Nascida
em 1951, em São Paulo, numa família de classe média, Gabriela Leite tornou-se a
principal ativista dos direitos das prostitutas no Brasil.
Por René Zamlutti Jr.
Gabriela foi
embora em 10 de outubro de 2013 e nos deixou, como herança, uma
trajetória capaz de horrorizar os moralistas e de nos fazer repensar concepções
tradicionais sobre o que uma mulher pode e deve fazer com seu próprio corpo e
com sua liberdade.
Filha de família
tradicional e de pais moralistas, aos 22 anos, enquanto estudava sociologia e
filosofia na USP (foi a segunda colocada no vestibular), Gabriela Leite decidiu
virar prostituta. Abandonou a faculdade
em 1973 e trabalhou na Boca do Lixo, em São Paulo, na Zona Bohemia de Belo
Horizonte e na Vila Mimosa, no Rio de Janeiro. Em 1979, Gabriela participou da
primeira Revolta das Prostitutas, e conseguiu afastar um delegado que torturava
e matava profissionais do sexo. No final dos anos 80, publicou o primeiro
manual de prevenção às DST's voltado para as prostitutas. Posteriormente,
fundou a ONG Davida, que defende os direitos das prostitutas, e em 2005 fundou
a grife Daspu (uma provocação à grife "chic" Daslu).
Gabriela lançou,
em 2009, um livro fantástico: "Filha, mãe, avó e puta", em que conta
sua história, da qual destaco o seguinte trecho:
"Adoro os
homens. Gosto de estar com eles, e não conheço homem feio. Todos são bonitos:
cada um com seu cheiro característico, seu andar, seu modo de olhar. Alimentam
um amor imenso pela mãe e pelo próprio corpo. Magros ou gordos, todos têm um
belo corpo, mesmo quando são barrigudinhos. Às vezes me pergunto como eles
fazem para andar: será que o pau no meio das pernas não atrapalha? Essa
pergunta eu (ainda) não tive coragem de fazer.
Outra coisa que
adoro é falar o que penso. Sem papas na língua. Quem ler este livro vai
perceber isso. Aprendi uma porção de coisas nessa temporada na Terra. Uma delas
é a importância de se ter uma opinião, de reclamar quando não se está gostando
de algo. Demorei muito para adquirir esse direito e, por isso mesmo, não abro
mão dele. Passei um pedaço da minha vida lutando por ele. Estou gastando um
outro bom naco tentando convencer minhas colegas prostitutas de que esse
direito também é delas.
Existe uma
terceira coisa que eu prezo muito. Talvez seja a que mais prezo, aliás. É a
liberdade. Liberdade de pensar diferente, de vestir diferente, de se comportar
diferente... Não sei direito de onde veio essa minha paixão pela liberdade
(minha vida é feita de muitas certezas, mas também de infinitas dúvidas e
contradições), mas ela veio para ficar.
Meu destino até
aqui foi norteado por esses três amores. E, como todos nós sabemos, o amor não
traz só felicidade. Ele gera muita dor também, em nós mesmos e em quem está
perto. sei que, por causa dessa minha obsessão por romper amarras (sejam elas
políticas, culturais, morais ou pedagógicas), feri algumas pessoas queridas.
Mas acredito que também ajudei um sem-número de prostitutas a ter uma vida mais
digna. Fui, sou e vou continuar sendo responsável pelos meus atos. O que pensar
sobre eles é resultado do conceito de vida de cada um. Enquanto eu puder
continuar exercendo minha liberdade, não tenho com o que me preocupar."
