A história dos dois imigrantes bolivianos que estavam sendo
“vendidos” no centro da maior cidade do Brasil, em pleno domingo (9 de
fevereiro), teria sido outra não fosse a solidariedade de pessoas que decidiram
acionar as forças policiais diante do tipo bizarro de “comércio” que
transcorria em via pública.
Enquanto os dois homens aguardavam pacientemente o dono da
confecção para a qual trabalhavam em Cabreúva (SP), no interior paulista,
tentar concluir o referido “negócio” estipulado em R$ 1 mil por cada um, a
Polícia Militar foi chamada. Segundo relato de testemunhas à imprensa, os
trabalhadores estrangeiros acabaram sendo revistados, enquanto o patrão, também
boliviano, aproveitou para fugir do local.
Em Sucre, na Bolívia, a Repórter Brasil conseguiu encontrar
um dos trabalhadores, que, mesmo receoso e ainda impactado, deu o seu
testemunho acerca do ocorrido. “Se não acontecesse o que aconteceu, nós
continuaríamos dependentes do dono da oficina. Não teríamos feito nada por
iniciativa própria. Não conhecemos nenhuma rua da cidade e não falamos
português. Você acha que nós fugiríamos para onde?”
Segundo esse
ex-imigrante, que prefere manter a sua identidade anônima, os dois, que são
primos, foram convencidos a trabalhar no Brasil por meio de um conhecido, que
chegou a citar ganhos mensais de cerca de US$ 500. Um deles, o mais velho, de
21 anos, trabalhava como pedreiro em Sucre, capital constitucional da Bolívia,
e a oportunidade de trabalho lhe pareceu interessante. A decisão de seguir ao
país vizinho foi tomada junto com o mais novo, de 19 anos.
Dívida e fome
O combinado era o seguinte: eles deveriam comparecer já no
dia seguinte na rodoviária da cidade para partir para Santa Cruz de la Sierra,
no leste do país. Todo o trajeto restante até o Brasil seria garantido por um
“agente”, que daria as coordenadas seguintes. Durante o percurso, eles teriam
permanecido por dois dias na capital paraguaia, Assunção, onde chegaram a
passar fome. Na rota feita por muitos que vêm “tentar a sorte” no Brasil,
teriam inclusive sido assediados por outros “agentes” em busca de mão de obra
para oficinas têxteis.
Em nenhum momento, contudo, deixaram se seguir as instruções
recebidas pelos aliciadores. Constituía-se, então, uma dívida dos dois jovens
imigrantes para com uma pessoa do outro lado da fronteira que estava arcando
com os gastos da vinda deles. Nesse caso específico, foi encontrado até um
comprovante de uma transferência internacional a terceiros feita pelo próprio
dono da oficina, que mantinha um caderno com anotações de despesas de
transporte, alimentação e outras cobranças adicionais.
Trazidos ao Brasil, foram levados até Cabreúva (SP), onde
receberam a informação de que o salário não seria de US$ 500, mas de R$ 700
brutos (abaixo do salário mínimo nacional que, desde o início de 2014, está
fixado em R$ 724). Souberam também que não receberiam nada nos primeiros meses
de trabalho na oficina anexa ao alojamento, por conta do que já tinha sido
gasto, e que haveria descontos adicionais também por gastos de consumo: os dois
teriam, por exemplo, que contribuir pelo menos com R$ 6 a cada dia pela
alimentação.
As dívidas dos imigrantes eram anotadas em um caderno
De acordo com a vítima, eles operavam as máquinas das 6
horas às 21 horas (15 horas diárias), com uma pausa de meia-hora de almoço e
folga apenas aos domingos. Mais de 20 pessoas (inclusive algumas famílias
inteiras, todas vindas da Bolívia) dividiam dois quartos e um único banheiro.
Descontentes com a situação, teriam dito, após uma semana, que não estavam
dispostos a continuar naquele esquema e que gostariam de retornar ao país de
origem.
Depois de ouvirem o patrão dizer que as outras pessoas
“trazidas” como eles estavam aguentando normalmente o trabalho nas máquinas de
costura (produzindo calças, camisas, blusas etc.) e de até terem sofrido
ameaças, acabaram sendo literalmente objeto de negociação por parte do
empregador.
Todos se dirigiram, assim, até a região do Brás, no centro
da metrópole paulistana, para que o patrão concretizasse a venda a algum par.
Foi nesse momento que a PM foi chamada e os dois foram levados até uma unidade
policial, onde não registraram ocorrência por receio de represálias. A partir
daí, entrou em cena uma série de instituições, órgãos e particulares que atuam
cotidianamente com os imigrantes, como o Centro de Apoio ao Migrante (Cami),
alguns membros conhecidos da comunidade e o Consulado de Bolívia que, na
sequência, providenciou a viagem de volta dos dois.
Dono da oficina
localizado
De imediato, representantes do Ministério do Trabalho e
Emprego (MTE) passaram também a tratar do caso, inclusive para tentar garantir
os direitos trabalhistas das vítimas. Firmou-se um acordo com a Atmosfera
Gestão e Higienização de Têxteis, empresa que – por ter sido a principal
beneficiada da exploração das vítimas que trabalhavam na confecção – foi
considerada responsável pela situação que envolveu não apenas os dois
bolivianos, mas também um terceiro, que não foi mais encontrado. Estão sendo
vencidos alguns obstáculos para que eles recebam todos os valores
correspondentes às jornadas trabalhadas conforme o salário prometido e mais uma
indenização por dano moral individual.
Já o dono da oficina foi localizado no próprio município de
Cabreúva (SP), em 17 de fevereiro, por uma fiscalização realizada pelo Grupo
Especial de Fiscalização Móvel, composto pelo MTE, pelo Ministério Público do
Trabalho (MPT), pela Defensoria Pública da União (DPU/SP) e pela Polícia
Federal (PF), e acompanhada também pela Repórter Brasil. Ele, que pode sofrer
um processo criminal em decorrência do encaminhamento do caso a autoridades
competentes, admitiu ter pago a passagem de ambos e de um terceiro. Afirmou
ainda ter levado o grupo à capital para tentar “ajudá-los” a conseguir outro
emprego.
De volta a Sucre, o trabalhador ouvido pela Repórter Brasil
se diz aliviado. Prestes a iniciar um outro trabalho em cidade distante, mas
dentro da Bolívia, ele demonstra arrependimento. ”Falam aqui na Bolívia que as
pessoas ganham muito dinheiro no Brasil. Mas, chegando lá, eu descobri outra
coisa. Minha vida aqui é melhor.”
Fonte: (Maurício Hashizume) Agência Repórter Brasil
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