Lourdes Barreto se prostituiu por 53 anos. Hoje, com 71, e
uma das principais líderes do movimento da categoria no país, preside o Grupo
de Mulheres Prostitutas do Pará e tem muitas histórias de confronto com a
ditadura militar. Foi presa várias vezes, apanhou e liderou movimento pela
reabertura da zona do meretrício em Belém, fechada pelos militares em 1971.
O
local foi invadido e lacrado por agentes da Marinha, da Aeronáutica e da
Polícia Federal. Dependiam do local cerca de duas mil profissionais.
— Quem estava dentro não saía, quem estava fora não entrava.
Foi uma guerra — lembra.
A repressão às prostitutas e a outros profissionais do sexo
não partia só das Forças Armadas. As polícias Civil, principalmente, e a
Militar também agiam. Mesmo sem envolvimento ou militância política, há
profissionais do sexo que reivindicarão na Comissão de Anistia o direito à
reparação econômica e anistia do Estado por perseguição, que se dava por
questões morais, de costume e sexual. O primeiro caso de pedido na comissão
será da travesti Safira Bengell, que trabalhava em casa de shows no Rio. Ela diz
que foi perseguida, presa e torturada.
— Afetaram a minha integridade. Fui presa várias vezes e me
jogavam água gelada somente pelo fato de eu me vestir de mulher. Quando
estávamos na cela, muitas se cortavam com giletes para serem soltas depois de
irem para o hospital serem medicadas — contou Safira Bengell.
— Tínhamos que fazer sexo com os carcereiros e policiais
para recebermos um pouco de água — disse Safira, cujo nome de batismo é João
Alberto Souza. Ela ainda faz shows transformistas no Piauí.
‘Termo de vadiagem’
embasava prisões
A ação dos militares contra as prostitutas foi contínua nos
anos de chumbo. Uma repressão não só dos militares, mas de outros setores, como
a Polícia Civil, que aplicava o “termo de vadiagem” para prender essas
profissionais. Nanci Feijó, coordenadora da Associação Pernambucana de
Profissionais do Sexo (APPS), se lembra desse período. Com 54 anos, ela começou
na profissão aos 16, em 1975.
— Éramos presas por vadiagem. Ia para a delegacia fazer
faxina, levar palmatória e até lavar defunto. Levei muita carreira (violência
policial). Nem todas suportaram. Algumas morreram. Era uma época de comissário
e de radiopatrulha. Todo mundo tinha medo da rua. Naquela época, não tinha como
pedir socorro, como tem hoje — disse Nanci.
Lourdes Barreto se lembra bem das prisões em Belém. As
prostitutas podiam sair para programas nas ruas a partir das duas horas da
madrugada. Mas só em locais específicos. Às vezes, saíam com escolta, dada a
proximidade de cafetões e cafetinas com policiais.
— Nem era só isso. Não podíamos sair às ruas, ir ao salão de
beleza ou comprar roupas. No comércio, não nos aceitavam. E, quando aceitavam,
cobravam os olhos da cara.
Para reabrir a zona de Belém, a líder prostituta do Pará
organizou a ida de uma comitiva a Brasília — com apoio de um padre, de leigos e
de advogados — e obteve um mandado de segurança que assegurou a reabertura.
Lourdes participou de atos e passeatas contra a perseguição.
— Como eu ia à frente, levei muita porrada.
Ela acrescentou que eram obrigadas a ficar confinadas no
cabaré:
— Não podia colocar a cabeça na janela. O camburão passava e
levava todo mundo.
Mas não será fácil para prostitutas e travestis convencerem
a Comissão de Anistia de que a repressão da qual foram vítimas tem relação com
perseguição política. Para a vice-presidente da comissão, Sueli Bellato, a
situação é semelhante à dos indígenas, moradores de rua e outros grupos
vulneráveis atingidos no período militar:
— O imprescindível para a Comissão de Anistia é o
reconhecimento da perseguição política. Os indígenas que foram arrancados de
suas terras por causa dos projetos de ampliação de rodovias e construção de
barragens são vítimas do regime militar e tiveram prejuízos culturais e
econômicos? Sim, mas são perseguidos políticos? Provavelmente, não — disse
Sueli.
Fonte: (Evandro Éboli) O Globo
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