Gabriela fez do
próprio ato da prostituição um exercício de liberdade - tanto física quanto
intelectual. E rejeitou o processo de vitimização que setores
"bem-intencionados" da sociedade impingem às prostitutas. Vale
lembrar as palavras de Gabriela no programa Roda Viva em 01.06.2009 (apenas
para lembrar, em 02 de junho se comemora o Dia Internacional da Prostituta,
como recordação do fato ocorrido em 02 de junho de 1975, em Lyon, quando mais
de 100 prostitutas ocuparam a Igreja de Saint-Nizier para protestar por seus
direitos):
"Eu acho que
a princípio é muito boba essa história de querer salvar pessoas, né? É de uma
pretensão imensa. E salvar o quê? As pessoas fazem suas opções, às vezes as
opções são menores, às vezes são um pouquinho maiores, mas as pessoas fazem. E
elas vão para os seus lugares porque elas estão optando por isso. E se ela
quiser sair, eu acho que ela, como mulher, sai por si mesma. Ela começa a
pensar: 'não quero, não me dou bem nessa história, vou fazer outra coisa'. Como
todas as pessoas. Então isso sempre me
incomodou porque nunca quis que ninguém me salvasse, eu sempre tomei as minhas
decisões. E quando o pessoal da igreja dizia: 'não, você precisa ter uma outra
vida, se encontrar com Deus', eu dizia: 'Não, eu quero ter minha vida do jeito
que é'. Por isso que eu acho que não é por aí que a gente deve ver a questão da
prostituição. A questão da prostituição deve estar inserida dentro das questões
da sexualidade, das políticas da sexualidade, dos direitos sexuais, porque as
feministas sempre disseram que estavam trabalhando os direitos sexuais e
reprodutivos. Se você ler todos os relatórios das várias conferências
internacionais, no Cairo, em Pequim, essa coisa toda, lá só tem os direitos
reprodutivos. Os direitos sexuais estão ali juntos, para irem juntos na
caixinha. Ninguém nunca mexeu com os direitos sexuais. E a prostituição, na minha opinião, é um direito sexual.
E, de mais a mais, as pessoas se esquecem de que as prostitutas estão lá no seu
trabalho trabalhando porque tem alguém que vai lá procurar elas. Então existe
essa demanda, existe na sociedade. E para mim a
grande história é sair debaixo do tapete, se mostrar e dizer: 'Olha, eu
sou uma delas e estou aqui, sou uma mulher inteirona, como qualquer outra
mulher" (trechos da entrevista podem ser vistos aqui; a entrevista
completa está transcrita aqui).
Gabriela afirma,
contundente e certeira, a certa altura do livro:
"É uma
babaquice dizer que só puta vende o corpo! E vender sua cabeça, quanto custa? O
operário vender seu braço, quanto custa? Todo mundo vende sua força de
trabalho, que está com seu corpo. Existe uma tendência de alguns estudiosos de
se declararem a favor das prostitutas e contra a prostituição. Um contra-senso
geral e total."
A grife Daslu, da
empresária Eliana Tranchesi, a maior expoente do mercado de luxo num país
desigual como o Brasil, quis processar a Daspu. O processo não seguiu adiante.
Eliana Tranchesi, investigada pela Polícia Federal por sonegação fiscal, tinha
o hábito de ir à missa todos os domingos e mantinha uma capela no interior da
Daslu. Morreu de câncer, como Gabriela Leite. O legado que cada uma dessas
mulheres deixou para o Brasil é evidente, dispensa maiores comentários e fica
sujeito à avaliação de cada um.
Atualmente,
tramita na Câmara dos Deputados um projeto de lei apresentado pelo deputado
Jean Willis, chamado "projeto Gabriela Leite", que visa regulamentar
a prostituição no país.
A coragem e a
coerência de Gabriela Leite, numa sociedade hipócrita e moralista como a
brasileira, farão falta. Permanecem não apenas seu exemplo e as medidas
adotadas para regularizar a profissão (a mais antiga do mundo, segundo dizem) e
combater a AIDS, como também as reflexões suscitadas por suas escolhas.
Gabriela parte, mas sua obra, suas escolhas
e, acima de tudo, sua luta sobrevivem.
Filha, mãe, avó,
socióloga e puta - e exemplo de ser humano.
Fonte: www.cartaforense.com.br
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