As reflexões e orientações da CF/2014, iluminadas pela
Palavra de Deus, nos colocam diante de um desafio que interpela todos e cada um
em particular: o que fazer diante dessa situação? Três palavras poderiam
resumir nossas possibilidades de ação socio-pastoral ou política: acolhida,
denúncia e informação.
Pe. Alfredo J. Gonçalves
A frase do título representa uma denúncia de Mons. João
Batista Scalabrini, então bispo de Piacenza, norte da Itália, no final do
século XIX e início do século XX. Scalabrini – chamado "pai e apóstolo dos
migrantes” – referia-se aos intermediários gananciosos e sem piedade que, no
fenômeno das grandes migrações históricas da época, traficavam com a abundante
mão-de-obra dos emigrados europeus (especialmente italianos) para as Ámericas,
a Austrália e a Nova Zelândia. Segundo historiadores da envergadura de Hobsbawn
e Peter Gay, entre 1820 e 1920, mais de 60 milhões de pessoas deixaram o velho
continente com o objetivo de reconstruir a vida nas "terras novas” de
além-mar. Vítimas da expulsão em massa do campo para a cidade, enquanto certa
porcentagem se empregava na indústria nascente, boa parte não conseguia
trabalho, tendo de cruzar os oceanos para fugir de um destino de miséria e fome
na Europa rapidamente urbanizada.
Entre o desemprego, a pobreza e a necessidade, por um lado,
e o desafio de "far l’America”, por outro, interpunham-se os
"mercadores de carne humana”. Mercadores, sim, porque gente sem coração e
sem alma diante dos dramos humanos causados pelos efeitos da Revolução
Industrial. Ao contrário, aproveitavam-se da condição e das esperanças dos
emigrantes que buscava um futuro melhor para a família, comercializando
inescrupulosamente os seus sonhos de trabalho e pão, pátria e dignidade. Se e
verdade que a mobilidade humana faz parte do direito de ir e vir, também e
certo que muitas vezes tais deslocamentos intercontinentais tornavam-se
forçados e compulsórios, devido ao êxodo rural em massa e as condições
extremamente precárias nos países ou regiões de origem.
Passou-se mais de um século, porém a frase/denúncia de
Scalabrini continua viva e atual, como uma chaga aberta em pleno seculo XXI. O
tráfico de seres humanos para a exploração trabalhista ou sexual atualmente
atinge milhões de pessoas no mundo inteiro, como mostram os debates em torno da
Campanha da Fraternidade deste ano. Juntamente com o tráfico de armas e de
drogas, constitui uma das fontes de maior rentabilidade da economia submersa do
mundo globalizado. Verdadeira bomba atômica, oculta e letal, que
silenciosamente fere, mutila e mata, deixando marcas irreparáveis nas vítimas
que sobrevivem e em suas familias. Os relatos de quem conseguiu escapar de tais
"infernos humanos” não deixam margem à duvidas!
Nos subterrâneos sombrios das relações internacionais (e às
vezes em plena luz do dia), a rede mundial do crime organizado não poupa
particularmente mulheres e crianças, quando o objetivo e a exploração ao máximo
de sua energia. No fim da linha desse comércio ilegal e ilegítimo, grande parte
dos sonhos se convertem em pesadelos. Como o continente africano nos tempos da
escravidão, o Brasil hoje vem sendo um dos países que fornecem bom número de
"trabalhadores e trabalhadoras” para essas transações criminosas. O
texto-base da CF/2014 traça um quadro preocupante sobre os pontos nevrálgicos
das rotas nacionais e internacionais, bem como da origem e destino das pessoas
envolvidas.
As reflexões e orientações da CF/2014, iluminadas pela
Palavra de Deus, nos colocam diante de um desafio que interpela todos e cada um
em particular: o que fazer diante dessa situação? Três palavras poderiam
resumir nossas possibilidades de ação socio-pastoral ou política: acolhida,
denúncia e informação.
A acolhida constitui, digamos assim, o DNA não somente da
Pastoral Migratória, mas da Pastoral Social de toda a ação evangelizadora. No
caso do tráfico de pessoas humanas, a atitude de acolhida requer uma
sensibilidade especial diante das feridas profundas das vítimas, na maioria das
vezes tão difíceis de serem cicatrizadas. Em nível pessoal ou familiar,
eclesial ou social, impõe-se uma solidariedade incondicional para com aqueles e
aquelas que sofreram tais abusos. Não cabem aqui a discriminação e o
preconceito, nem o racismo e a xenofobia. Tampouco cabem limitações
geográficas, eclesiais ou geopolíticas, uma vez que o crime não respeita
fronteiras de qualquer espécie. Em tudo e por tudo, deve prevalecer a defesa do
direito e da dignidade da pessoa humana – fundamento, fio condutor e coluna
vertebral de toda a Doutrina Social da Igreja.
A denúncia, por sua vez, torna-se a chave para combater o
tráfico nacional e internacional. Neste caso, porém, convém utilizar de
prudência: não se trata tanto uma denúncia em nível local e personalizado, a
qual, embora corajosa e profética, pode acarretar perseguições desnecessárias.
Ainda que em determinadas circunstâncias essa postura não possa ser evitada, o
mais indicado segue sendo a denúncia em nível institucional, envolvendo
movimentos e pastorais sociais, entidades, organizações não governamentais, o
conjunto das Igrejas, setores dos governos, da Polícia Federal e do Ministério
Público, bem como organismos internacionais de defesa dos direitos humanos.
Novamente aqui a ação dever ser ampla, conjunta e abrangente – sem fronteiras.
Devido ao poder e aos meios inescrupulosos do crime organizado, a proteção das
vítimas e das pessoas que defendem sua causa nao pode ser desconsiderada, mas
tornar-se uma preocupação constante.
Quanto a informação, esta se revela uma condition sine qua
non, seja nos polos e regiões de origem, seja nos lugares de destino. Números,
fatos e rotas do crime organizado devem ser divulgadas amplamente entre as famílias,
associações, escolas, comunidades, meios de comunicação e em toda a sociedade.
A revolução informática em geral e Internet em particular pode revelar-se um
instrumento eficaz no combate ao tráfico, como de resto o e para os próprios
traficantes. Todos os meios devem ser utilizados para desmascarar e desmantelar
a cadeia internacional do crime organizado em todas as suas ramificações. A
informação atualizada e permanente pode figurar como um verdadeiro antivirus,
uma vacina contra a possibilidade de cair na ratoeira do tráfico, não raro um
caminho sem retorno. Semelhante rede, como bem sabemos, concentra um duplo
caráter de risco: encontra-se ramificada em praticamente todo o mundo e não
respeita códigos de conduta, ou pior, segue rigorosamente o principio radical
da eliminação de "arquivos”.
Fonte: Adital
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