O discurso patriarcal, tão impregnado no discurso público, associa o feminismo como o contrário do machismo, ou sua versão feminina. Entende-se o feminismo como o machismo nas mulheres. Isto é uma grande tergiversação do conceito e sentido político do feminismo.
Se em 12 de julho de 1780 nascia Juana Azurduy de Padilla,
mestiça que liderou, ao lado do seu marido, um exército de indígenas na
Bolívia, em 10 de setembro de 1989 abriu suas portas o centro que leva seu
nome, em Sucre. Martha Noya dirige-o desde a sua fundação e está plenamente
convencida de que o espírito libertador da guerrilheira os guiou na luta pela
equidade de gênero durante esses 24 anos. Ela é advogada e desde muito jovem
esteve envolvida nos movimentos políticos de esquerda do país. Pertence a uma
geração de mulheres que lutou incansavelmente contra a ditadura militar e pela
instauração da democracia.
A entrevista é de Natalia Ramos e publicada no sítio
Rebelión, 16-09-2013. A tradução é de André Langer.
Eis a entrevista.
Que elementos você identifica com a figura de Juana Azurduy
para que o centro leve o seu nome?
Juana Azurduy foi uma mulher rebelde, líder da guerrilha
contra a colônia espanhola. Transgressora e contestadora do sistema, com um
profundo espírito de desejos de liberdade do escravismo ao qual submetiam os
indígenas. Uma mulher destas características é uma referência a ser imitada,
imprimindo nas mulheres o valor necessário para lutar agora contra o
patriarcado. As mulheres vivem uma opressão que é fruto de um patriarcado que
se tornou ainda mais abusivo com a chegada da colônia. Lamentavelmente, isto
persiste. Sobretudo em um país latino-americano e subdesenvolvido como este,
onde a maneira de se apresentar o machismo e o patriarcado é sumamente
grosseiro e torpe.
Há 24 anos, em que contexto surge o Centro Juana Azurduy?
Na década de 1980, a Bolívia era um país de alta
conflitividade política. As mulheres haviam se organizado na Federação
Democrática de Mulheres, oriundas de diferentes partidos de esquerda, para
lutar pela democracia e contra a ditadura. A democracia na Bolívia, em grande
parte, é mérito das mulheres; os homens que lideravam os movimentos contra a
ditadura foram para o exílio. Com o retorno à democracia, os homens exilados
voltam para tomar o poder e as mulheres são totalmente excluídas dos espaços
públicos. Foi então que a Federação começa um processo básico de reflexão para
identificar os elementos visíveis que sustentam as relações de gênero
desiguais. A criação da Instituição faz parte deste processo.
No trabalho pela busca da equidade de gênero, são muitos os
obstáculos que se apresentam?
Sim, permanentemente nos deparamos com barreiras. Por
exemplo, quando vamos trabalhar as cartas orgânicas e propomos que
necessariamente tem que existir 50% de mulheres que ocupem espaços de poder ou
que se disponha de uma porcentagem do orçamento municipal para as mulheres,
toda a negociação se complica. O discurso das autoridades é aparentemente
coerente com os direitos das mulheres, mas quando é preciso colocar dinheiro ou
limitar o exercício masculino, começam os conflitos.
O conceito de feminismo gera conflitos e divisão de
opiniões, mas é interpretado ou entendido corretamente?
O discurso patriarcal, tão impregnado no discurso público,
associa o feminismo como o contrário do machismo, ou sua versão feminina.
Entende-se o feminismo como o machismo nas mulheres. Isto é uma grande
tergiversação do conceito e sentido político do feminismo. A estratégia que
muitas instituições adotaram há anos foi deixar de falar de feminismo e falar
de “enfoque de gênero”, como se este não estivesse baseado na teoria feminista.
Tira-se da categoria de gênero o conteúdo político e, sobretudo, o sentido
questionador das relações de poder, que é o que o feminismo faz. Creio que a
nossa instituição, por um tempo, caiu nesta armadilha. Em meados da década de
2000, nos damos conta disso e começamos a reverter esta situação, recuperando o
discurso original, falando de feminismo sem nenhum complexo nem restrição. Isto
nos colocou em situação de crítica na cidade, o que não limitou a nossa ação.
Na visão indígena, como avalia sua postura em relação ao
enfoque de gênero e o feminismo?
No discurso governamental e das organizações sociais
indígenas originárias camponesas, observa-se uma recusa das teorias
estrangeiras, entre elas o feminismo. Mas, contraditoriamente, criou-se uma
instância de governo denominada Unidade de Despatriarcalização, subordinada ao
Ministério da Cultura, que desenvolve políticas contra o patriarcado.
Confrontar o feminismo e a despatriarcalização é uma falsa dicotomia: “Não
somos feministas, mas vamos trabalhar pela despatriarcalização”. A ideia do
patriarcado foi recuperada pelo feminismo como conceitualização do
androcentrismo e da organização social baseada e dirigida pelo masculino.
Apesar desta contradição, promovida, a partir do Estado, um discurso e políticas
dirigidas à despatriarcalização é um avanço importante. É uma situação que as
organizações de mulheres devem aproveitar para avançar na estratégia
despatriarcalizadora da nossa sociedade.
Além disso, a partir desta perspectiva, existe um confronto
entre os direitos individuais e coletivos?
Produziu-se um discurso distorcido sobre os direitos
individuais e coletivos, contrapondo-os. Desde o feminismo e do movimento de
mulheres, acreditamos que não é possível que as mulheres exerçam seus direitos
coletivos se não se garante o exercício de seus direitos individuais. Os
movimentos indígenas colocam as mulheres nessa falsa contradição gerando nelas
um sentimento de “traição” aos seus direitos como grupo cultural caso
defenderem seus direitos individuais. Não se pode defender os direitos da
comunidade destruindo os direitos das mulheres.
O que pensa dos avanços na nova lei sobre a violência de
gênero, aprovada este ano na Bolívia?
Houve mudanças muito positivas. Se bem que, pessoalmente,
sou partidária de que um agressor deve ser preso, as mulheres na Bolívia não
estão preparadas para isto, optando por não denunciar diante do medo de que
seus cônjuges as abandonem. As mulheres não têm a cultura da denúncia e da
sanção. O problema é que elas têm uma cultura de alta tolerância à violência.
Por outro lado, ao ser um crime entra na norma penal, o que representa um
processo muito complexo e longo. As mulheres não querem passar por um
“calvário” judicial. Creio que o conceito sobre o qual se construiu a lei está bem,
mas o procedimento faz com que nos deparemos com sérios problemas de aplicação.
Corremos o risco de que, em vez de avançar na proteção do Estado às vítimas de
violência, limite o seu acesso à justiça.
Quais são os fatores chaves para conseguir uma verdadeira
transformação?
Conseguir uma sociedade despatriarcalizada com justiça
social e de gênero é um processo muito complexo e de avanços lentos. Provocar
transformações culturais em uma sociedade diversa – fruto de processos
históricos colonizadores que instalaram pensamentos patriarcais e machistas
abusivos em toda a sociedade e suas diferentes expressões culturais e
organizacionais –, será fruto de uma luta incessante das próprias mulheres,
tanto de forma individual como coletiva.
Fonte: Ihu
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