Campanha da marca cearense é mais uma a mostrar como a
publicidade tem distorcido valores e contribuído culturalmente para uma
infância com cara adulta.
Por Natasha Cruz e Raquel Dantas*
A garota-propaganda tem as unhas pintadas de vermelho,
sombra nos olhos, rímel, batom e blush. Ela leva as próprias roupas para o
ensaio fotográfico, mas o produtor sugere que ela fique só de calcinha. Ficaria
mais condizente com a mensagem da campanha publicitária. O cenário está
preparado. Ela finge se maquiar em frente ao espelho, coloca colares e
pulseiras de pérola. Ela manda beijo, faz movimento com o corpo para os cabelos
voarem e faz pose sensual em cima de salto alto. Se o caso já não fosse conhecido,
dificilmente se pensaria que a descrição é de uma menina de apenas três anos.
As peças publicitárias que compõem a campanha da marca cearense de sapatos
Couro Fino foram lançadas nas redes sociais este mês em referência ao Dia das
Crianças. O conteúdo incomodou logo de cara, o que motivou centenas de
críticas, feitas também pelos próprios consumidores da marca, além de 70
notificações em apenas dois dias no Conselho Nacional de Autorregulamentação
Publicitária, o CONAR. Segundo nota de esclarecimento da Couro Fino, a reação
foi provocada por "interpretação equivocada da arte veiculada".
Erro de interpretação em grande quantidade representa, no
mínimo, uma falha dos códigos utilizados. Levando em conta o uso de uma criança
para comunicar algo que não diz respeito ao universo infantil, interpretando
uma mulher adulta e na qual o alvo do consumo são as próprias adultas, a
agência publicitária Salto Alto pecou frente aos princípios estabelecidos pelo
CONAR e às normas do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Segundo artigo
37 do Código Nacional de Autorregulamentação Publicitária, "crianças e
adolescentes não deverão figurar como modelos em anúncio de serviço
incompatível com sua condição". Já o ECA deixa claro em seus artigos 17 e
18 o respeito à inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da
criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da
autonomia, dos valores, ideias e crenças, dos espaços e objetos pessoais.
O maior problema em questão é a naturalização do tipo de
conteúdo e o entendimento ingênuo e preocupante de que uma brincadeira de
criança (brincar de ser gente grande), como declarou a marca, não justificaria
esse olhar negativo às peças. A própria mãe da menina, que chegou a dizer que a
repercussão foi uma grande "tempestade em copo d'água", se preocupou
só agora com a imagem da filha, que "não merecia passar por isso".
O problema não é a brincadeira, mas o estímulo a um
comportamento que suspende desde cedo o interesse da criança em ser apenas
criança. Ações do gênero não podem mais ser somente interpretadas como
brincadeira, porque ultrapassam esse limite. Falam de um comportamento que
extrapola a fantasia e que interfere diretamente na formação de nossas
crianças. Cada vez mais cedo e com mais frequência, meninos e meninas revelam
um processo acelerado do que ficou chamado de adultização. Quando os pequenos
passam a se preocupar mais com a aparência do que com as brincadeiras, o
universo infantil já não tem mais espaço. E uma infância mal vivida desencadeia
uma série de problemas quando essa criança, enfim, se torna uma pessoa adulta.
Não há dúvidas de que a mídia é um dos grandes responsáveis
por esse fenômeno, ao comunicar, o tempo todo, valores, comportamentos e
necessidades que, se impactam os adultos, atingem com muito mais facilidade as
crianças, em processo de formação de identidade e de compreensão dos códigos
sociais. Basta uma breve análise do conteúdo midiático que chega às nossas
casas e é consequentemente consumido pelo segmento infanto-juvenil para
identificar uma série de estímulos que tem grande chance de interferir
negativamente no comportamento de crianças e adolescentes: apelo erótico,
imposição de padrões de beleza que não condizem com nossa pluralidade estética,
estímulo ao consumismo, ridicularização dos que são tidos como diferentes dos
padrões pré-estabelecidos, violência, intolerância, preconceitos de todos os
tipos.
Tanto do ponto de vista individual, no que se refere à
exposição indevida da criança pela mídia e a violação de seu direito, quanto do
ponto de vista da imagem de crianças e adolescentes em nossa sociedade - muitas
vezes representadas de forma apelativa e estigmatizante pelos meios de
comunicação de massa -, o caso da campanha da Couro Fino é emblemático. E nos aponta
a necessidade de ampliação de mecanismos de fiscalização e controle social das
produções midiáticas, incluindo aí as campanhas publicitárias.
Assim como os meios precisam ser regulados sobre a qualidade
do serviço que prestam, a publicidade necessita de regras claras de produção e
veiculação. Debates sobre a publicidade infantil se arrastam hoje no campo
jurídico e legislativo, ao mesmo tempo em que a autorregulamentação, de forma
isolada, já se mostrou insuficiente para garantir a proteção dos consumidores e
cidadãos. Daí a importância do monitoramento permanente da sociedade civil.
A propaganda da Couro Fino não foi a primeira, nem será a
última a violar direitos fundamentais. Mas o impacto negativo na campanha da
marca cearense, por meio das críticas que circularam nas redes sociais e das
denúncias junto ao CONAR, deixa claro que a população está atenta, se
posicionando e cobrando, exigindo uma comunicação - seja no noticiário da manhã
ou na campanha publicitária -, que esteja comprometida com o interesse público
e a efetivação de uma sociedade verdadeiramente democrática.
* Natasha Cruz e Raquel Dantas são jornalistas e integrantes
do Intervozes no Ceará.
Fonte: Carta Capital
Nenhum comentário:
Postar um comentário