção para a vocação humana para a liberdade: "É para a
liberdade que Cristo nos libertou". A relação entre o tema da Campanha e
seu lema é eloquente: o tráfico de pessoas constitui umas das versões modernas
de escravidão.
Apesar da seriedade da questão, o tráfico de pessoas é ainda
tema pouco conhecido e debatido na sociedade brasileira. É verdade que, em
2013, a Rede Globo trouxe à tona, em novela, a situação de mulheres brasileiras
no exterior, vítimas do tráfico de pessoas para fins de exploração sexual. Do
mesmo modo, em 2006, o Governo Federal lançou Plano Nacional de Enfrentamento
ao Tráfico de Pessoas, por meio do Decreto nº 5.948, de 26 de outubro, como
ponto de partida para o enfrentamento dessa prática criminosa. Apesar disso,
ainda prevalece na população certa ingenuidade a respeito não somente das
raízes dessa chaga social, como também das formas de erradicá-la. Seguramente,
uma das principais razões disso é a indiferença em torno do assunto.
Nessa matéria, superar a indiferença é importante, porém
insuficiente. Tampouco bastam campanhas de informação. Nessa Quaresma, tempo de
conversão, somos convidados a ir mais longe. É urgente meditarmos sobre o
tráfico de pessoas como pecado social, que nos desumaniza a todos e crucifica
milhões de pessoas, bem como refletirmos sobre as causas desse esquema
criminoso, tendo sempre em vista uma ação pastoral que vise à sua erradicação.
Nessa reflexão, importa ter em conta, com base em
perspectiva realista, que o tráfico de pessoas é a terceira atividade criminosa
mais rentável do mundo, atrás apenas do tráfico de armas e drogas; faz cerca de
2,5 milhões de vítimas no mundo, movimentando, aproximadamente, 32 bilhões de
dólares por ano, segundo dados do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e
Crime (UNODC); compreende um crime organizado transnacional, vinculado a
interesses poderosíssimos em três campos diversos:a exploração de mão-de-obra
escrava, a exploração sexual comercial e a comercialização de órgãos humanos;
as principais vítimas pertencem aos grupos mais vulneráveis: migrantes,
mulheres, crianças e adolescentes, procedentes de regiões marcadas pela
pobreza, instabilidade política e desigualdade econômica; os empresários do
tráfico de pessoas compreendem aliciadores e agenciadores que integram uma rede
complexa e articulada que envolve inúmeras pessoas e instituições; o Brasil,
país de origem, trânsito e destino desta prática criminosa, é responsável por
15% das pessoas exportadas da América Latina para a Europa.
À luz da fé cristã, que prima pela dignidade da pessoa
humana e assume projeto de vida libertador, não podemos ficar indiferentes aos
motivos profundos desse crime. Cabe assinalar que o tráfico de pessoas revela
uma crise antropológica de nosso tempo, caracterizado, nas palavras do Papa
Francisco, pela negação da primazia do ser humano. Na Exortação Apostólica
Evangelii Gaudium, o Bispo de Roma afirma que se vive hoje o fetichismo do
dinheiro sob a ditadura de uma economia sem orientação antropológica que reduz
o ser humano ao consumo e que tende a devorar tudo para aumentar os benefícios
de poucos (EG, 53-60). O caso do tráfico de pessoas é emblemático desse
fetichismo, uma vez que corpos de milhões de pessoas são reduzidos à condição
de meras mercadorias, objeto de lucro e prazer. O tráfico de pessoas e a
ideologia da mercantilização andam, portanto, de mãos dadas.
Nessas condições, resultaria ingênuo acreditar que o
enfrentamento policial e de inteligência seria suficiente para erradicar essa
lucrativa e complexa atividade criminosa. Não basta repressão. É imprescindível
também um trabalho consistente de prevenção das causas do tráfico de pessoas.
Não se pode falar em combate ao tráfico de pessoas sem incluir o combate à
desigualdade socioeconômica, sem questionar a cultura consumista responsável
pela globalização da indiferença, sem nos atentar para a questão do prazer na
sociedade contemporânea.
Tendo em vista o preconceito que as vítimas de tráfico de
pessoas sofrem em razão de uma moralidade desumanizadora ainda em voga (daí se
falar da dupla penalização da vítima desse crime que, em vez de encontrar
compaixão na sociedade, é responsabilizada pela sua própria desgraça), caberia
à Igreja assumir o papel de "hospital de campanha após a batalha",
como desejada pelo Papa Francisco. Nesse sentido, a Igreja é desafiada a
promover ações pastorais destinadas a acolher, com espírito misericordioso e
terno, as vítimas do tráfico de pessoas.
Mais importante, a Igreja é mais do que nunca interpelada a
refletir sobre uma teologia do prazer sexual humanizante que se contraponha à
ideologia mundana do prazer sexual alienante. Parece cada vez mais evidente que
o prazer tem sido tratado de maneira ambivalente em nossa cultura atual. Essa
ambivalência, que confunde os aspectos humanizantes e alienantes do prazer,
arrisco-me a dizer, se deve, entre outros motivos, a séculos de tradição
religiosa de natureza maniqueísta, desencarnada, agnóstica, baseada em
dualidade antropológica radical que opõe espírito e corpo. Não surpreende que,
na sociedade atual, onde não se admite a incompreensível e infantil condenação
do prazer sexual pela religião, a mercantilização do sexo, o signo da cultura
capitalista, encontrou espaço propício para sua reprodução. Urge, portanto,
resgatar a dimensão positiva da sexualidade, lamentavelmente ainda hoje
colocada sob suspeita pela moralidade, bem como superar a resistência histórica
da Igreja em discutir amplamente esse tema tão fundamental para a maturidade
psicoafetiva, física e espiritual das pessoas.
A Campanha da Fraternidade de 2014 é oportunidade, portanto,
de abordarmos com discernimento questões sérias que afetam dimensões fundamentais
da sociedade contemporânea. É ocasião, por fim, para nos libertarmos da cultura
perversa que se encontra por trás da ditadura de uma economia sem orientação
antropológica.
Fonte: Ihu
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